Espuma dos dias — Como é que Biden fez isto. Por Robert Reich

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

5 m de leitura

Como é que Biden fez isto

Do Estado regulador ao Estado dos subsídios

 Por Robert Reich

Em 18 de Agosto de 2022 (original aqui)

 

A Lei do Ar Limpo de 1970 (Clean Air Act) autorizou o governo a regular a poluição atmosférica.

A Lei de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act), que Joe Biden acabou de assinar em lei, atribui mais de 300 mil milhões de dólares à reforma energética e climática, incluindo 30 mil milhões de dólares em subsídios aos fabricantes de painéis e componentes solares, turbinas eólicas, inversores e baterias para veículos elétricos e a rede elétrica.

Notou a diferença?

A Lei de Redução da Inflação é um grande e importante passo para abrandar ou inverter a mudança climática. Também ilustra a mudança da nação de passar de regulamentar as empresas para subsidiar as empresas.

Desde 1932 até ao final dos anos 70, o governo principalmente regulamentava as empresas. Esta foi a era da criação pelo governo de agências reguladoras, época iniciada sob Franklin D. Roosevelt (a SEC, ICC, FCC, CAB, etc. [1]), culminando na EPA de 1970.

O governo ainda regula as empresas, é claro, mas a maior coisa que o governo federal faz agora com as empresas é subsidiá-las.

Consideremos as maiores realizações de Joe Biden no primeiro mandato:

– a Lei CHIPS e Ciência (com 52 mil milhões de dólares de subsídios a empresas de semicondutores, mais outros 24 mil milhões de dólares em créditos fiscais à produção);

– a Lei de Investimento em Infraestruturas e Emprego ($550 mil milhões de dólares de novos gastos em ferrovias, banda larga, e na rede elétrica, entre outras coisas);

– e agora a Lei de Redução da Inflação (incluindo, como referi, 30 mil milhões de dólares especificamente para os fabricantes de energia solar e eólica).

Esta mudança de regulamentação para subsídio não é apenas uma característica central da administração Biden. Tem caracterizado cada administração recente. A “Operação Warp Speed” da Trump entregou 10 mil milhões de dólares de subsídios aos fabricantes de vacinas Covid. A Lei dos Cuidados Acessíveis de Obama subsidiou as indústrias farmacêuticas e de cuidados de saúde (indiretamente, através de fortíssimos subsídios aos compradores de cuidados de saúde e de produtos farmacêuticos). E Obama gastou cerca de 489 mil milhões de dólares para salvar a indústria financeira (e, nomeadamente, nunca restaurou completamente os regulamentos financeiros que as administrações anteriores tinham revogado), assim como a GM e a Chrysler.

Antes dos anos 80, a América teria feito tudo isto de forma diferente. Em vez de subsidiar a banda larga, semicondutores, empresas de energia, fabricantes de vacinas, empresas de cuidados de saúde e farmacêuticas, e o sector financeiro, tê-los-íamos regulamentado. As empresas teriam de produzir bens públicos (ou evitar os “maus” bens públicos como, digamos, a poluição ou um colapso financeiro) como condições para se manterem em atividade.

Se esta alternativa regulamentar parece rebuscada hoje em dia, isso deve-se ao quão longe chegámos do estado regulamentar dos anos 30 aos anos 70, para o estado dos subsídios a partir dos anos 80.

Porquê esta grande mudança? Devido à mudança no equilíbrio de poder entre as grandes empresas e o governo. Hoje em dia é politicamente difícil, se não impossível, para o governo exigir que as empresas (e os seus acionistas) suportem os custos dos bens públicos.

Por um lado, as empresas têm agora mais influência em Washington do que qualquer outro ator político. Os gastos das empresas em atividade de lóbis aumentaram de 1,44 mil milhões de dólares em 1999 para 3,77 mil milhões de dólares em 2021 e está no bom caminho para exceder 4 mil milhões de dólares este ano, de acordo com OpenSecrets.org, uma organização sem fins lucrativos que acompanha os gastos com os lóbis. As indústrias que mais têm gasto em lóbi e contribuições para campanhas são as que têm estado envolvidas na mudança mais dramática de regulamentação para subsídio: a indústria da saúde (que, entre 1998 e Junho de 2022 gastou 10,8 mil milhões de dólares); finanças (10,2 mil milhões de dólares); comunicações e eletrónica (8,4 mil milhões de dólares); e energia (6,9 mil milhões de dólares).

Eu vi isto em primeira mão. O plano de saúde de Bill Clinton foi bloqueado pelas indústrias farmacêutica e de cuidados de saúde, que teriam de sacrificar alguns lucros. Em contraste, Obama conseguiu a Lei dos Cuidados de Saúde Acessíveis pagando a estas indústrias – garantindo-lhes praticamente lucros maiores com um afluxo massivo de novos clientes subsidiados.

Uma segunda coisa: esta onda de dinheiro das empresas ocorreu ao mesmo tempo que as grandes empresas americanas se globalizaram, ao ponto de muitas poderem jogar os Estados Unidos contra outras nações – exigindo subornos do governo em troca da criação de empregos e de fazer a sua investigação de ponta na América. A nova lei CHIPS é um exemplo flagrante de como fabricantes de semicondutores poderosos e altamente rentáveis, como a Intel com sede nos Estados Unidos, podem extrair milhares de milhões de dólares numa chantagem global para determinar onde vão fabricar chips semicondutores.

Muitos dos subsídios que estão agora a ser distribuídos à América empresarial vêm sob a forma de créditos fiscais. (Note-se que em termos económicos, um dólar de crédito fiscal é exatamente o mesmo que um dólar de despesas governamentais). Estes créditos – mais o poder político crescente das empresas e a sua capacidade de jogar os países uns contra os outros – explicam o dramático declínio nas receitas dos impostos sobre o rendimento das empresas como percentagem do PIB ao longo dos últimos trinta anos. (Nem mesmo o mínimo de 15% de imposto sobre o rendimento das sociedades incorporado na Lei de Redução da Inflação irá alterar substancialmente esta trajetória).

Fonte: Office of Management and Budget. Historical tables. Table 2.3, “Receipts by source as Percentages of GDP, 1934-2025

 

Tudo isto se reflecte também no aumento dramático dos preços das acções em relação ao rendimento da família média – uma grande razão pela qual a desigualdade de rendimentos e riqueza disparou.

[Data from Federal Reserve Bank of St. Louis. Historical S&P 500 and NASDAQ values from Yahoo Finance.]

Na década de 1980, estive empenhadamente envolvido num debate nacional sobre aquilo a que se chamava “política industrial”. A questão, colocada de forma simples, era se o governo deveria subsidiar certas indústrias que geram grandes benefícios sociais sob a forma de novas tecnologias. Argumentei que o governo já estava envolvido numa política industrial oculta, disfarçada, por exemplo, como subsídios às indústrias aeroespacial e de telecomunicações pelo Departamento de Defesa e à indústria farmacêutica pelos Institutos Nacionais de Saúde – e que seria muito melhor fazer política industrial de forma aberta, para que o público pudesse avaliar o que estava a pagar e a receber em troca. Os opositores, que incluíam praticamente todos os republicanos, estavam indignados com a própria ideia de que o governo deveria estar a “intrometer-se” no seu abençoado mercado livre.

Até onde chegámos. Os subsídios de hoje são muito maiores, mas a política industrial já não é considerada uma ideia perigosa. O senador republicano John Cornyn, ao defender recentemente a Lei CHIPS, foi explícito no seu apoio a ela: “O que estamos a fazer é política industrial, ao contrário do que pessoas do meu passado de mercado livre já fizeram antes. Não é que estejamos a tentar ser parceiros de empresas. Isso seria o toque de morte da inovação. Mas elas precisam de alguma ajuda”.

As grandes empresas não precisam realmente da ajuda do governo. A mudança de poder feita ao longo destas últimas três décadas a favor das grandes empresas transformou a política industrial num sistema de subornos para fazer o tipo de coisas que o governo outrora lhes exigia como preço por fazerem parte do sistema americano.

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Nota

[1] N.T. SEC, Comissão da Bolsa e Valores; ICC, Câmara Internacional de Comércio; FCC, Comissão Federal de Comunicações; CAB, Conselho de Aeronáutica Civil; EPA, Agência de Proteção Ambiental.

 


O autor: Robert Reich, antigo Secretário de Trabalho dos Estados Unidos [com Bill Clinton], é professor de Políticas Públicas na Universidade da Califórnia, em Berkeley e autor de Saving Capitalism: For the Many, Not the Few e de The Common Good. O seu mais recente livro é The System: Who Rigged It, How We Fix It. É colunista no The Guardian e a sua newsletter é robertreich.substack.com

 

 

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