Espuma dos dias… que “revolta” na Rússia? — “O nevoeiro de Prigozhin: A sua bizarra revolta militar e certamente condenada ao fracasso”, por Yves Smith

Seleção e tradução de Francisco Tavares

13 min de leitura

O nevoeiro de Prigozhin: A sua bizarra revolta militar e certamente condenada ao fracasso

 Por Yves Smith

Publicado por  em 24 de Junho de 2023 (original aqui)

 

É muito difícil perceber o que Yevgeny Prigozhin pensava estar a conseguir com o seu comportamento cada vez mais errático, em particular com os seus ataques contra membros superiores das forças armadas russas, como o chefe da defesa Sergey Shoigu, em que passou de ter uma base discutível para as suas queixas (a retirada de Kharkiv e Kherson pareceu má para a Rússia, apesar de ser doutrinariamente correcta e de ter preservado vidas e material russo) à publicação de falsificações completas para tentar minar os líderes que controlam a maior parte dos seus recursos.

O que é ainda mais bizarro é o facto de Putin ter tolerado este ataque público contra a boa-fé das forças regulares, durante um período de tempo que se revelou agora demasiado longo.

Para fazer uma recapitulação muito breve e, esperemos, não demasiado simplificada dos acontecimentos imediatos, Prigozhin acusou as forças regulares russas de matarem muitas tropas Wagner. Forneceu um filme que nem sequer constituía uma prova em termos do que mostrava e que foi rapidamente dissecado nas redes sociais como sendo obviamente falso, tal como foi referido até na televisão russa.

Prigozhin anunciou então que as suas forças (no máximo 25.000, recordemo-lo, com provisões e material limitados) estavam a marchar sobre Rostov, onde se encontra não só uma base militar, mas também um centro para a condução de operações de combate na Ucrânia. Prigozhin afirmou ter assumido o controlo. Os meios de comunicação ocidentais estão a magnificar estas declarações, mas o Twitter está a lançar muitas dúvidas:

Foi a tentativa de golpe de estado mais foleira que alguma vez vi. Uns quantos tanques velhos e umas dúzias de camiões que transportavam umas centenas de “soldados” desgrenhados e com uniformes mal ajustados.

O modesto desfile foi escoltado por Rosgvardia até Rostov; Prigozhin fingiu “ocupar” a cidade, depois teve uma conversa com alguns generais, após o que ele e o seu grupo heterogéneo de “insurrectos” voltaram a afastar-se…(aqui)

 

Isto não parece ser uma guerra civil ou um golpe de Estado. Prigozhin poderá querer manter Rostov como refém e partir se Shoigu se demitir. Se for esse o caso, muitos considerariam esse tipo de comportamento como traição, especialmente em tempo de guerra. Prigozhin veria provavelmente a liderança de Shoigu como uma traição e a si próprio como um salvador da Rússia. Parece ter um pouco de complexo de Deus e, definitivamente, não é um jogador de equipa nem um diplomata. (aqui)

Prigozin reúne-se com o vice-ministro russo da Defesa, Yunus-Bek Yevkurov, e com o vice-chefe do Estado-Maior, Alekseev. Critica-os por terem abandonado Lyman, Kherson e outras cidades e repreende-os pela perda de homens. Não é uma atmosfera amigável, mas também não parece ser um golpe de Estado.

 

O vídeo com tradução AI para inglês. É muito fascinante que tudo isto tenha sido feito apenas para Prigozhin conseguir um encontro com Shoigu e Gerasimov. Se assim for, é um exagero muito desequilibrado para um “encontro”.

É como quando um ex-colega meu deixou de imprimir o jornal de que era chefe de redação para conseguir que uma mulher do Conselho de Administração fosse a um encontro com ele e, quando ela não aceitou, ele deu-lhe um tiro (ela sobreviveu). Isso também era um exagero para um encontro. (aqui)

Yevgeny Prigozhin reúne-se com o Vice-Ministro da Defesa russo, Yunus-bek Yevkurov, com o Vice-Chefe dos Serviços Secretos Militares russos, Tenente-General Vladimir Alekseyev, e com o Comandante do Distrito Militar Ocidental, General Sergey Kuzovlev, no Quartel-General para a…

Vídeo aqui

 

O blogue do multi-autor Rybar também levantou dúvidas sobre o que se estava a passar:

Apenas uma hora depois dos primeiros comentários de Prigozhin, “vídeos de militares da linha da frente” entraram em linha. Ambas as partes prepararam-se com antecedência para os acontecimentos de hoje. A divulgação de tais vídeos tem como objetivo contrariar a transição de soldados comuns para as fileiras dos Wagners e criar uma imagem para Shoigu de apoio total do exército.

Após acusações, em particular, do chefe do Wagner PMC [companhia militar privada] Yevgeny Prigozhin, de que as forças armadas russas estavam em retirada, os militares russos começaram a registar apelos de diferentes sectores da frente. O vídeo foi gravado por combatentes da direção de Donetsk, da região de Kherson, de Zaporozhye.

“Não vamos a lado nenhum…”

 

Por outras palavras, quando olhamos para o que Prigozhin tem feito, que até agora tem um elevado rácio de fanfarronice em relação à ação, parece uma forma estranha de tomada de reféns, talvez confiando excessivamente na ideia de que, devido à sua estatura e ao facto de ter alguns homens à sua volta, as forças russas não se envolverão com ele porque isso piorará a má imagem e provavelmente matará algumas pessoas, incluindo potencialmente civis.

No entanto, recorde-se que o Ocidente também tem falado ad nauseam sobre uma revolta contra Putin. Assim, seja por ação ou por intenção, a ação de Prigozhin servirá de gatilho para que as células adormecidas da Ucrânia na Rússia entrem em ação. E, mais uma vez, Rybar sugeriu que as forças de segurança russas tinham sido postas em alerta para esse tipo de operação ANTES da jogada de Prigozhin:

Às 2h da madrugada de 22 de junho (há dia e meio), unidades de reserva, unidades militares, unidades do ministério russo de Defesa, o ministério dos Assuntos Internos, o FSB, o FSO e a Guarda Nacional estavam em alerta: receberam informação sobre a preparação de um ataque armado sobre dispositivos governamentais. Escrevemos sobre isso ontem.

O alerta amarelo de perigo foi introduzido por 10 dias: é devido a medidas de contra-terrorismo. Todos os dispositivos estatais foram reforçados, todos os equipamentos foram reforçados com armas com as respetivas munições.

De momento, o FSO e o FSB, juntamente com o ministério dos Assuntos Internos, estão a conduzir uma operação para encontrar células ucranianas adormecidas e grupos de sabotagem e reconhecimento (de novo, não Wagners mas sim grupos do GUR [oficiais de inteligência do Centro Ucraniano de Segurança e Cooperação]). Segundo a informação de que dispomos, no decurso de ações operacionais, oficiais do FSB contactaram dois agentes do GUR ucraniano que entregaram toda a cadeia de células subterrâneas na capital e na região de Moscovo. Agora estão em busca de um par de dezenas de pessoas que formam a base da rede subterrânea do GUR.

O facto de que estavam a ser preparados ataques terroristas e ataques a dispositivos governamentais é evidenciado pelos factos da inteligência secreta: funcionários de missões diplomáticas viajaram por toda Moscovo em viaturas diplomáticas, retirada de proteções, ordens de serviço – informação depois transmitida pelo GUR. Estava em preparação uma operação complexa.

Sim, o ministério da Defesa está agora, para dizer o mínimo, a “discutir” a situação com Prigozhin e PMCs. Mas o reforço de medidas em Moscovo não começou hoje – e não por este motivo.

 

Por isso, mesmo que as entidades oficiais russas dissessem a si mesmas que Prigozhin podia ser contido, o despertar de opositores ucranianos na Rússia poderia ser outra questão. Mesmo que Prigozhin se tenha tornado rebelde, os meios de comunicação ocidentais pareceram um pouco surpreendidos com o facto de a Rússia ter entrado em modo de alerta máximo. E Prigozhin foi rapidamente alvo de detenção e de um processo judicial quase certo. Putin também descreveu rapidamente a revolta como uma traição. A tradução deste vídeo é, infelizmente, muito fraca:

Video aqui

 

Isto dá-nos o essencial:

Vladimir Putin: As acções que dividem a nossa unidade são, de facto, apostasia do nosso próprio povo, dos camaradas de armas que estão agora a lutar na frente.  Trata-se de uma punhalada nas costas do nosso país e do nosso povo.  Foi um golpe semelhante que foi dado à Rússia em 1917, quando o país estava a travar a Primeira Guerra Mundial. Mas a vitória foi-lhe roubada. Intrigas, disputas, politiquices nas costas do exército e do povo transformaram-se no maior choque, a destruição do exército e o colapso do Estado, a perda de vastos territórios. O resultado foi a tragédia da guerra civil.  Russos mataram russos, irmãos – irmãos, e toda a espécie de aventureiros políticos e forças estrangeiras… (aqui)

 

Ou algo mais curto:

Discurso de Putin à nação, com legendas em inglês, cortesia do canal Slavyangrad no Telegram.

Só Deus sabe o que Prigozhin estava a pensar, mas agora é oficialmente um homem morto. (aqui)

 

Agora, mesmo que esta rebelião seja tão fraca como os tuits acima sugerem, não deixa de ser uma grande má notícia para o resto do mundo, minando os esforços da Rússia para ganhar amigos e influenciar países.

Para evitar que este post se prolongue demasiado em relação ao elevado dinamismo dos acontecimentos actuais, consulte Simplicius the Thinker, que cataloga em pormenor a forma como os recentes discursos de Prigozhin sobre traição e fracassos no campo de batalha são pura invenção. Prigozhin tem vindo a exagerar tão visivelmente e, mais recentemente, a inventar “fracassos”, que alguns especialistas russos, como Mark Sleboda, estavam convencidos de que se tratava de um grande golpe psicológico para fazer com que a Ucrânia e o Ocidente coletivo pensassem que a Rússia era mais fraca e mais dividida do que é, de modo a encorajá-los a continuar a fazer coisas estúpidas, como manter obstinadamente as posições e até atacar as linhas russas. E esse pode até ter sido o plano inicial, mas depois Prigozhin tomou o freio nos dentes.

Não esquecer que, segundo Prigozhin, o que ele está a tentar fazer não é um golpe de Estado. Não está a tentar derrubar Putin (ou, provavelmente, não o está a fazer neste momento). Está a tentar conseguir grandes mudanças na liderança militar russa para, entre outras coisas, fazer avançar a sua posição e impedir que Wagner seja integrado na força regular russa. O prazo para a assinatura de novos contratos termina a 1 de julho e Prigozhin recusou-se a aceitar. Mas, para Putin, desestabilizar as forças armadas durante uma guerra pode muito bem ser um golpe de Estado, uma vez que põe em risco a Rússia e não apenas ele.

E há que questionar a sua conduta à luz desta história da RT do mês passado, sobre os rumores que circulavam de que Prigozhin estava em contacto com os serviços secretos ucranianos, que nunca foram realmente desmentidos. Aqui estão as citações de “traição” de Zelensky que o Washington Post apagou:

WaPo: Os documentos indicam que o GUR, a sua direção de serviços secretos, tem contactos de bastidores com Evgeny Prigozhin de que o senhor tinha conhecimento, nomeadamente reuniões com Evgeny Prigozhin e oficiais do GUR. Isso é verdade?

Zelensky: Trata-se de uma questão de informação secreta [militar]. Querem que eu seja condenado por traição de Estado? Por isso, é muito interessante, se alguém está a dizer que você tem documentos, ou se alguém do nosso governo está a falar sobre as actividades dos nossos serviços secretos, eu também gostaria de lhe fazer uma pergunta: Com que fontes da Ucrânia tem contacto? Quem está a falar sobre as actividades dos nossos serviços secretos? Porque este é o crime mais grave no nosso país. Com que ucranianos está a falar?

WaPo: Falei com funcionários do governo, mas estes documentos não são da Ucrânia, são de…

Zelensky: Não importa de onde são os documentos. A questão é com que funcionário ucraniano falou?

WaPo: E posso ler-lhe que informação existe exatamente sobre Prigozhin e o GUR. A 13 de fevereiro, Kirill Budanov, chefe da Direção Principal de Informações da Ucrânia, informou-o sobre um plano russo para desestabilizar a Moldávia com dois antigos associados de Wagner. Budanov informou-o de que considerava o plano russo como uma forma de incriminar Prigozhin porque “temos negócios” com ele. O senhor deu instruções a Budanov para informar o Presidente da Moldávia, Maia Sandu, e Budanov disse-lhe que o GUR tinha informado Prigozhin de que ele seria rotulado como um traidor que tem estado a trabalhar com a Ucrânia. O documento diz também que Budanov esperava que os russos utilizassem os pormenores das conversações secretas de Prigozhin com o GUR e dos encontros com oficiais do GUR em África…

 

Esta vossa amiga não está em condições de desvendar isto. Lendo toda a secção, parece que Zelensky ficou aborrecido por o Post ter esta informação e não ter tentado negar a sua exatidão, e a patranha do Post fez com que parecesse provável que estes estivessem entre os 300 documentos da fuga de informação do Discord que o Post disse ter visto, curiosamente dos quais nem todos passaram do Post. No entanto, é possível supor que Prigozhin estava a tentar ser um agente duplo e que a situação se tornou demasiado pública.

Mais uma vez, é de perguntar porque é que Putin esperou tanto tempo para agir. Talvez ele e a liderança militar considerassem Prigozhin como um problema auto-limitado, dependente da logística russa e, portanto, pouco capaz de uma ação independente. Mas “pouca” está longe de ser “nenhuma”. E não fizeram nada para controlar as suas explosões ou tentar limitar o seu alcance. Talvez pensassem que a sua guerra aberta e o seu desprezo pelo exército regular (que, aliás, é muito bem pago, daí o elevado número de alistamentos) os unificaria. Isso pode ser verdade, mas se Prigozhin não tivesse sido autorizado a participar numa operação psicológica monstruosa, que decidiu reutilizar no final, como é que não viram que ele estava a ficar descontrolado?

Apesar de a Rússia ter feito com que os chechenos e as milícias do Donbass levassem a pior parte da limpeza de Mariupol, pelo que não são as únicas forças que a Rússia tem para operações de proximidade, parece que Wagner tinha um contrato para Bakhmut (o seu bloqueio nesse concerto foi estranho) e que se tornou o foco da Operação Moedor de Carne. Prigozhin, apesar de ter falado muito bem de Surovkin, que, segundo li, era o cérebro da operação, estava descontente com o desbaste e com os elevados custos daí resultantes para os seus homens e queria avançar mais depressa. Isto pode explicar o facto de ele atacar regularmente os dirigentes.

Por conseguinte, não era prático deslocar Prigozhin durante a operação Bakhmut. Putin pode ter delegado a tarefa de amarrar e prender Prigozhin a oficiais superiores das forças armadas e dos serviços secretos, que sobrestimaram a sua capacidade de o conter. Talvez venhamos a descobrir como é que isto aconteceu. Mas, tal como acima referido, haverá uma tendência da imprensa para atribuir aos russos as acções das células adormecidas da Ucrânia, que já estavam em curso. Também vai ser difícil de perceber isso.

As novas actualizações indicam que parte do que está a acontecer é mais psicológico do que real. Da última atualização de Rybar:

O correspondente da RT, Kosarev, relata uma explosão perto do…

A explosão em Rostov revelou-se ser uma bolacha ou um pacote explosivo, que foi rebentado para dispersar a multidão perto da sede do Distrito Militar do Sul.

Os destacamentos de PMCs exigem que os civis se afastem 2 km do local da sede acordonada. Entretanto, em Rostov, foram vistos os primeiros destacamentos das forças especiais chechenas “Akhmat”, que foram transferidos para reprimir a rebelião.

Mas há também relatos de jactos privados a partir de Moscovo e algumas acções mais sérias:

Colunas de PMCs observadas na região de Lipetsk

A sede operacional da região de Lipetsk recomenda que os residentes da região não saiam de casa sem necessidade urgente e se abstenham de viajar em transportes pessoais e públicos.

 

No entanto, a advertência de Simplicius, o Pensador, feita ontem à noite, continua a ser válida:

O que se passa é que, apesar de ter sido instaurado um processo-crime e de várias regiões russas terem entrado em alerta máximo, até ao momento não há qualquer prova de que Prigozhin esteja realmente a fazer marchar uma “coluna” de tropas wagnerianas para Rostov ou para qualquer outro lugar. Seria de esperar que a alegada coluna de 50 km de comprimento fosse visível e documentada a partir de uma variedade de fontes nesta altura.

Em última análise, Prigozhin não pode percorrer qualquer distância. Mas um louco num centro comercial com uma metralhadora e um cinturão de munições pode causar muitos danos locais e provocar traumas consideráveis antes de ser dominado.

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A autora: Ives Smith, pseudónimo de Susan Webber, é diretora da Aurora Advisors, Inc., detentora do blog Naked Capitalism, um site muito bem classificado e admirado, focado na economia e finanças. Com mais de 25 anos de experiência em finanças, desenvolveu estratégia de banco de investimentos para a McKinsey & Company, desempenhou um papel em aquisições e aquisições alavancadas na Goldman Sachs, e estabeleceu um departamento de fusões e aquisições com sede em Nova York para o Sumitomo Bank. Mais recentemente, fundou a Aurora Advisors Inc., uma empresa de consultoria de gestão sediada em Nova Iorque. As observações abrangentes de Smith sobre o cenário financeiro foram publicadas no Christian Science Monitor, New York Times e Slate. Ela também é autora do ECONned, publicado em 2010, no qual ela “dá a cara pelo papel que economistas e formuladores de políticas tiveram ao possibilitar a ganância e os erros de Wall Street”, segundo o professor de economia da NYU Nouriel Roubini.

 

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