A Guerra na Ucrânia — “A confiscação das reservas russas converte-se num boomerang empurrando o mundo para um novo sistema monetário internacional”. Por Alastair Crooke

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 m de leitura

 

A confiscação das reservas russas converte-se num boomerang empurrando o mundo para um novo sistema monetário internacional

 Por Alastair Crooke

Publicado por  almayadeen.net em 20 de Março de 2022 (original aqui)

 

 

A atual operação militar na Ucrânia acabará, em devido tempo, relegada ao estatuto de pouco mais de uma nota de rodapé na história global, embora a guerra financeira total que se repercutiu na Rússia será fundamental na definição da nova ordem mundial que se avizinha.

 

De facto, talvez já tenhamos testemunhado o momento em que a história económica mudou de rumo: aconteceu no dia 26 de Fevereiro, quando o Ocidente coletivo confiscou todas as reservas cambiais que o Banco Central da Rússia mantinha no Ocidente.

Em síntese, o Ocidente decretou que as reservas soberanas russas em euros, dólares e papéis do Tesouro dos EUA deixavam de ser ‘dinheiro bom’. Que deixavam de ter valor como ‘dinheiro’ para pagar dívidas russas a credores estrangeiros. E ao sancionar também o Banco Central Russo, o Ocidente impossibilitou para aqueles que compram bens, energia ou matérias-primas transacionarem o que devem através do Banco.

A magnitude deste evento é sublinhada pelo facto de que em anterior conflito também centrado na Ucrânia – a Guerra da Crimeia de 1854-1856 – a Grã-Bretanha e a França estavam em guerra contra a Rússia. Mas mesmo assim, durante toda a guerra, o governo russo continuou a pagar juros aos detentores britânicos da dívida russa; e o governo britânico também continuou a pagar o que devia ao governo russo.

A mensagem agora é bastante clara – se até os mais proeminentes Estados do G20 podem ver as suas reservas canceladas num piscar de olhos, então, para todos que ainda tenham ‘reservas’ em Nova York, é hora, já, de as levarem para outro lugar, enquanto isso ainda é possível! E se você precisa de guardar algo de valor, como reserva para dia chuvoso, compre ouro, e guarde-o bem.

Então pensávamos que os títulos soberanos norte-americanos (os chamados “papéis do Tesouro norte-americanos, Treasuries) eram ‘dinheiro’ e invioláveis? Nada disso! Os EUA acabam de declarar nulos e inválidos os papéis da dívida dos EUA depositados no Banco Central russo. Talvez – como os Títulos da Rússia Imperial, usados para decorar casas de banho europeias, como papel de parede colorido, mas sem valor – o Banco Central russo passe agora a usar seus títulos do Tesouro dos EUA como papel de parede para as casas de banho (embora seja uma decoração menos colorida).

Mas… Atenção! Há mais. Na legislação proposta no Senado dos EUA, as reservas de ouro de propriedade do Banco Central da Rússia serão congeladas e confiscadas. Há, no entanto, um grande problema para cumprir essa legislação. O ouro existe. Ele existe em barras de ouro físicas (cerca de 2.300 toneladas métricas), no valor de cerca de 150 mil milhões de dólares, MAS estão armazenadas na Rússia. Na verdade não podem de modo algum serem congeladas ou confiscadas.

Então, do que se trata, se o ouro não pode ser realmente confiscado?

Trata-se de sanções secundárias de boicote contra quem quer que ajude a Rússia a transportar ou a fazer transações em ouro. Por exemplo: se a Rússia importasse, digamos, chips semicondutores chineses e liquidasse a transação em ouro, nesse caso, teoricamente, os EUA poderiam sancionar a entidade que recebesse o ouro na China.

É verdade que a ideia dos EUA aplicarem sanções aos receptores de ouro russo poderá parecer um pouco exagerado… Mas considerem também o seguinte:

Há (pelo menos teoricamente, pois ninguém sabe ao certo) 6.000 toneladas de ouro de propriedade estrangeira (ou seja, de propriedade de Estados estrangeiros) ainda em poder do Federal Reserve de Nova York.

E agora essas 6.000 toneladas (dado o precedente do caso russo) podem ser facilmente confiscadas pelas autoridades norte-americanas – ao apertar um botão. Porque não, está à mão de semear. Assim sendo, porquê continuar a guardar o ouro em Nova York? Porque não repatriar aquele ouro, enquanto se pode? (de facto, para começar, porque não será fácil arrancar qualquer ouro ao Fed).

Sim, alguns poderão dizer que a Rússia é considerada ‘um ator mau’ pelos EUA. E nós, os norte-americanos, somos ‘bons’. Ok, vá que fosse, só por hoje. O problema é que a lista dos atores que em algum momento foram rotulados como ‘atores maus’ é longa. Lembrem-se de que até a França, membro do G7, foi acusada de ser um ‘ator mau’ durante a guerra do Iraque, em 2006.

Assim sendo, então, claro que estaremos na véspera de uma grande retirada de Reservas – para fora da jurisdição dos EUA. A decisão de Biden, de confiscar os ativos do Banco Central russo é tão significativa em termos geopolíticos quanto foi o encerramento, por Nixon, da ‘janela do ouro’ norte-americano, em 1971. Lembrem-se todos de que o encerramento da tal ‘janela’ foi inicialmente elogiado como ‘medida temporária’.

A consequência geopolítica, no entanto, teve um efeito nuclear. O sistema comercial baseado no petrodólar que disso derivou permitiu aos Estados Unidos ‘detonar’ o mundo com sanções e sanções secundárias. Para tanto, passou a bastar que os EUA declarassem que passavam a ter jurisdição sobre qualquer, e todas, as transações denominadas em dólares, ou que, de algum modo, passassem por um processo de compensação em dólares.

A hegemonia dos EUA sobre a chamada “ordem baseada em regras” tem sido muito mais financeira (e não tanto militar). Ou seja, uma ordem imposta pela ameaça dos EUA ‘sancionarem’ todo e qualquer delinquente com uma ‘bomba de neutrões’ de papéis do Tesouro dos EUA.

E no dia 26 de fevereiro, esse sistema começou a morrer, quando os ‘falcões’ russófobos de Washington, iniciaram, estupidamente, uma luta contra o único país – a Rússia – que tem as matérias-primas necessárias para governar o mundo; e para desencadear a mudança para outro sistema monetário – outro sistema monetário que está ancorado em solo firme, em algo que não é dinheiro fiduciário.

É claro que o yuan ou o rublo podem refletir o valor subjacente das respectivas grandes reservas de ouro. Mas também, as matérias-primas são garantia, e garantia é dinheiro. E a Rússia tem a parte do leão das principais matérias-primas.

Em resumo, o sistema monetário ocidental baseado no dólar norte-americano como moeda de reserva está prestes a acabar numa inflação de dimensões de estrela supernova, pois os EUA perdem a capacidade de usar a poupança chinesa para financiar o orçamento norte-americano e os próprios défices comerciais norte-americanos. E isto está a acontecer à medida que a geração Boomer [n.e. pessoas nascidas entre 1946 e 1964] se vai aposentando e os seus direitos a ajuda disparam.

Defesa, juros e direitos não discricionários já comem 100% da receita tributária. Portanto, agora, não há outra possibilidade: o Fed tem e terá de imprimir a maior parte dos enormes gastos adicionais.

Zoltan Poszar, uma das vozes mais respeitadas de Wall Street, argumentou que o sistema monetário atual funcionou enquanto os preços das matérias-primas oscilaram previsivelmente numa faixa estreita – ou seja, enquanto não estiveram sob stress extremo (precisamente porque as matérias-primas são garantia para outros instrumentos de dívida). Mas quando todo o complexo de matérias-primas está sob stress, como está agora, os preços enlouquecidos das matérias-primas levam a um mais amplo voto de ‘desconfiança’ no sistema. E isso é o que estamos a assistir agora.

Os falcões russofóbicos não previram estas inesperadas consequências? Havia alguma grande estratégia por trás do confisco das reservas russas, além da visceral má-fé contra a Rússia?

Não. Não previram coisa alguma. Agiram somente por impulso. Sabemos disso, porque tanto o Fed como o BCE informaram que não foram consultados sobre a confiscação do ouro nem sobre a expulsão de sete bancos russos do sistema de compensação financeira SWIFT. E esclareceram que, se consultados, ter-se-iam oposto a ambos os movimentos.

Foi ato de automutilação.

E que ironia! No seu zelo para esmagar a economia russa, os falcões norte-americanos russofóbicos abriram inadvertidamente o caminho para a Rússia e a China começarem a criar um novo sistema monetário, bem longe da esfera de influência’ do dólar norte-americano.

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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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