Espuma dos dias — A propósito da Carta de Braga “dos sonhos dos outros”. Por Júlio Marques Mota

 

Dedico este pequeno texto à minha amiga MJ e à memória de António Luzio Vaz. JM

3 min de leitura

A propósito da Carta de Braga “dos sonhos dos outros”

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 22 de Janeiro de 2023

 

Meu caro António

O teu texto bateu-me fundo. Vamos a dois exemplos de puro detalhe: face ao mundo substerrâneo de dor que admitimos existir na nossa juventude mas que factualmente não conhecemos.

Uma vez veio a Coimbra o Presidente dos Palop. Tentei entusiasmá-lo para criação de residências para gente dos Palops e dei-lhe o exemplo do que aconteceu em Lisboa nos tempos do fascismo. Cada um de nós tem necessidade de pertença seja a que entidade for, mas os alunos dos Palop tinham a consciência de pertença a coisa nenhuma. Não era por acaso que a maioria da malta com depressão em Coimbra era das …ilhas, do Algarve ou de África. Longe da família, longe dos afetos, de uma mão que se põe por cima do ombro. Era a caraterística comum. Ninguém me ligou, isso não fazia carreira para ninguém que a queria fazer. Ponto final.

A propósito da mão no ombro. Em 1985 estava eu em Paris e uma emigrante em casa de quem vivia perguntou-me se conhecia o fulano X, filho de emigrantes que viviam perto dela- não sei o seu nome. Disse-lhe que não o conhecia, disse-me que estava no terceiro ano da Faculdade onde eu era professor. Registei o nome e quando cheguei a Coimbra convoquei-o para o meu gabinete.

Procurei saber o seu registo estudantil – era um desastre. Procurei saber do seu enquadramento académico, um zero absoluto. Disse-lhe que o ia enquadrar a partir das minhas cadeiras colocando-o em grupos de trabalho. Fi-lo. Ganhou amizades. Depois disso passou a tudo. Um dado curioso, filho de emigrantes pobres, vinha para a Faculdade de Mercedes! Não gozemos com isto, era uma manifestação de pássaro abandonado à procura que alguma outra ave desabrigada poisasse  naquele abrigo. No fundo, o que ele precisava era de uma mão no ombro que ninguém lhe dava.

Este exemplo, para os felizardos da vida, pode parecer patético e até ecoar a coisa antiga. De facto, remonta a 1985. Aqui deixo um exemplo bem mais próximo, de 2012-2014. Uma funcionária da minha Faculdade pede-me empenhadamente se lhe podia arranjar uma borla para um oftalmologista para o neto. O pai do miúdo estava desempregado devido à crise da dívida soberana e com a vida de rastos devido aos arrestos das finanças e da banca devido à crise. A mãe, era professora precária como muitos milhares que agora estão na rua a gritar contra a precariedade imposta. Arranjo a consulta e marco encontro ao pé de minha casa a 300 metros do Hospital. A mãe vem de carro com o miúdo, um BMW. O carro, era o que restava da crise em que a família se tinha afundado e que mais tarde também foi vítima de arresto. Naquele momento vi o mundo ao contrário: aquilo que noutro contexto seria um sinal de abundância, meu Deus, era ali um sinal da pobreza extrema. O problema do miúdo não era fácil. Ficou registado para acompanhamento anual no Pediátrico.

Senti um profundo respeito por aquela mãe, que não conhecia até ali, por aquele menino que garantidamente iria ter uma vida difícil pela frente, pela avó que muito terá chorado pela situação familiar terrível que lhe  caiu em cima, pelo pai a quem cerca de um ano antes  paguei a impressão do texto com que me despedi da Universidade, A minha última aula: De Ricardo a Marx, de Marx a Ricardo, nos caminhos da globalização.

Independentemente de Mercedes ou BMW, o que temos são dois tipos de precariedade bem diferentes: a do dono do Mercedes era um problema de isolamento social que traduzia num rendimento escolar pobre, a da dona do BMW era um problema de dinheiro e que se iria traduzir depois num mal-estar familiar enorme e num rendimento escolar degradado do miúdo. Precariedades diferentes… mas que Deus nos livre de qualquer uma delas e que lamentavelmente atravessam quase toda a sociedade portuguesa.

Mas a precariedade do jovem era outra coisa, era a da solidão numa altura em que este a devia desconhecer, era o problema de quem se sentia muito só e quando estava rodeado de muita gente nas salas de aulas, onde se ouve e não se fala. E falo de Coimbra, onde à época tínhamos um homem extraordinário à frente dos Serviços Sociais da Universidade de Coimbra, António Luzio Vaz, que para infelicidade de muitos jovens a morte levou bem cedo. Mas o problema deste estudante não era dinheiro, era um problema de inserção num meio muito fechado a quem era de fora. Mas quanto a isto ninguém liga e é assim que estamos a criar a nossa juventude, muita dela desprovida de quase tudo o que precisa para se fazerem serem jovens adultos e cidadãos úteis à sociedade e não um problema para ela. Um exemplo mais caricato: no tempo do fascismo havia por aqui os serviços médico-sociais, alimentados gratuitamente pelos médicos que lá trabalhavam gratuitamente. Hoje não há nada disso. Com 17-18 anos colocas um filho a centenas de quilómetros de casa sem nenhum apoio – ele que se desenrasque. Podia-te contar k-casos mas podemos generalizar estes dois exemplos: o dos Palops e os serviços médico sociais que não existem.

Ah, lembro-me de um caso de um tipo da Guiné. As notas dele no primeiro semestre eram um desastre, as do segundo estavam na média ou para cima da média. Perguntei-lhe a razão da discrepância e a resposta foi aterradora: de inverno estudava na cama porque tinha frio e muitas vezes deixava-se dormir. Hoje é um respeitável quadro africano.

Há muito que aprender com este teu texto, sendo certo que é muito incómodo porque reflete também o tipo de vida que se está a dar aos nossos filhos e netos. Mas ninguém quer saber, isso não se escreve em nenhuma linha de nenhum curriculum. Protestar contra isso é patético, é coisa de velho descartável que, como inútil que então é, não tem mais que fazer do que chatear os que progridem na vida. A lógica do descartável no outro extremo da vida.

 

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