O NATAL NA VISÃO DO PSICANALISTA JOÃO DOS SANTOS

O Natal é a festa que na meninice mais nos alicia, porque se inspira na história do nascimento mitificado de uma criança e porque toda a família se reúne e se comem guloseimas. Mais importante, porém, são os presentes que, na presença de todos e com muitos doces, se recebem como prémio da nossa inocência de meninos, melhor dito, da nossa suposta ignorância acerca da forma como se geram e aparecem os bebés. Que as explicações da criança são diferentes da dos adultos, é evidente; mas quanto à ignorância, ela é apenas a ilusão retrospetiva do adulto, projetada sobre as crianças que estão à sua guarda.

A figuração natalícia surge em cada casa ou em cada país, de formas diferentes mas sempre sublimadas. Na figuração do presépio há as minúsculas figuras que o compõem e que, em certo sentido, se pode comparar à «Recordação encobridora»: um acontecimento cristalizado num bonito quadro. A árvore do Natal é prenhe de frutos radiosos, apetecíveis e em geral intocáveis, porque apenas celebram um nascimento e anunciam os presentes. O pai Natal de uma tradição nórdica -a de S. Nicolau – é o avozinho cuja malícia ingénua e a bondade infinita, representa a outra face do pai ameaçador face aos pecados dos filhos.

O meu amigo Emílio, que trabalha no mesmo campo que eu, acha que algumas pessoas ficam tristes depois de passadas as festas natalícias, e atribui o facto à realidade com que as pesssoas se confrontam de novo, depois de terem mergulhado por um tempo, no banho da sua inocência infantil. Um outro companheiro de trabalho, o João, acha que isso acontece porque as pessoas grandes e pequenas, se procuram ver, narcisicamente, no Menino Jesus, da sua própria infância. Este desejo é bastante meritório e todos nós somos mais ou menos religiosos – todos nós sofremos do que Freud designou por “amnésia infantil”, isto é, da necessidade de tudo esquecer, depois de tudo terdes descoberto. Aos 5 anos uma criança conhece à sua maneira e de acordo com a sua filosofia própria, todos os mistérios da vida dos adultos. Aos 7 esquece tudo, com a ajuda de conhecimentos supostamente objetivos que os companheiros, em termos escabrosos, ou os professores em termos científicos lhe administram. Mas se tudo se pode teoricamente e objetivamente saber acerca dos pais que fazem amor e que fazem bebés, nada pode ser evocado das emoções profundas que nos abalaram quando as descobertas foram feitas, quer dizer, antes de serem faladas. Nesse sentido todos temos necessidade de guardar a nossa inocência e ignorância infantis. Mesmo o catedrático de sexologia.

Em psicanálise infantil usam-se por vezes – e até certa idade – os brinquedos de presépio ou equivalentes. As crianças em terapia brincam com figuras de presépio de maneira extraordinariamente dinâmica, e de tal forma, que, de facto, o presépio nunca chega a sê-lo. O Retábulo, painel de altar ou Recordação encobridora é constantemente desenvolvido e reparado num jogo em que o Eu da criança, parece procurar modelos para uma nova e mais sólida estrutura psíquica; é idêntico ao que acontece nos sonhos que nos permitem até abordar em conversa, terríveis histórias inventadas ou realizadas. A criança realiza com a figuração do presépio a vida da família nos aspetos panorâmicos e convencionais que encobrem o grande melindre do mistério da intimidade dos pais. As flores e árvores com frutos desenhados pelas crianças em situação terapêutica, são muito sugestivas da pureza do corpo da mãe e da curiosidade que impendem sobre frutos do seu ventre. O Avô Natal, o pai que renunciou à sua atitude punitiva e competitiva, a boa imagem parental, aparece sob roupagens diversas nas conceções infantis.

As histórias para crianças, como os mitos antigos, servem para ajudar as pessoas a vencer certos medos que se ligam aos mistérios insondáveis da vida e da morte. Mas, as histórias para crianças são como a intimidade dos pais, de um grande melindre para serem contadas por toda a gente.

Proponho à vossa reflexão o seguinte:

Há pessoas que são capazes de fazer histórias para crianças. Há pessoas que são capazes de contar histórias às crianças. Não é a mesma coisa criar para as crianças e falar às crianças. Há pessoas que não podem falar às crianças porque não as sabem ouvir (as que têm na sua frente e as que têm dentro de si). Saber fazer histórias para crianças e saber contar histórias às crianças, tema fundamentalmente numa meditação de Natal.
Cada um fabrica inevitavelmente «Recordações encobridoras», mitos e histórias para se contar.

A história do nascimento do Menino Jesus é a mais bela história que cada um se pode contar.

Lisboa, Dezembro de 1980. Publicado no Jornal das Letras, Dez, 1980 e em “Ensaios de educação II”- Livros Horizonte, 1991 – p. 199-200.

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