Para lá da guerra na Ucrânia — “A nossa segurança está nas nossas mãos; e a derrota do inimigo está nas suas próprias mãos”, por Alastair Crooke

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 min de leitura

“A nossa segurança está nas nossas mãos; e a derrota do inimigo está nas suas próprias mãos”

 Por Alastair Crooke

Publicado por em 1 de Maio de 2023 (original aqui)

 

Foto: domínio público

 

Xi e Putin estão a montar vários “cavalos”: Um deles pode precisar de um toque de espora; o outro precisa de ser um pouco refreado.

“A nossa segurança está nas nossas mãos; e a derrota do inimigo está nas suas próprias mãos”

(Sun Tzu, d. 496 BCE)

 

Embora a mudança estrutural para um mundo multipolar seja agora bem compreendida em termos geopolíticos, as suas outras dimensões são pouco notadas. A atenção dos meios de comunicação social está tão centrada na situação militar na Ucrânia que facilmente se esquece que o Presidente Putin também tem estado a travar uma guerra financeira – uma guerra contra a teoria económica liberal – e uma guerra diplomática pelo apoio dos países não ocidentais e dos principais aliados estratégicos, a China e a Índia.

Para além disso, Putin tem de gerir a psique dentro da Rússia. O seu objectivo é restaurar o patriotismo e uma cultura nacional russa ligada às suas raízes no cristianismo ortodoxo. Para o conseguir, tem de o deixar evoluir num contexto civil – permitir que o aspecto militar se torne abrangente seria distorcer a consciência russa de uma forma muito particular.

O Presidente Putin falou em várias ocasiões da necessidade de a “Rússia civil” ter oxigénio para evoluir à sua maneira – reapropriando-se do seu legado cultural passado sob uma nova forma – e de esse processo não ser totalmente subsumido às necessidades e ao ethos militares.

Assim, o projecto é, de facto, totalmente multifacetado – embora, sem dúvida, a luta para restaurar o respeito pela soberania e pela autonomia nos assuntos internos represente a “pedra angular” do projecto.

No entanto, uma parte significativa da reapropriação da soberania exige a mudança da estrutura económica da Rússia, que deve sair das garras do modelo neoliberal “anglo-saxónico” para um modelo que proporcione uma maior auto-suficiência nacional. Por isso, o simples questionamento dos fundamentos filosóficos do sistema “anglo-saxónico” de política e economia – que estão na base da Ordem das Regras – é tão importante, à sua maneira, como o campo de batalha ucraniano.

Como qualquer sistema, a Ordem Mundial assenta em princípios filosóficos tidos como universais, mas que, na verdade, são específicos de um determinado momento da história europeia.

Actualmente, o Ocidente não é “o que era”. É um espaço de batalha ideológico fracturado. O resto do mundo não é “o que era”. E as actuais contorções ideológicas do Ocidente já não são vistas como uma preocupação primordial para o mundo.

No entanto, o que está aqui em causa é um projecto concebido para mudar o que não mudou. É tanto uma guerra pela psique global como uma guerra de desgaste na frente de batalha (embora esta também seja uma componente vital para mudar a mentalidade global). Se se pretende construir uma ordem multipolar baseada na soberania auto-suficiente, os outros também devem sair do sistema económico neoliberal (se puderem). Daí a necessidade de uma grande iniciativa diplomática da Rússia e da China para construir uma profundidade estratégica para uma nova economia.

Depois, há as tácticas por detrás da estratégia: Como, para além de “traçar o caminho” de uma nova economia, ajudar os Estados a recuperar a sua soberania? Como quebrar o domínio hegemónico do “connosco ou contra nós”? Como facilitar as complementaridades mútuas que podem levar um grupo de Estados a um ciclo virtuoso de soberania auto-geradora – embora reforçada por corredores de transporte e assistida pela construção de “auto-segurança” autónoma. A China, por exemplo, está a construir uma extensa rede africana de comboios de alta velocidade para o comércio interafricano.

O projecto sino-russo não pode, portanto, deixar de desafiar as premissas financeiras e económicas em que assenta a Ordem das Regras – e ajudar a desenvolver uma alternativa.

O sistema económico anglo-americano, como qualquer sistema, assenta em certos princípios e crenças, observou James Fallows, um antigo redactor de discursos da Casa Branca:

Mas em vez de agirem como se estes fossem os melhores princípios, ou os que as suas sociedades preferem, os britânicos e os americanos agem frequentemente como se estes fossem os únicos princípios possíveis: E que ninguém, excepto por erro, poderia escolher outros. A economia política torna-se uma questão essencialmente religiosa, sujeita ao inconveniente padrão de qualquer religião – a incapacidade de compreender porque é que as pessoas fora da fé podem agir como agem” [sublinhado nosso].

“Para tornar isto mais específico: A actual visão anglo-americana do mundo assenta nos ombros de três homens. Um é Isaac Newton, o pai da ciência moderna. Um é Jean-Jacques Rousseau, o pai da teoria política liberal. (Se quisermos manter isto puramente anglo-americano, John Locke pode servir no seu lugar). E um é Adam Smith, o pai da economia do laissez-faire. É suposto reconhecer que o futuro mais próspero para o maior número de pessoas advém do livre funcionamento do mercado”.

Assim, voltando ao “que não mudou”, a Secretária Yellen fez recentemente um discurso sobre as relações entre os EUA e a China, dando a entender que a China tinha prosperado em grande parte graças a esta ordem de mercado anglo-americana de “livre funcionamento”; no entanto, estava agora a orientar-se para uma postura orientada para o Estado: uma postura que “é de confronto com os EUA e os seus aliados”. Os EUA querem cooperar com a China, mas total e exclusivamente nos seus próprios termos, disse ela.

Os EUA procuram um “compromisso construtivo”, mas que deve estar sujeito ao facto de os EUA garantirem os seus próprios interesses e valores de segurança. “Comunicaremos claramente à RPC as nossas preocupações relativamente ao seu comportamento… E protegeremos os direitos humanos”. Em segundo lugar, “continuaremos a responder às práticas económicas injustas da China. E continuaremos a fazer investimentos críticos no nosso país – ao mesmo tempo que colaboramos com o mundo para fazer avançar a nossa visão de uma ordem económica mundial aberta, justa e baseada em regras”. Termina dizendo que a China deve “jogar segundo as regras internacionais actuais”.

Como era de esperar a China não o aceitará, observando que os EUA procuram ganhar economicamente com a China – ao mesmo tempo que exigem mãos livres para perseguir exclusivamente os interesses dos EUA.

Em suma, o discurso de Yellen revela uma incapacidade total de reconhecer que a “revolução” sino-russa não se limita à esfera política, mas estende-se também à esfera económica. Mostra até que ponto a “outra guerra” é importante para Putin e para Xi – a guerra para sair das garras do paradigma neo-liberal financeirizado.

Xi tinha deixado isso claro em 2013, quando perguntou:

“Porque é que a União Soviética se desintegrou? Porque é que o Partido Comunista da União Soviética se desintegrou? Repudiar completamente a experiência histórica da União Soviética, repudiar a história do PCUS, repudiar Lenine, repudiar Estaline – era lançar o caos na ideologia soviética e enveredar pelo niilismo histórico”.

Dito de forma simples, Xi estava a insinuar que, tendo em conta os dois pólos da antinomia ideológica: O da construção anglo-americana, por um lado, e a crítica escatológica leninista do sistema económico ocidental, por outro, os “estratos dominantes” soviéticos tinham deixado de acreditar” nesta última e, consequentemente, tinham deslizado para um estado de niilismo – (com o giro para a ideologia liberal-mercantil ocidental da era Gorbachev-Yeltsin).

O ponto de vista de Xi: A China nunca fez este desvio desastroso.

E o que o discurso de Yellen não vê é esta mudança de paradigma geo-estratégico: Putin trouxe a Rússia de volta, e em grande alinhamento com a China e outros Estados asiáticos em termos de pensamento económico.

Estes últimos têm, de facto, vindo a dizer há algum tempo que a filosofia política “anglo” não é necessariamente a filosofia do mundo. Lee Kuan Yew, de Singapura, e outros, afirmaram que as sociedades podem funcionar melhor se prestarem menos atenção ao indivíduo e mais ao bem-estar do grupo.

O Presidente Xi é directo: “O direito das pessoas a escolherem independentemente as suas vias de desenvolvimento deve ser respeitado… Só quem calça os sapatos sabe se eles servem ou não”.

Marx e Lenine não foram os únicos a contestar a versão anglo-liberal. Em 1800, Johann Fichte publicou O Estado Comercial Fechado. Em 1827, Friedrich List publicou as suas teorias que contestavam a “economia cosmopolita” de Adam Smith e JB Say. Em 1889, o conde Sergius Witte, primeiro-ministro da Rússia imperial, publicou um documento que citava Friedrich List e que justificava a necessidade de uma indústria nacional forte, protegida da concorrência estrangeira por barreiras alfandegárias.

Assim, em vez de Rousseau e Locke, os teóricos alemães ofereceram Hegel. Em vez de Adam Smith, propuseram Friedrich List.

A abordagem anglo-americana baseia-se no pressuposto de que a medida final de uma sociedade é o seu nível de consumo. A longo prazo, no entanto, argumentava List, o bem-estar de uma sociedade e a sua riqueza global são determinados não pelo que a sociedade pode comprar, mas pelo que pode produzir (ou seja, o valor resultante de uma economia real e auto-suficiente). A escola alemã, profundamente céptica em relação à “serendipidade” do mercado de Adam Smith, argumentava que a ênfase no consumo acabaria por ser auto-destrutiva. O sistema acabaria por se desviar da criação de riqueza e, em última análise, tornaria impossível consumir tanto ou empregar tantos trabalhadores.

List foi presciente. Ele viu a falha, agora tão claramente exposta no modelo anglo-saxónico: uma atenuação da economia real, agora agravada pela financeirização massiva. Um processo que levou à construção de uma pirâmide invertida de “produtos” financeiros derivados que sugam o oxigénio da produção real. A auto-suficiência está a diminuir e uma base cada vez menor de criação de riqueza real sustenta um número cada vez menor de pessoas com empregos adequadamente remunerados.

Em termos simples: O que une Putin e Xi Jinping (…) é o seu apreço comum pela espantosa corrida da China para as fileiras de uma superpotência económica. Nas palavras de Putin, a China “conseguiu da melhor maneira possível, na minha opinião, utilizar as alavancas da administração central (para) o desenvolvimento de uma economia de mercado… A União Soviética não fez nada disso, e os resultados de uma política económica ineficaz tiveram impacto na esfera política”.

Washington e Bruxelas não estão manifestamente a perceber. E o discurso de Yellen é a principal ‘prova’ deste falhanço analítico: O Ocidente tinha entendido a implosão soviética e o caos financeiro dos anos Yeltsin exactamente da forma oposta à análise de Xi e à concordância de Putin com o duro veredicto de Xi.

Em termos simples, a avaliação de Xi e Putin é que o desastre russo foi o resultado da viragem para o liberalismo ocidental, enquanto Yellen vê claramente que o “erro” da China – pelo qual ela a repreende – está no afastamento do sistema mundial “liberal”.

Este desencontro analítico explica, de certa forma, a convicção absoluta do Ocidente de que a Rússia é um Estado tão fraco e frágil financeiramente (devido ao seu erro primordial de se afastar do sistema “anglo”), que qualquer reviravolta na frente de batalha ucraniana hoje poderia provocar um colapso financeiro em pânico (como se viu em 1998) e uma anarquia política em Moscovo, semelhante à da era Yeltsin.

Paradoxalmente, os observadores do Ocidente não ocidental vêem hoje o inverso do que Yellen “vê”: Vêem a fragilidade financeira ocidental versus a estabilidade económica russa.

Finalmente, a outra dimensão “menos notada” da “revolução” sino-russa é a metafísica – a reapropriação da cultura política nacionalista que é algo mais do que “soberania”. O filósofo político Alasdair MacIntyre, em After Virtue, argumenta que é a narrativa cultural que fornece uma melhor explicação para a unidade de uma vida humana:

“As histórias de vida individuais dos membros de uma comunidade tornam-se enredadas e entrelaçadas. E o emaranhado das nossas histórias surge para formar a trama e o tecido da vida comunitária. Esta última nunca pode ser uma consciência única gerada abstractamente e imposta a partir de um ‘comando central'”.

A questão aqui é que é apenas a “tradição cultural” e os seus contos morais que dão contexto a termos como “bem”, “justiça” e fim último.

“Na ausência de tradições, o debate moral está fora de controlo; e torna-se um teatro de ilusões em que a simples indignação e o mero protesto ocupam o centro do palco” [isto é, como no Ocidente de hoje].

Não é de surpreender que aqueles que não vivem no Ocidente – e que nunca se sentiram interiormente como parte desta modernidade ocidental contemporânea, mas antes como pertencentes a um mundo cultural diferente; um mundo com uma base ontológica muito diferente – olhem para este último como a fonte de energia para uma nova vida comunitária.

Recorrem aos velhos mitos e histórias morais precisamente para injectar energia na cultura política – uma tendência que se estende da China à Rússia, à Índia e mais além. Ao que parece, Putin está empenhado em que a Rússia seja valente, mas não militarizada.

Xi e Putin estão a montar vários “cavalos”: Um pode precisar de um toque de espora, outro de ser um pouco mais refreado. O objectivo é que cheguem mais ou menos juntos.

___________

O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

Leave a Reply