Espuma dos dias — Uma história de lamentar que as curvas da vida não deixaram que fosse uma história de encantar. Por Júlio Marques Mota

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Uma história de lamentar que as curvas da vida não deixaram que fosse uma história de encantar

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, em 24 de Janeiro de 2023

 

Hoje tive de levar a minha neta mais pequena a Medicina Dentária, um serviço público, onde está a ser acompanhada por problemas de dentição. Houve greve na sua escola e estava em casa, com a mãe a trabalhar. Por volta do meio-dia fui-lhe levar almoço, para ela e para a irmã. Depois, voltei para casa, almocei e por volta da 1 e 30 apanhei um táxi na estação de táxis situada à entrada dos HUC. Disse que me levasse à Praceta Fausto Correia onde ia buscar uma miúda, minha neta, e que seguíamos depois para medicina dentária. Sim senhor, disse ele. Depois, já com o carro em andamento perguntou-me se trabalhava no Hospital. Disse-lhe que não e questionei-me com os meus botões: porque carga de água é que haveria de trabalhar no Hospital e mantive-me em silêncio à espera de que ele retomasse a conversa. E retomou.

E a conversa tomou um aspeto quase que alucinante. Disse-me mais ou menos isto:

No sábado passado tinha levado um casal de idosos à cidade X.. Cheguei à casa dos velhotes, deixei-os à porta da casa, junto à delegação de um grande clube desportivo de nível nacional. No dia seguinte volto ao mesmo local para almoçar no restaurante do clube de que sou adepto. Vou com o meu irmão, a minha neta e um sobrinho. À saída, quando ia a entrar para o carro, do lado oposto ao meu lugar de condutor, junto ao passeio vi que estava um carro pequeno, de porta meio aberta e de que se via a perna de uma senhora. Olhei melhor e não vi ninguém. Estranhei, voltei a fechar a porta do meu carro e dirigi-me para a porta do outro carro. Olhei para dentro, e a senhora estava desajeitadamente deitada, como se estivesse a dormir, com os copos. Falei-lhe e… nada. Abanei o carro e… nada Sentei-a no carro e caiu imediatamente no banco. Tomei-lhe a pulsação e… nada. Olho para a cor da pele e havia um tom levemente estranho. Pego no telefone e ligo ao 112.

Atendem-me bem. Perguntam-me se sei praticar os primeiros socorros. Disse que sim. Tinha aprendido num curso de primeiros socorros para crianças. Dizem-me para rasgar a roupa e aplicar o que sei até que chegassem socorros especializados. Depois, fi-lo como sabia durante cerca de 20 minutos, até que chegaram os socorros médicos. Aí estavam eles numa Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER). Desse ponto de vista tudo correu bem, muito bem mesmo: Tiveram o cuidado, inclusive, de informar a Cruz Vermelha que chegou ao local quase ao mesmo tempo que os especialistas do INEM. Procederam rapidamente à reanimação, o aparelho começou lentamente a indicar as pulsações. Levaram cerca de 40 minutos nisto. Entubaram a senhora e partiram para os HUC.

A imagem da senhora não me sai da cabeça. Ontem, segunda-feira tive mesmo pesadelos. Gostava tanto de saber se a recuperei para a vida ou não.

Olho em frente e pelo canto do olho sinto-lhe uma tremura nos lábios e ouço uma enorme densidade afetiva na voz. Seguramente, sinto bem mais que isso: sinto a força da fraternidade naquela voz tensa, naquela história contada aos solavancos de um táxi que quer chegar ao destino, naqueles gestos que expressavam mil palavras de ternura, sinto o calor que emana dos fios invisíveis com que a fraternidade é tecida, quando o é. Sublinho que estamos em época de Covid e assim aquele procurar agarrar com toda a sua força uma vida que se lhe escoava pela frente ou entre os dedos da sua mão, é, silenciosamente, um ato de herói, um herói no silêncio de todos nós. Digam-me o que disserem.

Vou saber o que se passou, digo. Dê-me o seu telefone, dê-me o seu nome: Rui Camelo. Tinha já as coordenadas, tinha o sítio de referência quase ao lado da sucursal do grande clube desportivo, tinha o dia e a hora, e conhecia gente dessa cidade e com uma delas a morar próximo dali. Entretanto, cheguei ao meu destino com a minha neta, à Medicina Dentária.

Entro então na sala de espera de Medicina Dentária. Mais de uma dezena de crianças estão ali à espera. Procede-se à inscrição e aguarda-se. Olho para a composição da sala e claramente era tudo gente da pequena burguesia ou abaixo, com exceção de alguém com larga deficiência que era de origem mais humilde ainda. A burguesia não está aqui, pensei, e não está, essa anda pelos consultórios privados. A gente do poder não precisa do SNS, portanto, não tem de defender os investimentos públicos neste setor, pode deixar afundá-lo na escassez de recursos, pode estar interessada em fazer do SNS um simulacro do que todos desejaríamos que o Serviço Nacional de Saúde fosse. Somos todos Centeno, somos todos austeridade, é o que esta frase significa, dizia o antigo ministro da Saúde. Recordemos a imprensa da época:

“O ministro da Saúde negou esta quinta-feira, no parlamento, a existência de qualquer cisma com o titular da pasta das Finanças e, perante as acusações da oposição neste sentido, garantiu: No Governo “somos todos Centeno”.

Adalberto Campos Fernandes falava na Assembleia da República durante um debate com caráter de urgência sobre o estado da saúde, solicitado pelo PSD, em resposta à deputada Isabel Galriça Neto (CDS), para quem, neste setor, “só falta mesmo um grupo de trabalho para apoiar os grupos de trabalho que o ministro da Saúde vai criando“.

E para reforçar a ideia, Adalberto Campos Fernandes afirmou: “Em matéria de rigor orçamental, de crescimento e de sucesso das contas públicas, eu diria mesmo que no Governo somos todos Centeno”. Para o ministro da Saúde, a estratégia do Governo, com Mário Centeno como ministro das Finanças, contribuiu para a consolidação das contas públicas e para a credibilidade externa de Portugal.” Fim de citação.

No contexto daquela sala de espera de Medicina Dentária, foi curioso assistir a dois pormenores: cada criança era chamada na sala pelo seu médico e ia sem familiar lá para dentro. Depois, à saída da consulta era, de novo, acompanhada pelo seu médico assistente que vinha falar com os familiares. Tudo isto com uma enorme ternura que muito admirei. Neste entretempo, a minha neta mostrou-me uma pulseira que tinha feito de supostas “pérolas” e que trazia consigo pois era para oferecer ao seu médico! Foi chamada e a consulta durou quase duas horas. Pelo que terei percebido eram várias equipas formadas por dois estagiários e um médico efetivo. Explicaram-me a razão de ser das duas horas de consulta. Era uma miúda que precisava de acompanhamento de dentista com muita regularidade dada a sua tendência para fazer cáries. A cárie que tinha sido tratada era extensa. Marcou-se consulta para fevereiro. Enquanto esperei por ela, enquanto ia vendo o carinho com que as crianças eram tratadas, sentia-me orgulhoso pelas gentes que trabalham no nosso Serviço Nacional de Saúde. Exemplo disto, deste banho de ternura em que as crianças eram envolvidas, está a pulseira de supostas “pérolas” que a minha neta trazia no bolso para oferecer ao “seu médico” assistente.

                       Hospital de São João, Porto

 

A maioria destes prestadores de cuidados de saúde, médicos, enfermeiros, outros quadros técnicos, senão mesmo a totalidade eram pessoas de baixas remunerações, de más carreiras profissionais sobretudo depois da Troika ter invadido a vida de todos nós, isso sabemo-lo todos, mas via-se ali que era gente de muitas emoções, de muitos sentimentos para com os filhos dos outros. Foi a isto que eu assisti. Olhei para a miúda adolescente com múltiplas deficiências,  que alguém, mãe ou de um outro grau de parentesco, de vez em quando carinhosamente lhe limpava a boca porque se babava, vi a ternura com que era cuidada por todos e todas, e lembrei-me de um escritor inglês, com uma filha deficiente, a relatar o calvário que uma situação equivalente a esta  o obriga a viver com a sua filha. Vale a pena comparar esta nota com o que nos diz IAN BIRRELL sobre o SNS da Inglaterra e aqui vos deixo alguns pequenos excertos desse texto (original aqui) :

“O meu desencanto quanto à mitologia do SNS veio com o nascimento de uma filha de que se veio a descobrir como tendo profundas deficiências e problemas de saúde. A minha família caiu numa situação infernal com esta situação e com o que estava por baixo da ideia mítica do SNS, vislumbrando a arrogância, inércia, insensibilidade e desperdício que está por baixo da sua imagem santificada. Nunca esqueci a nossa primeira visita à Great Ormond Street e ouvir uma rececionista dizer com ar alegre: “Ninguém lhe disse – a sua consulta foi cancelada?” a um jovem casal desesperadamente preocupado que tinha viajado do Nordeste com o seu pequenino bebé doente. Depois vieram anos de luta contra a burocracia – respondendo às mesmas perguntas uma e outra vez – enquanto se testemunhavam erros, se lutava contra a letargia e se lidava com egos médicos.”

As minhas exposições sobre o tratamento bárbaro de pessoas autistas e cidadãos com dificuldades de aprendizagem, dececionados por um sistema de cuidados disfuncionais e metidos em detenção abusiva em unidades psiquiátricas hediondas durante muitos anos, levaram a cinco inquéritos, a promessas intermináveis de ação, a prémios pessoais – mas nada mudou. Outras vítimas de falhas do SNS tendem a ser pessoas idosas, como se revelou mais notoriamente com o inquérito sobre centenas de mortes em condições vergonhosas em dois hospitais no meio de Staffordshire, e pacientes do sexo feminino. “O nosso sistema de saúde falha de forma desproporcionada em ouvir as mulheres e em assegurar o apoio de que precisam “, admitiu o Governo há dois anos, em resposta a mais três escândalos de tratamento horrorosos.

Agora enfrentamos a questão de como salvar um serviço de saúde que parece ter atingido um ponto de rutura em tantas frentes. Lamentavelmente, grande parte deste debate continua a ser superficial, interessado ou fixo no passado.” (…)

“Os nossos dirigentes falharam espetacularmente em enfrentar esse desafio nacional crítico. Os políticos favorecem os sindicatos médicos sobre o pagamento, os lobistas da indústria de alimentos sobre medidas de obesidade e os eleitores locais sobre a ameaça de encerramento de hospitais. Eles pedem “reforma” ou “modernização”, mas oferecem ideias extremamente pequenas em escala – como simbolizado pela sugestão de Rishi Sunak durante a campanha da liderança conservadora de uma multa de £ 10 por faltar a uma consulta de clínica geral para ajudar a melhorar o SNS.” Fim de citação

Podemos não ter políticos à altura do que como povo somos, e não temos mesmo como se tem visto claramente nestes dois últimos meses (em que a falta de ética atingiu um ritmo alucinante), podemos estar cheios de políticos que veem a política não como uma missão mas como um meio de se acomodarem com a sua conta bancária (mas sublinhe-se que não são todos), podemos ver e sentir que para muitos dos eleitos a ética não está na política que fazem, a ética está na lama onde eles a lançaram. Lamentavelmente, assim, mas estes dois exemplos praticados pelos profissionais dos mais desfavorecidos setores em termos de condições de vida e de remunerações, saúde e educação (simbolizado este último pelos professores e pelos médicos estagiários), mostram-nos que não devemos perder a esperança de vir a ser um país bem melhor, se politicamente soubermos como nos impor aos desmandos de muitos dos nossos políticos. Se assim não for, muitos daqueles profissionais que vi trabalhar com a qualidade expressa serão engolidos pela mercantilização da saúde pública e irão alimentar os Instituições de Medicina Privada e  ajudar a desfalcar as contas públicas. Muitos deles partirão mesmo para o estrangeiro, para países mais ricos que o nosso e que também decidiram ao longo de décadas poupar na saúde e na formação do pessoal que pratica os cuidados de saúde.

Estamos a viver um período politicamente muito complicado pelas razões bem conhecidas e levemente aqui enunciadas, mas não devemos esquecer que o que se está a passar tem a ver com uma década perdida-2010-2020 e que há responsáveis pelos erros cometidos nesta décadas e que agora estão a rebentar à frente dos nossos olhos. Contam-se principalmente Cavaco Silva, Sócrates, Passos Coelho e António Costa. O PS, por seu lado, está também a pagar a fatura de ter andado sucessivamente a esconder a política austeritária que Bruxelas (UEM), Frankfurt (BCE) e Washington (FMI) nos têm imposto.

Relembro aqui o que nos diz recentemente o Financial Times sobre o tema e relativamente à Inglaterra. Desse texto (ver aqui) veja-se o seguinte excerto:

O problema é que, quando se é atingido por uma pandemia, uma crise energética e um ato de autossabotagem económica grosseira em muito pouco tempo, os seus serviços públicos agora frágeis e exaustos vão ceder onde um sistema saudável teria suportado a tensão. Doze anos após o início da austeridade, os dados pintam um quadro condenatório, desde salários estagnados e produtividade congelada até doenças crónicas crescentes e um serviço de saúde de joelhos.”

“(…), a austeridade é um assassino lento e silencioso. Durante a melhor parte dos doze anos, os Conservadores semearam as sementes da austeridade. Este ano, estão a colher os seus frutos.” Fim de citação.

E esses frutos bem amargos nós também os estamos a colher, como se mostra com as manifestações na rua e com o mal-estar que se sente por todo o lado aonde se vá. A austeridade é um assassino lento, diz-nos o jornalista do jornal financeiro de grande nomeada, o Financial Times, e nós também aqui sentimos que é a Democracia que está a ficar em perigo, agonizante, mas poupem-nos, porque fascismo nunca mais. Deste deveríamos estar todos nós demasiado cansados e fartos para poder suportar esta ideia. Devemos estar todos muito cansados e fartos, mas será que estamos mesmo todos nós?

Saio de Medicina Dentária, telefono a um amigo e conto-lhe a história do taxista acima reproduzida. Eu vou saber, é o que me diz. Duas horas depois tenho a resposta: a senhora tinha tropeçado em toda a velocidade num grande pedregulho que foi a vida para ela e morreu. Foi a notícia que lhe transmiti. Levará dias a esquecer, mas não lhe será fácil. Eu, por exemplo, reduziria racionalmente a dor a zero, mas nunca esqueceria o acontecimento como não esquecerei os heróis de hoje: médicos, enfermeiros, INEM, taxista. Entretanto, para meu conforto pessoal, pedi a esse meu amigo que indagasse de outro a forma do que se passou, procurando saber sobretudo o perfil sociológico daquela infeliz mulher que morre daquela maneira. E morreu sozinha, talvez, como morre a culpa em Portugal, sem culpados. Por isso, gostava de saber um pouco mais, tal como o taxista, sobre as razões sociais que poderão estar na base da morte daquela mulher que não conheci [1].

 


Nota

[1] Já com o texto terminado, telefonam-me e dizem-me alguns pormenores sobre esta infeliz mulher, recolhidos entre gente da zona onde se verificou o acidente fatal. Casada, 45 anos, com o marido a trabalhar no estrangeiro, vivia perto da cidade média onde morreu, numa aldeia. Possivelmente a solidão, possivelmente um caminho utilizado para sair dela, a cocaína, e uma quebra relacional com o marido, terão traçado o seu destino, o seu fim: possivelmente uma overdose, é o que me dizem os interlocutores da cidade X, no telefonema que acabo de receber. A solidão está no centro de tudo isto e esta é uma das armas assassinas mais temíveis das sociedades de hoje, uma realidade que o Covid aprofundou ainda mais. Pessoalmente, nem imagino o que se deve estar a passar nas urgências dos Hospitais em madrugadas de fim-de-semana, ou talvez imagine.

 

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