Espuma dos dias — “A mais poderosa demolição do caso Russiagate até à data”, por Patrick Lawrence

Seleção e tradução de Francisco Tavares

12 min de leitura

A mais poderosa demolição do caso Russiagate até à data

Patrick Lawrence celebra o ensaio de Jacob Seigel na revista Tablet sobre a “fraude do século”.

 

 Por Patrick Lawrence

Publicado por  em 30 de Abril de 2023 (ver aqui)

Publicado originalmente por  The Scrum em 28 de Abril de 2023 (ver aqui)

 

(Gerd Altmann auf Pixabay)

 

Em meados do caso Russiagate, quando se tornou claro que a América estava a voltar às neuroses colectivas dos anos 1950, comecei a pensar que teríamos de esperar que os historiadores do futuro recuperassem a verdade enterrada viva na fossa das mentiras e das operações de propaganda cínica que o Estado profundo – e sinto-me à vontade por utilizar este termo – nos infligiu em resposta à ascensão de Donald Trump na política nacional. Parecia não haver forma de resolver a confusão no meio das vagas incessantes de desinformação a que os nossos media corporativos nos sujeitaram.

A tarefa, para quem se dedicava à escrita, era escrever com verdade para os leitores, claro, mas também contribuir, ainda que modestamente, para um registo que abrisse um buraco na fachada dos principais meios de comunicação social, de modo a que os historiadores posteriores, ao olharem para o nosso tempo, pudessem ver as coisas como elas eram realmente. Não se trata de uma ideia exótica: A América tem tido histórias alternativas deste tipo quase desde que se chama América, e reflectem frequentemente leituras revisionistas de relatos contemporâneos.

Jacob Seigel acaba de prestar um enorme serviço a todos nós e a todos os historiadores vindouros. Publicou recentemente  um artigo na revista Tablet, onde é editor sénior. O seu subtítulo, “Treze maneiras de olhar para a desinformação” (Thirteen Ways of Looking at Disinformation), é literário, corajoso e sugestivo do conteúdo do artigo que lhe está subjacente.

Trata-se da análise mais poderosa e sustentada sobre o desastre do Russiagate que já li até hoje – e certamente o melhor trabalho publicado até à data sobre a destruição da democracia americana às mãos de uma elite governante que inventou (1) a ficção de uma crise de desinformação e (2) o assustador aparelho que agora nos afoga em desinformação em nome do combate à mesma. “A desinformação é ao mesmo tempo o nome do crime e o o meio de o encobrir”, escreve Seigel com vigor, “uma arma que funciona como um disfarce”.

Ligação aqui

 

Há anos que Seigel se debruça sobre as narrativas ortodoxas nas páginas da Tablet, uma animada revista de assuntos judaicos publicada desde 2009 e que parece ter um lugar para os iconoclastas e os que quebram tabus. Seigel é excelente em matéria de desinformação, o que parece ser um dos seus temas favoritos. Há um ano, publicou “Invasion of the Fact-Checkers” (Invasão dos verificadores de factos), no qual retratou o fenómeno da verificação de factos como “a nova brigada de censura oficial e não oficial do Partido Democrata, que tem o monopólio público-privado das plataformas tecnológicas”.

Bem visto e bem dito, Jake.

Se querem um argumento a favor dos jornalistas independentes como fonte do dinamismo do ofício, Jacob Seigel dá-vos um. Os seus artigos são mais do que meras reportagens. Valorizo-os pelo contexto e pelo enquadramento intelectual que ele constrói de modo que ao lê-los terminemos por compreender e conhecer.

Neste caso, Seigel faz mais, muito mais, do que abrir a cortina sobre o fiasco atroz a que chamamos Russiagate e o que ele vê como a sua consequência mais profunda – a ascensão de uma indústria de desinformação cujo objetivo é controlar o discurso público de tal forma aprofundada que consegue controlar tanto o que pensamos como o que dizemos. O autor contextualiza historicamente esses anos, identifica os responsáveis por este projecto maligno e explora as implicações altamente perturbadoras deste empreendimento de desinformação para a forma como vivemos agora e para a forma como viverão os que vierem depois de nós, a menos que os que estiverem vivos dominem e depois eliminem esta besta.

“Se a filosofia subjacente à guerra contra a desinformação pode ser expressa numa única frase, é esta”, escreve Seigel numa das suas melhores linhas. “Não se pode confiar na nossa própria mente.”

Esperei durante anos por um artigo tão penetrante, abrangente e intelectualmente honesto. Qualquer pessoa que tenha ficado enojada com as terríveis corrupções dos anos do caso Russiagate e que tenha ansiado por um escritor que identificasse as suas realidades abrangentes irá admirar este longo ensaio e a raiva controlada que o impregna – cada palavra merece o seu lugar. Qualquer pessoa que tenha sido despedida, anulada, levada à falência, censurada, denunciada, expulsa da cidade ou silenciada de qualquer outra forma sentirá o prazer subtil que advém da vingança. É o meu caso, eu sinto-o, sem dúvida.

 

“Totalitarismo liberal”

 

Donald Trump na Convenção Nacional do Partido Republicano de 2016. (Grant Miller/RNC)

 

Também me lembro de pensar, quando Trump conduzia a sua campanha de 2016 e ganhava as eleições em Novembro, que a maioria das pessoas que o achavam censurável estavam de cabeça para baixo. Trump virá e Trump irá, pensei eu: aquilo que mais ameaçava a política era a iliberalidade emergente dos liberais americanos. Estas pareciam ser as pessoas que estavam a caminho de destruir o que restava da nossa democracia, e estariam connosco muito depois de Donald Trump ter desaparecido. “Totalitarismo liberal” era o termo que um falecido amigo usava para aquilo a que assistíamos juntos. Percebi o seu ponto de vista, mas achei-o demasiado forte.

Depois de ler o artigo excepcionalmente perspicaz de Jacob Seigel, deixei de o achar demasiado forte.

Seigel faz uma discriminação crítica entre o Estado profundo – “funcionários governamentais não eleitos que têm poder administrativo para se sobreporem aos procedimentos oficiais e legais de um governo” – e a ascensão de uma classe dirigente liberal. Embora os dois se sobreponham em muitos pontos, esta é uma distinção essencial para compreendermos o que aconteceu durante os anos do Russiagate, quando esta classe emergiu como uma força hegemónica:

“Uma classe dirigente descreve um grupo social cujos membros estão ligados entre si por algo mais profundo do que a posição institucional: os seus valores e instintos partilhados. … É constituída por pessoas que pertencem a uma oligarquia nacional homogénea, com o mesmo sotaque, maneiras, valores e formação académica, de Boston a Austin e de São Francisco a Nova Iorque e Atlanta. …

Só outros membros da sua classe podem ser autorizados a liderar o país. Ou seja, os membros da classe dominante recusam-se a submeter-se à autoridade de qualquer pessoa fora do grupo, a quem desqualificam como elegível, classificando-a de alguma forma como ilegítima. …

Em que é que os membros da classe dirigente acreditam? Acreditam … em soluções informativas e de gestão para os problemas existenciais e no seu próprio destino providencial e no de pessoas como eles para governar, independentemente dos seus fracassos. Enquanto classe, o seu princípio mais elevado é o de que só eles podem exercer o poder …”

Agora já sabem porque é que os liberais me assustam mais do que Donald Trump alguma vez assustou. Trump é, no fundo, um pacóvio passageiro. Esta gente é maligna e mortalmente séria e não vai a lado nenhum.

A vitória de Hillary Clinton em 2016 tinha como objectivo consolidar a preeminência da classe dominante liberal. Foi a sua derrota inesperada que levou os liberais a defenderem a sua hegemonia “fundindo a infra-estrutura de segurança nacional dos EUA com as plataformas dos media sociais, onde a guerra estava a ser travada”, como diz Seigel. Isso significava “controlar todos os setores da sociedade sob uma única regra tecnocrática”.

Totalitarismo liberal?

 

‘O Complexo de Contra-Desinformação’

 

Arte de rua em Washington, D.C., por Craig Tinsky, 2019. (Mike Maguire, Flickr, CC BY 2.0)

 

“Thirteen Ways of Looking at a Blackbird”, de Wallace Stevens, escrito no início da carreira do poeta modernista e publicado no seu primeiro livro, Harmonium, é a referência de Seigel. É uma alusão útil. Stevens procurava frequentemente as formas como a nossa mente e a nossa imaginação podem transformar a realidade desta ou daquela maneira e como a vemos de forma completamente diferente – inventando-a, de facto. Este é o ponto de partida de Seigel. Considera o fenómeno da desinformação “a partir de 13 ângulos… com o objectivo de que o conjunto destas visões parciais forneça uma impressão útil da verdadeira forma e do objectivo final da desinformação”.

É isto que mais valorizo no ensaio de Seigel – a sua cronologia perspicaz da génese e do desenvolvimento do “complexo de contra-desinformação”.

Seigel começa em 2014, quando Moscovo reagiu ao golpe de Estado na Ucrânia, promovido pelos EUA, quando mais tarde reincorporou a Crimeia na Federação Russa e quando o Estado Islâmico declarou Mossul como a capital do seu califado recém-declarado. “Em três conflitos distintos”, escreve Seigel, “um inimigo ou uma potência rival dos Estados Unidos foi visto como tendo utilizado com sucesso não só o poder militar mas também campanhas de mensagens nas redes sociais destinadas a confundir e desmoralizar os seus inimigos”.

Dois anos mais tarde, o Estado de segurança nacional e o Partido Democrata decidiram trazer para casa as técnicas de contra-insurreição e de contraterrorismo para as virar contra o novo inimigo interno, sendo os insurrectos e os terroristas Donald Trump e os seus 70 milhões de apoiantes – os “deploráveis”, como Hillary Clinton utilmente lhes chamou.

Depois veio o homem-chave e o momento-chave.

“Nos seus últimos dias de mandato, o Presidente Barack Obama tomou a decisão de colocar o país num novo rumo”, escreve Seigel. “A 16 de Dezembro de 2016, assinou a Lei de Combate à Propaganda Estrangeira e à Desinformação, que utilizou a linguagem da defesa da pátria para lançar uma guerra de informação ofensiva e sem fim”.

Setembro de 2015: O presidente Barack Obama, à direita, numa conversa à parte com o presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, durante uma reunião da ONU em Nova York. (Casa Branca/Pete Souza)

 

Não se tratava apenas de um empreendimento de “todo o governo”: era um empreendimento “de toda a sociedade”, o que significa que todas as fronteiras entre os sectores público e privado seriam apagadas e o objectivo era controlar os corações e as mentes de todos os americanos.

Agora podemos compreender a facilidade com que as nossas instituições públicas se alistaram nesta boa causa. Estas incluíam as grandes tecnológicas e o aparelho de segurança nacional, claro, bem como as forças da lei – o Departamento de Justiça e o Federal Bureau of Investigation -, os grupos de reflexão, as universidades, as ONG e os media. “A imprensa americana”, escreve Seigel, “foi esvaziada ao ponto de poder ser usada como uma marioneta pelas agências de segurança dos EUA e pelos operacionais do partido”.

Havia também vários autoproclamados guardiões da “liberdade da Internet”, cujo objectivo comum era suprimir todas as formas de dissidência, assegurando que nada disso sobrevivesse aos seus esforços. Notório entre estes guardiões e típico deles é o Hamilton 68, que trabalhou em estreita colaboração com o Twitter para identificar e suprimir milhões de contas de redes sociais que supostamente espalhavam desinformação de inspiração russa. O Hamilton 68 é agora exposto como “um embuste de alto nível perpetrado contra o povo americano” por agentes do governo em conluio com executivos corruptos do Twitter.

Devo dizer que não conheço nenhum outro escritor que use o termo “treta” com mais graça. Hamilton 68, escreve ele, é “um fornecedor de tretas ~e mentiras de nível industrial – o termo antiquado para desinformação”.

Estes sacanas criaram um universo diabólico ou quê?

Não serve de grande consolo, de facto, mas o que o complexo de desinformação começou a infligir aos americanos há meia dúzia de anos é o que o resto do mundo tem sido forçado a suportar desde que o Estado de segurança nacional tomou forma e começou a funcionar no final da década de 1940.

 

Leviatã digital

 

 

                                (xresch-99 Bilder no PIxabay)

 

Os 13 capítulos de Seigel – o seu ensaio parece um livro e espero que o transforme num – levam o seu tema em todo o tipo de direcções. Há secções sobre a recolha de dados, a evolução da Internet – “de querida a demónio” -, o prolongamento indefinido da “guerra contra o terrorismo”, a emergência do tema dos “terroristas domésticos”, a manipulação do discurso sobre o Covid-19, o caso do portátil de Hunter Biden, “The NGO Borg” (um título maravilhoso), a inteligência artificial como o próximo modo diabólico de supressão e a América como um Estado de partido único.

Como é que vamos caracterizar a besta do complexo de desinformação e a política que nos impôs? Seigel não gosta do termo “fascismo” neste contexto, e eu também não: Exagera a doença que aflige a América e, como Seigel astutamente observa, coloca-nos de costas quando deveríamos estar de frente para algo que não tem nome.

“Algo monstruoso está a tomar forma na América”, escreve Seigel. “Formalmente, exibe a sinergia do poder estatal e empresarial ao serviço de um zelo tribal que é a marca do fascismo. No entanto, qualquer pessoa que passe algum tempo na América e não seja um fanático a quem foi feita uma lavagem cerebral pode dizer que não é um país fascista”.

“O que está a surgir é uma nova forma de governo e de organização social que é tão diferente da democracia liberal de meados do século XX como a república americana inicial era do monarquismo britânico de que cresceu e que acabou por suplantar. Um Estado organizado com base no princípio de que existe para proteger os direitos soberanos dos indivíduos está a ser substituído por um leviatã digital que exerce o poder através de algoritmos opacos e da manipulação de enxames digitais. Assemelha-se ao sistema chinês de crédito social e de controlo estatal unipartidário e, no entanto, também este não tem em conta o carácter distintamente americano e providencial do sistema de controlo.”

Simplesmente excelente – como visão, como escrita.

A 13ª maneira de Seigel olhar para as relações entre a humanidade, a natureza e as emoções chama-se “Depois da Democracia”, e é uma leitura tão sombria como o seu título deixa transparecer. Estamos agora numa terra onde a defesa da Declaração de Direitos é “um apego paroquial” e um extenso regime de censura é naturalizado como senso comum:

“O problema da desinformação é também um problema da própria democracia – especificamente, o facto de haver demasiada desinformação. Para salvar a democracia liberal, os especialistas prescreveram dois passos fundamentais: A América deve tornar-se menos livre e menos democrática. Esta evolução necessária significará calar as vozes de certos desordeiros da multidão online que perderam o privilégio de falar livremente. Será necessário seguir a sabedoria dos especialistas em desinformação… “

Tenho uma coisa a dizer a Jacob Seigel – que agora é “Joltin’ Jake” na minha casa:  Continua a escrever. Enquanto o fizeres, mostrarás a todos nós que nem tudo está perdido e que “hope” [esperança] é mais do que uma palavra de quatro letras. Os melhores historiadores também vão gostar de ti.

 

Este artigo é do The Scrum. Uma versão anterior foi publicada no ScheerPost.

 


O autor: Patrick Lawrence, correspondente no estrangeiro há muitos anos, principalmente para o International Herald Tribune, é colunista, ensaísta, autor e conferencista. O seu livro mais recente é Time No Longer: Os Americanos Depois do Século Americano. A sua conta no Twitter, @thefloutist, tem sido permanentemente censurada. O seu sítio na web é Patrick Lawrence.

 

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