Espuma dos dias… ou um processo kafkiano da justiça do Reino Unido — “Assange: Uma ímpia mascarada de tirania disfarçada de justiça”, por Craig Murray

Seleção e tradução de Francisco Tavares

27 min de leitura

Nota de editor:

Um texto extenso mas que sugerimos tenha uma leitura contínua. O seu conteúdo mostra,  de forma fundada e coerente, a mascarada disfarçada de justiça que constitui a ação penal contra Julian Assange, processo que corre os seus trâmites no Reino Unido, bem acolitado pelo seu governo a mando dos EUA, e sob o silêncio dos governos ditos democráticos do chamado Ocidente.

FT

 


Assange: Uma ímpia mascarada de tirania disfarçada de justiça

A ação penal contra Julian Assange não tem nada a ver com a lei. É uma simples demonstração do poder esmagador do Estado, escreve Craig Murray.

 

 Por Craig Murray

Publicado por  em 15 de Junho de 2023 (ver aqui)

Publicação original em CraigMurray.org.uk

 

Julgamentos de Nuremberga. Réus no banco dos réus, cerca de 1945-1946. (frente, da esquerda para a direita): Hermann Göring, Rudolf Heß, Joachim von Ribbentrop, Wilhelm Keitel (segunda fila, da esq. para a dir.): Karl Dönitz, Erich Raeder, Baldur von Schirach, Fritz Sauckel. ( Gabinete do Chefe do Departamento Jurídico dos EUA para a Acusação da Criminalidade do Eixo/Registos de Imagens Paradas LICON, Divisão de Serviços de Arquivos de Meios de Comunicação Especiais (NWCS-S)

 

Nunca existiu um governo tão mau e repugnante que não tenha sido capaz de encontrar advogados e, sobretudo, juízes, para lhe fazerem a vontade.

Hitler não precisou de fabricar advogados e juízes. Um número muito significativo, na verdade a maioria, de advogados alemães estabelecidos e reputados estava preparado para participar ativamente na lei nazi, tanto no seu desenvolvimento como na sua aplicação.

Entre estes conta-se, naturalmente, Roland Freisler, doutor em Direito pela Universidade de Jena, que exercia a profissão de advogado antes de ser promovido.

Isto disse o procurador Telford Thomas, que abriu o julgamento dos advogados nazis em Nuremberga:

“Este caso é invulgar, na medida em que os arguidos são acusados de crimes cometidos em nome da lei. Estes homens, juntamente com os seus colegas falecidos ou fugitivos, eram a personificação do que se fazia passar por justiça no Terceiro Reich.

A maioria dos arguidos desempenhou, em diversas alturas, funções de juiz, de procurador do Estado e de funcionário do Ministério da Justiça do Reich. TODOS, EXCEPTO UM, SÃO JURISTAS PROFISSIONAIS. Estão bem habituados aos tribunais e às salas de audiências, embora o seu papel atual possa ser novo para eles.

Mas um tribunal é muito mais do que uma sala de audiências; é um processo e um espírito. É a casa do direito. Isto os arguidos sabem, ou devem ter sabido em tempos passados. Duvido que alguma vez o tenham esquecido.

De facto, a raiz da acusação neste caso é que estes homens, líderes do sistema judicial alemão, suprimiram consciente e deliberadamente a lei, envolveram-se numa ímpia mascarada de tirania disfarçada de justiça, e converteram os sistemas judiciais alemães num motor de despotismo, conquista, pilhagem e massacre.”

 

A citação de Thomas “uma ímpia mascarada de tirania disfarçada de justiça” é uma frase que tem andado a rondar a minha cabeça como uma síntese perfeita do processo “legal” do estado contra Julian Assange, que tenho vindo a detalhar nos últimos anos.

Juntamente, é claro, com o facto de os Estados da NATO odiarem Assange – e procurarem o seu assassinato judicial – precisamente por revelar verdades que envergonham o seu sistema de “conquista, pilhagem e massacre” no Iraque, Afeganistão, Líbia, Iémen, Síria e noutros lugares.

Vale a pena notar que Hitler não era de modo algum o único a poder recorrer a advogados respeitados para fazer cumprir as suas ordens.

O procurador dos julgamentos de fachada de Estaline, Andrei Vishinski, que Freisler viajou até Moscovo para ver em ação e cujos gritos e provocações Freisler copiou conscientemente, era também um advogado “a sério”, licenciado pela Universidade de Kiev e com experiência de prática em Moscovo.

(De passagem, devo referir que o juiz favorito de Estaline, Ulrich, era um auto-didata saído dos tribunais militares).

Fomos educados com um respeito inato pelo Estado de direito e com a convicção de que, embora cometa erros, é imparcial e honesto. Infelizmente, este é apenas um dos mitos segundo os quais a nossa sociedade funciona. É algo que, com relutância, acabei por compreender.

Fiquei, no entanto, tão surpreendido com a decisão atual e curta do juiz Jonathan Swift [do Supremo Tribunal britânico], que rejeitou o recurso de Assange para o Supremo Tribunal na saga da extradição, que pensei em ir um pouco mais fundo.

Comecei, portanto, pela surpreendente decisão de Swift de Dezembro, em conluio com o juiz Lewis, segundo a qual o plano do governo conservador de deportar refugiados para o Ruanda é legal.

A sua decisão assenta, acima de tudo, na noção de que qualquer ficção inventada pelo governo do Reino Unido tem mais força legal do que os factos reais. Não há qualquer dúvida, no mundo real, de que o Ruanda é uma ditadura horrível e que mata os seus opositores. E que matou os habitantes dos campos de refugiados no seu território.

Mas não faz mal, dizem Swift e Lewis, porque o Governo do Ruanda disse num memorando de entendimento que não fará isso aos nossos refugiados, que são diferentes dos outros refugiados:

“73. Os Requerentes baseiam-se no que aconteceu em 2018, quando refugiados de países vizinhos no campo de refugiados de Kiziba protestaram contra as condições do campo. Foi relatado (por exemplo, pela Human Rights Watch) que a polícia que entrou no campo em resposta aos protestos usou força excessiva. Dispararam contra os refugiados e alguns foram mortos. Os Requerentes também apontam, de uma forma mais geral, para os limites impostos no Ruanda à liberdade de expressar uma opinião política se essa opinião for crítica em relação às autoridades ruandesas.

74. Não consideramos que possa ser retirada qualquer inferência direta dos acontecimentos no campo de refugiados de Kiziba em 2018. É pouco provável que as circunstâncias que levaram a esses protestos se repitam para qualquer pessoa transferida para o Ruanda ao abrigo do MEDP. O tratamento das pessoas transferidas, tanto antes como depois da determinação dos seus pedidos de asilo, está previsto no Memorando de Entendimento (n.ºs 8 e 10) e na NV de apoio. Pelas razões já expostas, consideramos que as autoridades ruandesas respeitarão as condições estabelecidas nesses documentos.”

(…)

Para além disso, a Convenção sobre os Refugiados, de acordo com Swift e Lewis, diz que os refugiados não devem ser tratados pior do que os próprios cidadãos de um Estado. Portanto, se o Ruanda persegue os seus próprios cidadãos, não há qualquer infração em perseguir os refugiados que enviamos também.

“…o caso dos Requerentes chega à proposição de que, após a remoção para o Ruanda, é possível que um ou mais dos transferidos possam vir a ter opiniões críticas das autoridades ruandesas, e essa possibilidade significa que agora, o limiar de Soering [n.t. ver aqui] foi ultrapassado.

77. Há provas de que as oportunidades de oposição política no Ruanda são muito limitadas e estreitamente regulamentadas. A situação é exposta no documento de avaliação “General Human Rights in Rwanda”, um dos documentos publicados pelo Ministro do Interior em 9 de maio de 2022. Existem restrições ao direito de reunião pacífica, à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão. Os Requerentes alegaram que esta situação poderia significar que qualquer transferência para o Ruanda implicaria uma violação do artigo 15.º da Convenção sobre os Refugiados (que prevê que os refugiados devem receber o tratamento mais favorável concedido aos nacionais no que respeita a associações e sindicatos não políticos e sem fins lucrativos). No entanto, consideramos que este argumento não tem qualquer força. Pondo de lado o facto de o artigo 15º não se estender a todos os direitos de associação, trata-se, em todo o caso, de uma disposição de não discriminação – ou seja, as pessoas protegidas pela Convenção relativa aos Refugiados não devem ser tratadas de forma menos favorável do que os próprios cidadãos do país de acolhimento. No caso em apreço, não existem provas desse facto”.

O Ministério do Interior do Reino Unido na Marsham Street, em Londres. (Andrew Abbott, CC BY-SA 2.0)

 

De facto, dizem-nos Swift e Lewis, o caso do arguido é “especulativo”. Não há provas de que o governo do Ruanda queira torturá-los, simplesmente porque o governo do Ruanda ainda nem sequer os conheceu. Além disso, o governo do Ruanda prometeu não maltratar as pessoas ao abrigo de um acordo com o Reino Unido, “o MEDP”, que dá ao governo do Ruanda 120 milhões de dinheiro para roubar ou gastar no desenvolvimento económico do Ruanda.

“Voltando ao material abordado no documento de avaliação do Ministro do Interior, há também provas (de um relatório do Departamento de Estado dos EUA de 2020) de que os opositores políticos foram detidos em centros de detenção “não oficiais” e que as pessoas assim detidas foram sujeitas a tortura e a maus-tratos previstos no artigo 3. Além disso, há provas de que as prisões no Ruanda estão sobrelotadas e as condições são muito más. No entanto, a alegação dos Requerentes é especulativa. Não se baseia em qualquer prova de uma opinião atual. Não há qualquer sugestão de que qualquer um dos Requerentes individuais seja obrigado a ocultar opiniões políticas ou outras atualmente defendidas. A alegação dos Requerentes também pressupõe que a reação das autoridades ruandesas a qualquer opinião que possa ser defendida no futuro por qualquer pessoa transferida implicaria (ou poderia implicar) maus-tratos nos termos do artigo 3. Dado que a pessoa em causa teria sido transferida nos termos do MEDP, essa possibilidade não constitui um risco real.”

 

Swift e Lewis argumentam ainda, nos parágrafos 81 a 84, que, no direito interno do Reino Unido, a certificação do Ruanda como um país seguro por parte do Ministro do Interior é “irrefutável” – ou seja, não existe qualquer via legal para questionar a sua veracidade, nem requer aprovação parlamentar. A “segurança” do Ruanda é um facto jurídico simplesmente porque a Ministra do Interior Suella Braverman o certifica.

Tendo afirmado que, ao abrigo da legislação de imigração conservadora, a Ministra do Interior pode certificar qualquer lugar que lhe apeteça como seguro, independentemente da verdade objetiva (desde que sejam tomadas certas medidas processuais), Swift e Lewis passam depois ao non-sequitur [argumento em que a conclusão não se deduz das premissas] de que depende o seu julgamento, ou seja, que pelo facto de um país ter sido certificado como “seguro” para efeitos da legislação nacional do Reino Unido, isso torna-o efetivamente elegível para receber deportados do Reino Unido nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados.

A Convenção das Nações Unidas para os Refugiados diz o seguinte:

“Nenhum Estado contratante expulsará ou repelirá (“refouler”) um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras de territórios onde a sua vida ou liberdade possam ser ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, pertença a um determinado grupo social ou opinião política.”

 

É essa a obrigação que decorre do direito internacional, incorporado no direito britânico. Não desaparece com uma assinatura do Ministro do Interior, mas depende da situação real e efectiva das coisas.

Não seria seguro, na vida real ou na Convenção sobre os Refugiados, deportar pessoas para o Iémen, para o Leste da Ucrânia ou para o Sudão só porque Braverman assinou alguma coisa. A Convenção sobre os Refugiados não está sujeita às fantasiosas proposições de certificados “irrefutáveis” de Whitehall.

Como devotados servidores do Executivo, Lewis e Swift têm inegavelmente uma coisa em comum com Freisler, Ullrich e Vishinski, que é a impaciência com arguidos incómodos que os incomodam com provas, argumentos incómodos e quantidades irritantes de papel, e tentam salvar as suas próprias vidas.

Lewis e Swift iniciam o seu juízo sobre o Ruanda com um discurso de revolta sobre o incómodo de ter de passar pela papelada que os deportados tiveram a desfaçatez de apresentar em sua defesa:

“36. Os articulados do presente processo não são modelos de boas práticas. A Direção Prática 54A exige que as exposições de factos e os fundamentos sejam claros e concisos. Nenhum dos articulados cumpre este requisito, apesar de muitos, se não todos, terem sido revistos uma ou mais vezes desde a abertura do processo. Do lado dos recorrentes, o articulado do pedido CO/2032/2022 (AAA e outros) assumiu a posição de pole position, apresentando vários fundamentos genéricos de impugnação, bem como fundamentos específicos aos factos dos casos dos recorrentes individuais nesse processo. São invocados sete fundamentos genéricos de impugnação (fundamentos 1, 1A – 1C, 2A e 3-6). No entanto, estes fundamentos tendem a sobrepor-se ou a voltar-se uns para os outros. Outras acções intentadas por outros demandantes adoptaram estes fundamentos genéricos de impugnação ou formularam variações dos mesmos, bem como apresentaram queixas baseadas nas suas próprias circunstâncias. O fundamento no CO/2056/2022 (o processo de Ajuda ao Asilo) apresenta queixas sobre o processo de tomada de decisão do Ministro do Interior. O que é dito sobre a equidade processual neste caso sobrepõe-se em grande medida às queixas sobre a equidade processual apresentadas no CO/2023/2022 e noutros pedidos. A Asylum Aid alega que estas questões demonstram que existe uma injustiça sistémica no procedimento adotado para lidar com as decisões de inadmissibilidade e de remoção. O fundamento do Ministro do Interior é uma resposta em espécie. Os fundamentos pormenorizados de defesa alterados (para todos os pedidos) têm cerca de 215 páginas.

37. A pedido do tribunal, as partes elaboraram uma lista acordada de questões. No entanto, esse exercício não conseguiu simplificar a posição: a lista identifica 29 questões genéricas, muitas das quais são repetitivas ou sobrepostas; e muitas outras questões específicas de cada pedido.

38. A mesma abordagem foi repetida nos Skeleton Arguments. Deve ser feita menção ao Argumento de base nos processos CO/2032/2022 e CO/2104/2022 (262 páginas), e ao Argumento de base no processo CO/2094/2022 (63 páginas). Cada um deles excede confortavelmente o comprimento máximo permitido pela Direção Prática 54A (25 páginas). Não foi solicitada antecipadamente autorização para apresentar esqueletos de argumentação mais longos do que o máximo permitido; cada documento foi apresentado ao tribunal como um facto consumado. A extensão destes documentos não serviu para clarificar a forma como as várias queixas são apresentadas. Os documentos são muito extensos e repetitivos”.

Este é claramente um problema específico de Swift. A minha análise da sua decisão sobre as deportações do Ruanda é apenas um prelúdio, para contextualizar esta decisão sobre o recurso de Assange. O que encontrei de comum em ambas as decisões é a insistência de que a narrativa apresentada pelo executivo não deve ser questionada e uma aversão extrema a ter de ouvir longos argumentos em nome dos indivíduos cujas vidas estão em jogo.

 

O Recurso de Assange

 

Os Tribunais Reais de Justiça em Strand, na cidade de Westminster, onde está sediado o Supremo Tribunal de Londres. (Sjiong, CC BY-SA 2.0, Wikimedia Commons)

 

Considero que o recurso de Julian Assange para o Supremo Tribunal é, em si mesmo, um documento de importância histórica. Decidi, por isso, publicá-lo na íntegra e recomendo-vos que, no mínimo, o consultem, recurso de assange para o tribunal supremo.

 

A primeira frase do recurso de Assange soa bem alto e explica porque é que o seu processo de extradição foi efetivamente realizado em tribunal fechado e porque é que o Supremo Tribunal está determinado a evitar qualquer audiência pública substantiva:

“Julian Assange e a Wikileaks foram responsáveis pela exposição da criminalidade por parte do Governo dos EUA numa escala maciça e sem precedentes”.

 

Nas primeiras 3 páginas (de um total de 150), descreve o argumentário e o terreno que cobre (DJ é a juíza Vanessa Baraitser):

“EM MATÉRIA DE RECURSO AO ABRIGO DO ARTIGO 103º DA LEI DA EXTRADIÇÃO DE 2003

ENTRE:

JULIAN ASSANGE

Recorrente

v

GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Recorrido

__________________________________________________________

FUNDAMENTOS DO RECURSO

____________________________________________________________

As referências a CB/X são referências ao pacote de permissões principais.

EB/X são referências ao pacote de provas da secção 103.

1. Introdução

1.1. Julian Assange e a Wikileaks foram responsáveis pela exposição da criminalidade do Governo dos Estados Unidos numa escala maciça e sem precedentes. A publicação, em 2010 e 2011, de material enviado por um militar no ativo, o soldado Manning, situa-se no topo das revelações de interesse público. Ao publicar este material, “a WikiLeaks… expôs actos ilícitos escandalosos e mesmo assassinos [incluindo] crimes de guerra, tortura e atrocidades contra civis

(Feldstein, EB/10, §4).

1.2. O trabalho de Julian Assange, dedicado a garantir a responsabilização pública através da denúncia de violações dos direitos humanos a nível mundial e a facilitar a investigação e a instauração de processos penais por crimes de Estado, contribuiu para salvar inúmeras vidas, pôs termo a violações dos direitos humanos e derrubou regimes despóticos e autocráticos.

1.3. Aqueles que denunciam a criminalidade grave do Estado, defensores dos direitos humanos fundamentais, são, e sempre foram, vulneráveis a actos de retaliação política e perseguição por parte dos regimes cuja criminalidade denunciam. Julian Assange não é exceção.

1.4. A lei protege ferozmente os defensores dos direitos humanos. A exposição da criminalidade do Estado é, por lei, um ato político protegido, o produto de uma opinião política. As acusações “por causa de” tais actos são diretamente proibidas pelo artigo 81.o da Lei de 2003.

1.5. A história desta ação penal, entre as exposições de Assange em 2010 e 2011 e a acusação em 2018, é um exemplo clássico de perseguição política. O desenrolar deste caso desde 2011 é simplesmente extraordinário. Envolve, entre outras coisas, conspirações do governo dos EUA para interferir com os juízes que investigam os assuntos que Assange expôs; para silenciar o Tribunal Penal Internacional (TPI) que aceitou as revelações de Assange; e para raptar e entregar o próprio Assange, ou então assassiná-lo. O que se segue é uma conduta do tipo que normalmente se esperaria de uma ditadura militar. O DJ não actuou (ou sequer abordou) estas questões na perspetiva do artigo 81.º porque (apesar de a lei lhe ter sido direta e repetidamente chamada à atenção) não reconheceu ou reconheceu que a exposição da criminalidade do Estado é, na lei, um ato “político” protegido, envolvendo o artigo 81.

1.6. Além disso, as provas neste caso evoluíram desde a decisão do DJ em Janeiro de 2021. As investigações na América fornecem agora uma imagem mais completa dos planos a nível estatal dos EUA para raptar, entregar e assassinar o Sr. Assange. Revelam também que a instauração de um processo penal neste caso – através de uma queixa-crime em Dezembro de 2017 – resultou na sequência de obstáculos (alguns dos quais terão sido levantados pelo Reino Unido) a esses planos criminosos.

1.7. A ação penal a que os EUA foram forçados a recorrer, iniciada em 2018, não é menos extraordinária. (a) Não tem precedentes na lei. (b) Atravessa os princípios estabelecidos da liberdade de expressão. (c) Para lidar com isso, antecipa um julgamento em que ao Sr. Assange, como estrangeiro, pode ser negado o benefício da Primeira Emenda (d) na verdade, um julgamento fora das protecções da Constituição dos EUA, e (e) é acompanhado pela exposição a uma sentença grosseiramente desproporcional. Em suma, as circunstâncias da acusação são tão fortes e invulgares que, por si só, impedem a extradição.

1.8. Quanto às circunstâncias do pedido de extradição que se seguiu. (f) Viola a proibição de extradição por infracções políticas expressamente prevista no tratado relevante e no direito internacional. (g) Desvirtua deliberadamente os factos essenciais. O DJ analisou estas questões uma a uma e argumentou que nenhuma delas ofendia a Lei de 2003. Pelas razões que se seguem, estava claramente errada em múltiplos aspectos.

1.9. Mas mesmo que tivesse razão em cada uma destas questões quando vistas separadamente, o DJ precisava, mas falhou completamente, de recuar e examinar o que elas cumulativamente lhe diziam sobre as origens políticas deste caso. Todas elas eram, em suma, individual e cumulativamente, a prova mais clara de uma acusação montada “por causa” das opiniões políticas do Sr. Assange – nomeadamente o seu compromisso declarado e comprovado com a exposição da criminalidade ao nível do Estado dos EUA.

1.10. Estes fundamentos aperfeiçoados de recurso, apresentados de acordo com o Crim PR r.50.20(5), estão estruturados da seguinte forma:

1.11. Parte A: aborda o Motivo de Recurso 1, nomeadamente que o juiz rejeitou erradamente o argumento de que o pedido estava a ser feito com o objetivo de processar ou punir Julian Assange pelas suas opiniões políticas, e por isso impedido pelo s.81(a).1 Consequentemente, a Parte A fornece uma visão geral da história deste assunto, e explica o caso abrangente do s.81 que o DJ não conseguiu abordar. Isto inclui:

(i) Secção 2: as provas apresentadas ao DJ sobre as opiniões políticas de Assange;

(ii) Secção 3: as provas apresentadas ao DJ sobre a criminalidade que o Sr. Assange expôs.

1 O fundamento 1 engloba também a alegação de abuso de processo, em virtude da motivação ulterior do pedido e da ação penal subjacente, que é tratada na Parte D.

(iii) Secção 4: A lei que o DJ ignorou;

(iv) Secção 5 e 6: as outras provas apresentadas ao DJ sobre as origens da acusação de 2018.

(v) Secção 7: A decisão do DJ

1.12. Parte B: aborda os fundamentos de recurso 2 a 6. Isto é, os vários aspectos flagrantes da acusação, eventualmente iniciada em 2018, que individualmente impedem a extradição, independentemente de s.81; incluindo:

(i) Secção 9: Uma acusação sem precedentes (Motivo de Recurso 2: Artigo 7.º da CEDH);

(ii) Secção 10: Uma acusação por discurso protegido (Motivo de Recurso 3: Artigo 10º da CEDH);

(iii) Secção 11: Uma acusação destinada a obter um veredito de culpa (fundamento de recurso 4: artigo 6.o da CEDH);

(iv) Secção 12: Uma acusação sem qualquer proteção dos direitos da Convenção (fundamento de recurso 5);

(v) Secção 13: Seguida de uma sentença grosseiramente desproporcionada (Motivo de Recurso 6).

1.13. Parte C: aborda os fundamentos de recurso 7 a 8. Isto é, os aspectos do pedido de extradição subsequente que individualmente impedem a extradição, independentemente do s.81; incluindo:

(i) Secção 14: Um pedido de extradição para ofensas políticas, em violação do tratado e da lei internacional (Ponto de Recurso 7);

(ii) Secção 15: Um pedido de extradição que deliberadamente deturpa os factos principais, de forma injusta, imprópria e imprecisa (Ponto de Recurso 8).

1.14. Parte D: volta ao s.81 e abuso de processo (Ponto de Recurso 1), como o DJ deveria ter feito, na Secção 16. Finalmente, as Secções 17 e 18 abordam as novas provas neste caso.”

                Captura de ecrã do vídeo “Collateral Murder” divulgado pela WikiLeaks.

 

Seguem-se mais 147 páginas de argumentação jurídica notável, incluindo provas irrefutáveis. O resumo dos crimes do Governo dos EUA expostos por Julian Assange nas páginas 9 a 18 é simplesmente alucinante. Essa secção começa assim:

“Cada uma das cinco publicações de ‘segurança nacional’ que são objeto deste pedido de extradição expôs o envolvimento do governo dos EUA em crimes de primeira ordem de grandeza. Estas revelações expuseram provas irrefutáveis de, inter alia, entregas ilegais, tortura e prisões clandestinas da C.I.A. em toda a Europa, bem como medidas agressivas tomadas para manter a impunidade e impedir a acusação de quaisquer agentes americanos envolvidos nestes crimes. O que se segue representa a prova incontestada perante o DJ das atrocidades que o Sr. Assange expôs”.

Aqui está apenas um exemplo das provas que se seguiram:

“3.3. A prova incontestada do Sr. Stafford-Smith foi que os telegramas, por exemplo, revelados pela WikiLeaks sobre os assassinatos por drones do governo dos EUA no Paquistão “contribuíram para as conclusões [subsequentes] dos tribunais de que os ataques por drones dos EUA são infracções penais e que devem ser instaurados processos penais contra altos funcionários dos EUA envolvidos nesses ataques” (Stafford-Smith, EB/22, §84, 91). Estes foram muito importantes para o litígio no Paquistão” (EB/40 Tr 8.9.20, xic, p4). O Supremo Tribunal de Peshawar decidiu, nomeadamente, que os ataques com drones efectuados pela CIA e pelas autoridades norte-americanas constituíam uma “violação flagrante dos direitos humanos fundamentais”, incluindo “uma violação flagrante do direito absoluto à vida” e “um crime de guerra” (Stafford-Smith, EB/22, §91). Estavam a ocorrer o que “temos de chamar infracções penais” (EB/40 Tr 8.9.230, xic. p4). Além disso, e como resultado, “os ataques com drones, que eram às centenas e causavam muitas… mortes inocentes, pararam muito rapidamente”, de tal forma que “não houve nenhum registo… em 2019” (Stafford-Smith, EB/22, §93). A WikiLeaks tinha “posto termo a uma enorme violação dos direitos humanos” (Stafford-Smith, EB/22, §92-93). O Paquistão era um aliado americano. Não era como se estivéssemos a fazer isso a um inimigo, o que, mais uma vez, é extraordinário para mim” (Stafford-Smith, EB/40 Tr 8.9.20, re-x, 26-

27). Sem as revelações da WikiLeaks, “teria sido muito, muito diferente e muito difícil” evitar este crime (Stafford-Smith, EB/40 Tr 8.9.20, xic, p5).”

 

Há muito mais material no recurso que os governos dos EUA e do Reino Unido não gostariam que fosse divulgado em público:

“Em segundo lugar, o relatório fornece mais provas corroborativas (não disponíveis ao DJ) do fruto das discussões “sem limites” daí resultantes. Nomeadamente, o aparecimento de planos governamentais dos EUA, sobre os quais a Testemunha 2 (EB/2) prestou depoimento ao DJ, para:

(i) Raptar o Sr. Assange:

Esta investigação do Yahoo News, baseada em conversas com mais de 30 antigos funcionários dos EUA – oito dos quais descreveram pormenores das propostas da CIA para raptar Assange” (p2)

Pompeo e [a vice-diretora da CIA, Gina] Haspel queriam vingar-se de Assange. Em reuniões entre altos funcionários da administração Trump, depois de a WikiLeaks ter começado a publicar os materiais da Vault 7, Pompeo começou a discutir o rapto de Assange” (p18)

(ii) Para entregar Assange aos Estados Unidos:

Pompeo e outros membros da agência propuseram raptar Assange da embaixada e trazê-lo sub-repticiamente de volta aos Estados Unidos através de um país terceiro – um processo conhecido como rendição. A ideia era “invadir a embaixada, arrastar [Assange] para fora e levá-lo para onde quiséssemos”, disse um antigo funcionário dos serviços secretos” (p18)

(iii) Ou então assassinar Assange:

Alguns altos funcionários da CIA e da administração Trump chegaram a discutir a morte de Assange, chegando mesmo a pedir “esboços” ou “opções” de como o assassinar. As discussões sobre raptar ou matar Assange ocorreram “aos mais altos níveis” da administração Trump, disse um antigo funcionário sénior da contraespionagem. Parecia não haver limites” (p1)

Algumas discussões foram mesmo para além do rapto. Os funcionários americanos também consideraram a hipótese de matar Assange, de acordo com três antigos funcionários. Um desses funcionários disse ter sido informado de uma reunião na primavera de 2017 em que o presidente perguntou se a CIA poderia assassinar Assange e fornecer-lhe “opções” para o fazer” (p20) “Os executivos da agência pediram e receberam “esboços” de planos para matar Assange (…) disse um antigo funcionário dos serviços secretos. Houve discussões “sobre se matar Assange era possível e se era legal”, disse o antigo funcionário” (p20).

 

Swift rejeita o recurso de 150 páginas em apenas três páginas, com uma rejeição brusca e zombeteira.

“Existem 8 fundamentos de recurso propostos. São expostos em grande extensão (cerca de 100pp), mas a extensão extraordinária da petição serve apenas para tornar claro que o recurso proposto não passa de uma tentativa de repetir os argumentos extensos apresentados e rejeitados pelo juiz distrital.”

Swift estipula então que se os advogados de Assange pedirem uma audiência para o seu pedido de recurso, essa audiência será limitada a 30 minutos.

Para além disso, limita a defesa de Assange a apenas 20 páginas. 20 páginas e 30 minutos (este último é o tempo para toda a audiência, incluindo a resposta do governo dos EUA). É este o valor que Swift atribui aos pedidos pela vida de um homem. Swift faz mesmo uma provocação à defesa: “As presentes razões de recurso são difíceis de manejar e não cumprem quaisquer regras de argumentação conhecidas”.

 

Swift afirma que “a questão é a que é colocada pela secção 103 da Lei de Extradição de 2003; deveria o juiz ter decidido uma questão na audiência de extradição de forma diferente”. Swift submete então esta “questão” a restrições impossíveis. A avaliação dos factos feita pelo juiz nem a sua apreciação dos argumentos podem ser revisitadas. Ele também se opõe a novas provas, apesar de as novas provas no recurso serem especificamente permitidas pela Lei da Extradição.

Swift é um advogado do governo. Revelou algo sobre si próprio nesta entrevista a uma revista jurídica, onde afirmou que:

“Os clientes preferidos eram as agências de segurança e de informação. Levam a sério a preparação e a recolha de provas: um verdadeiro empenho em fazer as coisas bem feitas”.

e

“O que realmente importa é que o vínculo de confiança entre o Executivo e o Judiciário seja mantido.”

Mas talvez ainda mais revelador é o facto de, nesta breve entrevista sobre a sua carreira, ter optado por incluir uma anedota totalmente gratuita e incisiva sobre o quão desagradáveis são as pessoas de esquerda, o que implica forçosamente que estava a vir de uma posição oposta:

“O primeiro membro da sua família a ir para a universidade e o primeiro a ser advogado, lembra-se da sua receção no New College. “Desfiz as malas e bati à porta em frente para me apresentar. Olá, chamo-me Jonathan”, para receber como resposta “Chamo-me Dave. Sou um militante. Vai-te lixar! Afinal de contas, estávamos em meados dos anos 80”.

É perfeitamente claro o que Swift é, e que se pode confiar inteiramente nele para rejeitar o recurso de Assange sem discutir qualquer assunto difícil sobre crimes de Estado.

No Tribunal Distrital, a juíza Vanessa Baraitser decidiu contra Assange com base nos oito fundamentos, mas decidiu a seu favor da saúde mental e das condições da prisão americana. Isto deu origem ao complicado processo de sucessivos recursos para o Supremo Tribunal.

Primeiro, os Estados Unidos foram autorizados a recorrer com base na saúde e nas condições da prisão norte-americana. Depois de ganharem, foi a vez de Assange recorrer com base nos outros oito fundamentos, com os quais tinha perdido no Tribunal Distrital.

A diferença entre o tratamento dado pelo Supremo Tribunal ao recurso dos Estados Unidos, que foi aceite e acabou por ser ganho, e o recurso de Assange, que foi rejeitado de imediato, é muito instrutiva.

O recurso dos Estados Unidos baseou-se, em grande medida, em novas provas. Estas consistiam em novas garantias diplomáticas por parte dos EUA, nas quais estes afirmavam que Assange não seria colocado numa prisão super-max antes do julgamento e que não seria sujeito a Medidas Administrativas Especiais – a não ser que tal fosse necessário.

Estas “garantias” poderiam ter sido dadas durante a audiência original, mas não o foram, porque é claro que os EUA têm toda a intenção de colocar Julian numa prisão super-max. Os juízes Burnett e Holroyde, que decidiram a favor dos Estados Unidos, afirmaram com toda a naturalidade que as novas garantias eram admissíveis porque as garantias não eram “provas”:

“Uma nota diplomática ou carta de garantia não é “prova” no sentido contemplado pela secção 106(5)(a) da Lei de 2003: não é nem uma declaração destinada a provar a existência de um facto passado, nem uma declaração de opinião de um perito sobre um assunto relevante. Pelo contrário, é uma declaração sobre as intenções do Estado requerente quanto à sua conduta futura…”

Assim, eles decidiram que, embora novas provas sejam excluídas, novas “garantias” não o são, um pouco de alegação especial que eles simplesmente tiraram dos seus amplos traseiros.

Compare-se isto com as provas apresentadas por Assange de que os EUA espiaram a sua equipa de defesa legal e conspiraram para o raptar, enquanto discutiam ativamente o seu assassinato. Essa prova é excluída com base no facto de ser uma “nova prova” e de se basear, em parte, em reportagens jornalísticas. O facto de a principal testemunha do governo americano ter admitido que mentiu e que prestou depoimento a troco de dinheiro também foi excluído com o argumento de que a informação está disponível em reportagens jornalísticas.

No entanto, uma entrevista aos meios de comunicação social com uma das testemunhas psiquiatras de Julian Assange, introduzida pelos EUA como parte do seu recurso ao Tribunal Superior, foi aceite e não foi excluída como “nova prova” ou como “relatório de imprensa”.

Pode ler o acórdão Burnett e Holroyde na íntegra, discutindo a avaliação do juiz distrital sobre as provas da saúde mental de Julian Assange e as condições da prisão nos EUA, e é impossível não concluir que eles estão absolutamente a “adivinhar a avaliação dos factos e a apreciação dos argumentos pelo juiz original”.

Não há literalmente mais nada que estejam a fazer.

Por conseguinte, ao decidir a favor do recurso dos EUA, o Supremo Tribunal conduziu precisamente o exercício que Swift considera incorreto quando argumentado para o outro lado do caso, para o recurso de Assange.

A minha parte favorita de hipocrisia fedorenta de Holroyde e Burnett vem no parágrafo 45:

“Os procedimentos de extradição não são procedimentos de direito privado, mas um processo através do qual as obrigações solenes do tratado são satisfeitas no contexto de um quadro que garante que a pessoa procurada é fornecida com salvaguardas adequadas.”

A frase “são cumpridas as obrigações solenes de um tratado” deveria causar uma repulsa imediata. O Tratado em questão é o Tratado de Extradição entre os EUA e o Reino Unido de 2003, e afirma no Artigo 2 que não pode haver extradição política.

 

 

A decisão do Tribunal Distrital, especificamente defendida agora pela Swift, é que o Tratado de Extradição entre o Reino Unido e os Estados Unidos não tem valor legal e, por conseguinte, a proibição de extradição política que contém não se aplica. Swift aceita o argumento de que, como a Lei de Extradição de 2003 não inclui uma barreira à extradição política, essa disposição do Tratado não se aplica.

O Tratado de Extradição, afirma Swift sem rodeios, “não é justificável”, ou seja, não pode ser tido em conta no plano jurídico.

Como é que pode ser isso e ser uma “obrigação solene” na base de todo este processo, é uma contradição extraordinária que não preocupa nenhum destes juízes na sua preocupação de impor rápida e eficazmente a força bruta do Estado. Todo o processo é concebido como um castigo pela revelação não autorizada da verdade por parte de Assange.

Como é que uma extradição pode ter lugar especificamente ao abrigo de um Tratado cujas disposições não podem ser aplicadas a essa extradição, é um enigma lógico ao qual só os sofisticados do sistema judicial do Reino Unido poderiam adaptar os seus intelectos flexíveis e – mais concretamente – as suas consciências.

O executivo encontrará sempre o judiciário necessário para fazer o seu trabalho sujo. Qualquer executivo. Poderá haver alguns momentos pontuais em períodos de convulsão política. Por exemplo, houve um impasse temporário com o Supremo Tribunal relativamente a aspectos do Brexit. Mas o poder judiciário realinhar-se-á rapidamente com o executivo. O poder do Estado é a constante.

A ação penal contra Julian não tem nada a ver com a lei. É uma simples demonstração do poder esmagador do Estado.

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O autor: Craig Murray [1958 – ] é autor, radiodifusor e activista dos direitos humanos. Foi embaixador britânico no Uzbequistão de Agosto de 2002 a Outubro de 2004 e reitor da Universidade de Dundee de 2007 a 2010. As suas reportagens estão inteiramente dependentes do apoio dos leitores. As subscrições para manter este blogue em funcionamento são recebidas com gratidão.

 

 

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