Seleção e tradução de Francisco Tavares
10 m de leitura
Nota do editor:
Para além do clima de panegírico que os poderes estabelecidos impõem a propósito da morte de Isabel II, conforme Jonathan Cook descreve no seu texto, relembramos aqui dois factos, de entre muitos, que mostram outras tantas vertentes do seu legado:
- por um lado, a vertente da arte das aparências em que o sistema britânico – e nomeadamente o reinado de Isabel II – é especialista, como se poderá ver pelo texto que publicaremos amanhã, “O discurso de legislatura da rainha (ou a arte das aparências)” de Gavin Bonnar,
- e, por outro lado, a conivência da monarca com decisões ocultas que levaram a desestabilização a um país como a Itália, e de que demos notícia aqui na Viagem dos Argonautas em 8 de Janeiro de 2017 (aqui). Foi o caso em 1992, em que o governo italiano foi implementando políticas que agravariam o futuro do país – muitas empresas [públicas] seriam vendidas, até o banco de Itália seria posto à venda. Nesse ano, conforme confissão do antigo ministro Cotti, houve reuniões internacionais em que teriam sido decididas ações desestabilizadoras seja com atentados mafiosos seja com investigações judiciais contra os líderes dos partidos no poder. Uma dessas reuniões teve lugar em 2 de Junho, no iate Britannia, ao largo da costa da Sicília. Conforme relata Antonella Randazzo, “No iate estavam alguns dos que pertencem à elite do poder anglo-americano, como a realeza britânica e os principais dirigentes dos grandes bancos a quem o governo italiano iria recorrer durante a fase de privatização (Merrill Lynch, Goldman Sachs, Salomon Brothers). Nessa reunião foi decidido comprar empresas italianas e o banco de Itália e como fazer cair o velho sistema político para o substituir por um outro, completamente manipulado pelos novos patrões. Nesta reunião participaram vários italianos como Mario Draghi, então Director-adjunto do tesouro, o Director Executivo da Eni, Beniamino Andreatta, e o diretor do IRI, Riccardo Galli. As intrigas decididas no Britânia iriam permitir que os anglo-americanos pudessem meter as mãos em 48% das empresas italianas, entre as quais estavam Buitoni, Locatelli, Negrone, Ferrarelle, Perugina e Galbani”. Cabe aqui recordar que o iate Britannia era um iate de representação pertencente à coroa britânica (somente em 1997 e por ordem de Isabel II, foi dado de baixa e colocado como barco museu em Leith).
FT
A Rainha e o seu Legado: a Grã-Bretanha do século 21 nunca pareceu tão medieval
Publicado por em 12 de Setembro de 2022 (original aqui)
Qualquer pessoa no Reino Unido que tenha imaginado viver numa democracia representativa – uma democracia em que os líderes são eleitos e responsáveis perante o povo – terá um despertar rude durante os próximos dias e semanas.
Os horários da televisão foram postos de lado. Os apresentadores devem ir vestidos de preto e falar em tons abafados. As primeiras páginas são uniformemente sombrias. Os meios de comunicação britânicos falam com uma voz única e respeitosa sobre a Rainha e o seu legado irrepreensível.
Westminster [o Parlamento], entretanto, foi despojada da esquerda e da direita. Os partidos Conservador, Democrata Liberal e Trabalhista puseram de lado a política para se entristecerem como um só. Até mesmo os nacionalistas escoceses – supostamente tentando livrar-se do jugo de séculos de domínio inglês presidido pela monarca – parecem estar de luto efusivo.
Os problemas urgentes do mundo – desde a guerra na Europa até uma catástrofe climática iminente – já não têm interesse ou relevância. Podem esperar até que os britânicos emerjam de um trauma nacional mais premente.
A nível interno, a BBC disse aos que enfrentam um longo Inverno em que não poderão dar-se ao luxo de aquecer as suas casas que o seu sofrimento é “insignificante” em comparação com o da família de uma mulher de 96 anos que morreu pacificamente no meio do luxo. Eles também podem esperar.
Neste momento não há espaço público para ambivalência ou indiferença, para reticências, para o pensamento crítico – e muito menos para o republicanismo, mesmo que quase um terço do público, sobretudo os jovens, desejem a abolição da monarquia. O establishment britânico espera que cada homem, mulher e criança cumpra o seu dever baixando a sua cabeça.
A Grã-Bretanha do século XXI nunca esteve tão medieval.
Panegíricos por todo o lado
Há razões pelas quais é necessário um olhar crítico neste momento, uma vez que o público britânico está encurralado num luto reverencial.
Os panegíricos por toda a parte destinam-se a encher as nossas narinas com o perfume da nostalgia para cobrir o fedor de uma instituição em decomposição, uma instituição que se encontra no cerne do próprio poder estabelecido que faz os panegíricos.
A exigência é que todos mostrem respeito pela Rainha e pela sua família e que agora não é o momento para críticas ou sequer análises.
De facto, a Família Real tem todo o direito de ser deixada em paz para chorar. Mas a privacidade não é aquilo que eles, ou o poder estabelecido a que pertencem, anseiam.
A perda Real é pública em todos os sentidos. Haverá um funeral de estado luxuoso, pago pelo contribuinte. Haverá uma coroação igualmente pródiga do seu filho, Carlos, também paga pelo contribuinte.
E, entretanto, o público britânico será alimentado à força pelas mesmas mensagens oficiais por todos os canais de televisão – não de forma neutra, imparcial ou objectiva, mas como propaganda do Estado – paga, mais uma vez, pelo contribuinte britânico.
A reverência e a veneração são os únicos tipos de cobertura da Rainha e da sua família que são agora permitidos.
Mas há um sentido mais profundo em que os membros da realeza são figuras públicas – mais do que aquelas que são empurradas para a ribalta pela sua celebridade ou talento para acumular dinheiro.
O público britânico pagou totalmente a fatura da vida de privilégio e luxo da realeza. Tal como os reis de outrora, deram a si próprios o direito de encerrar vastas extensões das Ilhas Britânicas como seu domínio privado. A morte da Rainha, por exemplo, significa que o Duque e a Duquesa de Cambridge acabam de acrescentar toda a Cornualha ao seu património.
Se alguém é propriedade pública, são os membros da realeza britânica. Eles não têm o direito de reclamar uma isenção de escrutínio precisamente quando o escrutínio é mais necessário – uma vez que os privilégios antidemocráticos da monarquia passam de um conjunto de mãos para outro.
A exigência de silêncio não é um acto politicamente neutro. É uma exigência de conluio num sistema corrupto de regime de poder estabelecido e privilégios hierárquicos.
O poder estabelecido tem um interesse declarado em impor o silêncio e a obediência até que a atenção do público tenha passado para outros assuntos. Quem cumpre deixa o terreno aberto durante as próximas semanas para o poder estabelecido reforçar e aprofundar a deferência do público em relação ao privilégio da elite.
Continuidade do governo
Indubitavelmente, a Rainha desempenhou as suas funções supremamente bem durante os seus 70 anos no trono. Como os especialistas da BBC continuam a dizer-nos, ela ajudou a manter a “estabilidade” social e garantiu a “continuidade” do governo.
O início do seu reinado em 1952 coincidiu com o seu governo que ordenou a supressão da revolta da independência dos Mau Mau no Quénia. Grande parte da população foi colocada em campos de concentração e utilizada como mão-de-obra escrava – se não tivessem sido assassinados por soldados britânicos.
No auge do seu governo, 20 anos depois, as tropas britânicas receberam luz verde para massacrar 14 civis na Irlanda do Norte, numa marcha de protesto contra a política britânica de prender católicos sem julgamento. Os baleados e mortos estavam a fugir ou a cuidar dos feridos. O poder estabelecido britânico supervisionou inquéritos de encobrimento sobre o que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”.
E nos últimos anos do seu mandato, o seu governo espezinhou o direito internacional, invadindo o Iraque com o pretexto de destruir armas de destruição maciça inexistentes. Durante os longos anos de uma ocupação conjunta britânica e americana, é provável que mais de um milhão de iraquianos tenham morrido e mais milhões tenham sido expulsos das suas casas.
A Rainha, claro, não foi pessoalmente responsável por nenhum desses acontecimentos – nem pelos muitos outros que ocorreram enquanto ela mantinha um silêncio digno.
Mas ela deu cobertura real a esses crimes – em vida, tal como está agora a ser recrutada para o fazer na morte.
Foram as suas Forças Armadas Reais que mataram Johnny Foreigner.
Foi a sua Commonwealth que apresentou o império britânico como uma nova forma de colonialismo, mais mediático.
Foram os Union Jacks, os Beefeaters, os táxis pretos, os chapéus de coco – a ridícula parafernália de alguma forma associada à família real na mente do resto do mundo – que a nova potência do outro lado do Atlântico utilizou regularmente para acrescentar um verniz de pretensa civilidade aos seus terríveis desígnios imperiais.
Paradoxalmente, dada a história dos EUA, o carácter especial da relação especial repousava sobre o facto de que uma rainha muito amada e estimada assegurava a “continuidade” enquanto os governos britânico e americano se dedicavam a rasgar o livro de regras sobre as leis da guerra em lugares como o Afeganistão e o Iraque.
Rainha do teflon
E aí reside o busílis. A Rainha está morta. Viva o Rei!
Mas o Rei Carlos III não é a Rainha Isabel II.
A Rainha teve a vantagem de ascender ao trono numa época muito diferente, quando os meios de comunicação evitavam escândalos reais a menos que fossem totalmente inevitáveis, como por exemplo quando Eduardo VIII provocou uma crise constitucional em 1936 ao anunciar o seu plano de casar com uma “plebeia” americana.
Com a chegada de notícias em contínuo todas as 24 horas nos anos de 1980 e o posterior advento dos media digitais, a família real tornou-se apenas mais uma família de celebridades como os Kardashians. Tornaram-se o alvo justamente dos paparazzi. Os seus escândalos vendiam jornais. As suas indiscrições e rixas inscreviam-se nos enredos de novelas cada vez mais obscenos e incendiários da televisão da época.
Mas nada daquela sujidade se pegou à Rainha, mesmo quando recentemente foi revelado – sem qualquer consequência – que os seus funcionários tinham secretamente e regularmente manipulado legislação para a isentar das regras que se aplicavam a todos os outros, sob um princípio conhecido como o Consentimento da Rainha. Um sistema de apartheid que beneficiava apenas a Família Real.
Ao permanecer à margem das rixas, ela ofereceu “continuidade”. Mesmo a recente revelação de que o seu filho, o príncipe Andrew, se relacionou jovens raparigas ao lado do falecido Jeffrey Epstein, e manteve a amizade mesmo depois de Epstein ter sido condenado por pedofilia, em nada prejudicou a monarca de teflon.
Carlos III, pelo contrário, é melhor lembrado – pelo menos pela metade mais velha da população – por ter estragado o seu casamento com uma princesa de conto de fadas, Diana, morta em circunstâncias trágicas. Ao preferir Camila, Carlos trocou a Cinderela pela madrasta malvada, Lady Tremaine.
Se o monarca é a cola narrativa que mantém a sociedade e o império juntos, Carlos poderia representar o momento em que esse projecto começa a desmoronar-se.
É por isso que os fatos pretos, os tons abafados e o ar de reverência são tão desesperadamente necessários neste preciso momento. A classe dirigente está em modo de frenética espera enquanto se preparam para iniciar a difícil tarefa de reinventar Charles e Camilla no imaginário público. Carlos deve agora fazer o trabalho pesado para a classe dirigente que a Rainha conseguiu durante tanto tempo, mesmo quando ela se tornou cada vez mais frágil fisicamente.
Os contornos desse plano têm sido visíveis há algum tempo. Carlos será rebatizado como o Rei do New Deal Verde. Ele irá simbolizar a liderança global da Grã-Bretanha contra a crise climática.
Se a função da Rainha foi rebatizar o Império como Commonwealth, transmutando o massacre dos Mau Mau em medalhas de ouro para os corredores de longa distância quenianos, a função de Carlos será rebatizar como Renovação Verde a marcha da morte liderada por corporações transnacionais.
É por isso que agora não é tempo para silêncio ou obediência. Agora é precisamente o momento – à medida que a máscara se desvanece, quando a classe dirigente precisa de tempo para reformar a sua pretensão de deferência – para passar ao ataque.
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O autor: Jonathan Cook [1965-] é um escritor britânico e jornalista freelance baseado em Nazaré, Israel, que escreve sobre o conflito israelo-palestiniano. Escreve uma coluna regular para The National of Abu Dhabi and Middle East Eye.