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Introdução
Em 7 de Novembro de 2022
Organizamos aqui uma série de textos, apresentamos uma série de vozes tomadas como vozes de esquerda, com posições muito diferentes sobre a crise mundial atual, onde uma das questões centrais desta crise é a guerra da Ucrânia.
Com raríssimas exceções, a esquerda não oficial alinhou pela tese de mais guerra, de mais armas para a Ucrânia e quanto a falar de paz nenhuma palavra sequer. Genericamente poderemos dizer que o exemplo mais emblemático é-nos dado, entre outros, pelos conselheiros de Bernie Sanders, Matt Duss e Aziz Rana. Estes condenam o imperialismo de ontem e temem o imperialismo de amanhã, mas não a política militarista e imperialista que agora está a ser praticada. Há as gentes de esquerda que branqueiam a história, em defesa da posição oficial assumida pelos países da NATO e afins, agarrando-se a um presentismo que elimina totalmente as razões que nos trouxeram até esta situação, como é o caso de António Guterres. Há aqueles que mesmo sem este questionamento se questionam sobre o perigo do fundamentalismo existente, caso dos analistas de alta qualidade do sítio Tom Dispatch, sobre o perigo das consequências a que este mesmo fundamentalismo nos pode levar, ou seja à guerra global. Há aqueles que colocam em primeiro lugar o cessar-fogo imediato e a abertura de negociações que nos possam levar à paz. Simplesmente para poder negociar é preciso saber o que é que de errado nos trouxe até aqui, é preciso definir o que é que é racionalmente fundamental para cada uma das partes. É preciso ter a coragem de se ser honesto.
Aliado à fidelidade dos governos dos países em tudo submetidos à política externa americana e ao excecionalismo desta, fazendo sua a política externa que é determinada e praticada pelos Estados Unidos, tivemos a campanha de diabolização de Putin como sendo o homem a abater. Muitos dos que se podem considerar amantes da paz, perceberam bem que este é o caminho mais redutor possível para se encontrarem vias de saída para a paz. Muitas destas pessoas ficaram politicamente órfãs de partidos políticos na órbita do poder, dada a ligação destes à visão belicista da NATO e ficaram igualmente impossibilitadas de qualquer discussão pública porque a diabolização de Putin levou ao dualismo simplista do “ou és por nós ou então és contra nós”. Ser contra nós significa ser defensor de regimes autocráticos, ser defensor de Putin, ser merecedor de ser marginalizado.
A guerra da Ucrânia trouxe divisões profundas na população de esquerda, em muitos países, senão mesmo em todos. E uma vez que o que está por detrás destas divisões não são questões marginais, mas sim questões centrais para a própria identidade da esquerda decidimos escolher e publicar uma série de textos que põem a nu as linhas de fratura existentes e que nos levam a refletir e a debater na esfera das nossas relações questões como o envio de armas, o papel da NATO, a autonomia da Europa face aos EUA, a ameaça nuclear, a reorganização da ordem mundial que se desenha no horizonte. Mesmo amargo, exige-se o confronto de ideias à esquerda, em vez deste encapsulamento a que temos assistido, e com muita urgência exige-se igualmente que se procurem honestamente os caminhos que nos levem à paz e não os que nos estão a levar à destruição.
Esperamos então que esta coletânea de textos nos traga alguns esclarecimentos sobre as linhas de fratura existentes entre as gentes de esquerda assim como sobre os caminhos que cada um de nós, à esquerda, deve neste contexto assumir e defender.
Os recentes resultados eleitorais em Itália, na Suécia e mesmo os resultados esperados para as eleições intercalares para os Estados Unidos, entre muitos outros exemplos possíveis, mostram-nos que estes países estão a deslizar politicamente para a direita e este facto tem uma explicação única: deve-se à impotência ou à recusa dos países referidos em aplicar políticas de cariz social-democrático, preferindo antes o modelo neoliberal mas pintado com os valores da Democracia.
Exemplo dessa terrível opção, temos a crise mundial de agora e, como resultado desta crise, a crise europeia ganhou uma outra dimensão, talvez bem mais grave que a crise da dívida soberana quando esta ainda não estava resolvida. Com efeito fazer o que for necessário, como disse Mario Draghi, impediu que a Zona Euro rebentasse, mas não resolveu nenhum dos seus problemas estruturais. O certo é que no contexto atual temos a fome a alastrar, as taxas de juro a aumentar, os salários e as pensões em termos reais a baixar nas economias desenvolvidas. E como se isto não chegasse, temos a guerra da Ucrânia, temos a ausência de um discurso de paz, temos a Europa vassala da política imperial americana como se fosse não um continente de países independentes mas mais um dos estados que compõem os Estados Unidos, o 51ª estado.
É pois neste quadro que temos a Europa impotente para responder aos problemas económicos e sociais que a crise da guerra na Ucrânia não só acelerou como ampliou fortemente.
Tudo isto leva a que muitos dos eleitores se sintam cansados e desiludidos com os resultados das políticas neoliberais, nunca assim assumidas, daí que a direita e a extrema-direita estejam agora em franca ascensão nestes mesmos países. Se há dúvidas, olhe-se para esta Europa martirizada pela política neoliberal assumida e através da qual passa por ser a fiel escrava da política belicista americana (veja-se a entrevista de N. Dupont-Aignan (aqui)
Como exemplo maior deste cansaço sobre a democracia praticada, veja-se o temor que atravessa a sociedade americana hoje mesmo, dia 7 de novembro, face às eleições intercalares com o medo de que a extrema-direita ganhe e fique maioritária numa ou nas duas Câmaras. O perigo é enorme e repare-se, por exemplo no Senado: no Senado irão a votação 35 lugares, onde os democratas atualmente têm uma maioria apenas graças ao voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris.
Perante esta nossa enorme crise que tempos pela frente, e, como no centro dela está a guerra na Ucrânia, procuramos com esta série saber o que se pensa em algumas das linhas de pensamento que compõem a esquerda não oficial, a esquerda que não faz parte do arco do poder, quanto às posições que se devem assumir e defender relativamente à guerra na Ucrânia.
Os textos a publicar são os seguintes:
– Crise na Ucrânia e fantasmas da esquerda, por Armando Steinko
– A Escondida saída da Crise da Ucrânia está bem à vista, à frente dos nossos olhos, por Katrina vanden Heuvel
– A esquerda tem boas respostas sobre a Ucrânia, por Elizabeth Bruenig
– Uma guerra normal, por Alexander Zevin
– Multipolaridade vs. neo-imperialismo e a esquerda extraviada, por Augusto Zamora R.
– O internacionalismo de esquerda no coração do império, por Aziz Rana
– Hubris, Analogia, e A Guerra na Ucrânia, por Peter Beinart
– Meios de destruição, por Wofgang Streeck
– A remilitarização da Europa sobre o olhar cansado da esquerda, por Miguel Urban Crespo
– A guerra na Ucrânia- a narrativa dominante e a esquerda anti-imperialista, por Alain Bihr e Yannis Thanassekos
– Para além da gota viscosa, entrevista a Matt Duss
– Perante a fragmentação da globalização, a urgência da independência e do não-alinhamento – entrevista com Arnaud Le Gall
– Namoriscar com o Armagedão: os EUA e a Ucrânia, por Thomas Palley


