Espuma dos dias — “No Golfo, o livre arbítrio triunfa sobre o determinismo”, por M.K. Bhadrakumar

Seleção e tradução de Francisco Tavares

6 min de leitura

No Golfo, o livre arbítrio triunfa sobre o determinismo

 Por M.K. Bhadrakumar

Publicado por  em 22 de Março de 2023 (ver aqui)

 

O Presidente dos EAU, Sheikh Mohammed (R), recebeu o Presidente Assad da Síria em visita oficial no aeroporto de Abu Dhabi, a 19 de Março de 2023.

 

Evidentemente, os estados regionais estão a aproveitar o “sentimento de bem-estar” gerado pelo acordo entre a Arábia Saudita e o Irão. Há sinais de um abrandamento geral das tensões.

 

A mediação da China para normalizar os laços diplomáticos entre a Arábia Saudita e o Irão tem sido amplamente bem acolhida internacionalmente, especialmente na região da Ásia Ocidental. Um punhado de estados descontentes que não querem ver a China tomar o avanço em qualquer frente, mesmo que ela faça avançar a causa da paz mundial, assistiram em silêncio a ação de mediação.

Os EUA lideraram este bando de almas mortas. Mas os EUA também se encontram confrontados com um dilema. Poderá dar-se ao luxo de ser um desmancha-prazeres? A Arábia Saudita não é a fonte da reciclagem de petrodólares – e, portanto, um pilar do sistema bancário ocidental – mas também o mercado número um da América de exportação de armas. A Europa está a enfrentar uma crise energética e a estabilidade do mercado petrolífero é uma preocupação primordial.

A Arábia Saudita demonstrou uma maturidade notável ao afirmar que a sua política “Look East” e a parceria estratégica com a China não significa que estejam a pôr de lado os americanos. Os sauditas estão a atuar com cautela.

Afinal, Jamal Khashoggi foi um activo estratégico dos poderes estabelecidos de segurança dos EUA; os EUA são uma parte interessada na sucessão saudita e têm um registo consistente de patrocínio de mudanças de regime para criar regimes maleáveis.

No entanto, o facto é que o acordo entre a Arábia Saudita e o Irão crava uma facada no coração da estratégia dos EUA para a Ásia Ocidental. O acordo deixa os EUA e Israel muito isolados. O lobby judeu pode mostrar o seu descontentamento durante a candidatura do Presidente Biden a outro mandato. A China roubou terreno aos EUA com consequências de grande alcance, o que significa um desastre de política externa para Biden.

Washington não proferiu a última palavra e pode estar a conspirar para impedir que o processo de paz se converta na política dominante da região da Ásia Ocidental. Os comentadores americanos estão a ver que a normalização saudita-iraniana será um longo caminho e que as probabilidades de insucesso são fortes.

No entanto, os protagonistas regionais já estão a criar localmente proteções para preservar e fomentar o novo espírito de reconciliação. Naturalmente, a China (e a Rússia) também dão uma ajuda. A China sugeriu a ideia de uma cimeira regional entre o Irão e os membros do Conselho de Cooperação do Golfo até ao final deste ano.

Um funcionário saudita anónimo disse ao diário do establishment saudita Asharq Al-Awsat que o Presidente chinês Xi Jinping abordou o Príncipe Mohammed bin Salman, Príncipe Herdeiro Saudita e Primeiro-Ministro, no ano passado, sobre Pequim servir de “ponte” entre o Reino e o Irão e este último saudou-o, pois Riade considera estar Pequim numa posição “única” para exercer um “efeito alavanca” inigualável no Golfo.

“Para o Irão em particular, a China ou é o nº 1 ou o nº 2 em termos dos seus parceiros internacionais. E por isso o efeito alavanca é importante a esse respeito, e não se pode ter uma alternativa igual em importância”, acrescentou o funcionário saudita.

O funcionário saudita afirmou que o papel da China torna mais provável que os termos do acordo se mantenham. “Ela (China) é uma das principais partes interessadas na segurança e estabilidade do Golfo”, observou ele. O funcionário também revelou que as conversações em Pequim envolveram “cinco sessões muito aprofundadas” sobre questões espinhosas. Os temas mais difíceis estavam relacionados com o Iémen, os meios de comunicação social, e o papel da China, disse o oficial.

Entretanto, também há notícias positivas no ar – a probabilidade de uma reunião a nível de ministros dos negócios estrangeiros entre o Irão e a Arábia Saudita num futuro próximo e, mais importante ainda, a carta de convite do rei Salman da Arábia Saudita ao presidente iraniano Ebrahim Raeisi para visitar Riade. O Ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano Hossein Amirabdollahian observou no domingo, referindo-se à crise iemenita, que “Nós [Irão] estamos a trabalhar com a Arábia Saudita para garantir a estabilidade da região. Não aceitaremos qualquer ameaça contra nós por parte dos países vizinhos”.

É certo que o ambiente regional está a melhorar. Surgiram sinais de um abrandamento geral das tensões. Na primeira visita deste tipo em mais de uma década, o Ministro dos Negócios Estrangeiros turco esteve no Cairo e o ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio esteve na Turquia e na Síria. Na semana passada, no regresso de Pequim, o Almirante Ali Shamkhani, secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irão, esteve nos EAU, onde o Presidente Sheikh Mohammed o recebeu.

Pouco depois, no domingo, o Presidente sírio Bashar al-Assad chegou aos Emirados Árabes Unidos em visita oficial. “A Síria esteve ausente dos seus irmãos durante demasiado tempo, e chegou o momento de regressar a eles e ao seu meio ambiente árabe”, disse o Xeque Mohamed a Assad durante o seu encontro histórico no palácio presidencial.

Numa entrevista com NourNews, Shamkhani descreveu os seus cinco dias de conversações em Pequim que conduziram ao acordo com a Arábia Saudita como “franco, transparente, abrangente e construtivo”. Ele disse: “A eliminação de mal-entendidos e o olhar para o futuro nas relações Teerão-Riyadh conduzirá definitivamente ao desenvolvimento da estabilidade e segurança regionais e ao aumento da cooperação entre os países do Golfo Pérsico e o mundo islâmico para gerir os desafios existentes”.

Evidentemente, os estados regionais estão a aproveitar o “sentimento de bem-estar” gerado pelo entendimento saudita-iraniano. Ao contrário da propaganda ocidental de um distanciamento ultimamente entre a Arábia Saudita e os EAU, o Xeque Mohammed está a identificar-se de perto com as tendências positivas no ambiente regional.

É aqui que o papel global da China na promoção do diálogo e da amizade se torna decisivo. Os países regionais consideram a China como um interlocutor benigno e as tentativas concertadas dos EUA e dos seus parceiros juniores de atropelar a China não têm qualquer impacto nos Estados regionais.

A China tem imensos interesses económicos na região – especialmente, a expansão da Rota da Seda na Ásia Ocidental. A estabilidade política e a segurança da região, portanto, é de interesse vital para Pequim e leva-a a tornar-se o patrocinador e garante do acordo Saudita-Iraniano. Claramente, a durabilidade do acordo não deve ser subestimada. O acordo saudita-iraniano continuará a ser o acontecimento mais importante da Ásia Ocidental durante muito tempo.

Fundamentalmente, tanto a Arábia Saudita como o Irão têm a obrigação de o deslocar o centro das suas estratégias nacionais em direção ao desenvolvimento e ao crescimento económico. Isto tem merecido pouca atenção. Os meios de comunicação ocidentais ignoraram-no deliberadamente e, em vez disso, demonizaram o Príncipe Herdeiro Saudita e criaram um cenário catastrófico para o regime islâmico do Irão.

Dito isto, a incógnita conhecida é a tensão que se acumula sobre o programa nuclear do Irão. A questão está entre os pontos mais proeminentes de discórdia entre Teerão e o Reino. Além disso, as ameaças israelitas de ataques às instalações nucleares do Irão estão a aumentar. Significativamente, espera-se que o ministro dos Negócios Estrangeiros Amirabdollahian do Irão visite Moscovo esta semana.

É necessário um esforço coordenado russo-chinês para evitar que os Estados Unidos suscitem a questão nuclear em conjunto com Israel e aumentem as tensões, incluindo as tensões militares, de tal forma que disponham de um pretexto para desestabilizar a região e marginalizar o acordo saudita-iraniano enquanto leitmotiv da política regional.

Todas as partes compreendem demasiado bem que “se o acordo de Pequim se concretizar, o violento e fanático governo israelita de direita será o primeiro a perder, pois o respeito pelo acordo daria origem a um sistema regional estável e próspero que estabelece o rumo para novas normalizações e todas as conquistas que delas resultam”, como escreveu hoje um colunista libanês no jornal Asharq Al-Awsat.

Em suma, os estados regionais estão a agir de livre vontade, cada vez mais e evitando o seu determinismo que estava ligado a decisões e acções que se pensava serem causalmente inevitáveis. Agora deram-se conta de que está dentro da capacidade dos Estados soberanos tomarem decisões ou executarem acções independentemente de qualquer evento ou estado anterior do universo.

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O autor: M.K. Bhadrakumar, antigo embaixador da Índia, analista político. Durante 3 décadas a sua carreira diplomática foi dedicada a missões nos territórios da antiga União Soviética, Paquistão, Irão e Turquia. Escreve principalmente sobre a política externa indiana e os assuntos do Médio Oriente, Eurásia, Ásia Central, Ásia do Sul e Ásia-Pacífico. O blog Indian Punchline, segundo o autor, reflecte as marcas de um humanista contra o pano de fundo do “século asiático”, sublinhando isto porque vivemos em tempos difíceis, especialmente na Índia, com uma polarização tão aguda nos discursos – “Ou estás connosco ou contra nós”.

 

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