CARLOS MATOS GOMES – CUJUS REGIO, EIUS RELIGIO

 

Cujus regio, eius religio é uma frase latina que significa que a religião do príncipe é a religião dos súbditos, ou do país. Os governados seguem a religião do governante. Trata-se de um princípio estabelecido pelo imperador Constantino. Foi utilizado na reforma protestante, no tratado de Paz de Augsburgo, que estabeleceu um compromisso entre as forças luteranas e católicas na Alemanha. A população de um príncipe católico deveria ser católica e a do príncipe que aderisse à Reforma Protestante deveria fazer o mesmo. Ubi uns dominas Bibi una religio (onde há um só senhor que haja uma única religião).

A aliança da cruz e da espada não é um exclusivo do cristianismo, as três religiões cuja filosofia assenta no conflito do percurso da humanidade — paraíso inicial — queda na vida terrena de sacrifício — e redenção, a utilizaram, todos juntaram à espada um símbolo sagrado. O império otomano, que promoveu a conversão da maioria dos povos do Médio Oriente ao islamismo escolheu o Crescente e os judeus a estrela de David. O poder político nas vastíssimas regiões do planeta que os povos destas três religiões ocuparam e dominaram teve sempre necessidade de uma caução religiosa para os seus grupos mais agressivos imporem o seu domínio. O cristianismo, ainda assim, conseguiu separar, embora à custa de guerras sangrentas e prolongadas, a religião do Estado, pelos menos formalmente. O mesmo não fizeram nem o islamismo nem o judaísmo.

A maioria dos grandes conflitos do Ocidente desde a emergência do islamismo teve causas religiosas. As igrejas, entendidas como entidades organizadas para enquadrarem a sociedade tendo como norma um corpo filosófico que regula princípios morais e os impõe como lei, competem entre si para se colocarem no centro do poder de facto, para obterem o favor do príncipe e para, através deste, determinarem o modo de viver do povo, a distribuição da riqueza e dos privilégios.

A Igreja Católica é a igreja matriz de todas as igrejas europeias, é a igreja herdeira do império romano e do sacro império romano-germânico. É, de todas as igrejas cristãs europeias, a única que tem uma difusão planetária (um feito que se deve mais aos jesuítas portugueses e espanhóis do que aos pastores anglicanos).

A Jornada Mundial da Juventude que decorreu em Lisboa de 1 a 6 de Agosto de 2023, embora muito bem embrulhada em papéis de celofane, apesar das cantorias e dos eventos para multidões, das luzes e das bandeiras desfraldadas foi, exatamente pelo privilégio dado ao aparato em vez da substância, um revelador das dificuldades que a Igreja Católica atualmente atravessa, em consonância com a perda de influência e poder da Europa, o seu berço, resultantes do declínio como potência mundial no pós II Guerra, da descolonização que a arredou das regiões de domínio e lhe trouxe comunidades das antigas colónias que ela tem dificuldade em integrar e, por fim, do envelhecimento da população europeia.

Os papas do pós Segunda Guerra têm tentado cada um à sua maneira evitar que a Igreja Católica seja arrastada pela decadência da Europa e apresentá-la como uma entidade global e atuante nos novos tempos e nos novos espaços, como se nada tivesse a ver com a colonização e o colonialismo, com os poderes absolutos, o nazismo e o fascismo. Todos procuraram sair de Roma (da Europa) e fazerem-se à estrada, ao mundo, uns com mais sucesso — João Paulo II, outros com menos — Bento XVI e o mundo respondeu de acordo com os interesses dos poderes instalados, tratando os papas como personagens mediáticas de um live aid, que poderiam ser úteis como agentes integradores de grupos potencialmente conflituais numa dada ordem nacional ou regional. Contudo os papas e as suas entourages viram-se sempre a si como os herdeiros da única igreja imperial da história da humanidade, e por isso ocupando um lugar único entre as religiões e as igrejas do planeta.

O primeiro atributo carismático dos papas resultava da herança imperial e o segundo residia no mistério do poder contido no objeto simbólico que é o sacrário, um cofre-forte que, além da porta blindada, tem ainda uma cortina que esconde o que configura o divino. Todos os papas até este mantiveram a organização imperial da Igreja, baseada na hierarquia, no poder dos hierarcas, nos sacerdotes consagrados, nos dogmas da fé de castigo e recompensa, na disciplina dos fiéis. As representações do poder podiam ser adaptadas à personalidade de cada papa, mas o essencial do seu carisma era baseado na autoridade e manteve-se assim até este papa jesuíta, vindo dos confins do império que os católicos maioritariamente espanhóis e italianos criaram no fundo do hemisfério sul, na Argentina, estilhaçar o edifício milenar e as suas serventias.

Em vez do mistério do silêncio e da distância, do dogma, do apelo à luta pela imposição de uma verdade e de um Deus totalitário, de uma atitude imperial, este papa apela à tolerância, à boa convivência, à paz, à generosidade, ao respeito pelos nossos semelhantes, pelos animais e pela natureza! O seu carisma assenta no facto de ele ser um ancião simpático, de expressar pensamentos de simples bom senso! Jorge Bergoglio, no papel de papa Francisco da Igreja Católica, é extraordinário porque atirou fora as portas dos sacrários, rasgou as cortinas e disse aos fiéis: Não há nada aqui dentro que não seja o que vocês forem capazes ou quiserem aqui colocar. Isto é apenas uma caixa e o bem e Deus não se encaixotam! E riu-se!

O extraordinário em Francisco — um facto que o aparelho mediático que o envolve procura cobrir com o silêncio — é que a sua mensagem doutrinal está mais próxima das filosofias orientais do que das do cristianismo e mais longe ainda do que tem sido a mensagem catolicismo romano desde as cruzadas e da contrarreforma. A mensagem de Francisco está próxima do budismo, onde o conceito de Deus único, ser supremo, divino, eterno, celestial, juiz todo-poderoso, criador de todas as coisas, é substituído pela atribuição dos eventos da Terra e da humanidade aos próprios humanos. Uma mensagem também em linha com o confucionismo, na busca do caminho em equilíbrio entre a vida mundana e a espiritual, entre o homem e a natureza. A mensagem deste papa não difere também da que os anciãos das civilizações ditas primitivas de África ou das Américas transmitem aos seus familiares ou às suas tribos. Podem ser encontradas nos livros de aforismos africanos, indianos, asiáticos. O extraordinário da mensagem do papa Francisco é que ele propõe retirar à Igreja Católica o seu poder de maior utilidade, o que a dota de um valor único, o poder de sacralizar, isto é, de justificar o poder dos reis e dos soberanos através da invocação do poder divino. Este papa nega aos poderosos que digam aos seus povos que o são pela Graça de Deus e da Santíssima Virgem! Em última instância, Francisco não cauciona os juramentos dos homens poderosos feitos com a mão sobre a Bíblia ou com a invocação: assim Deus me ajude.

A mensagem deste papa representa um pontapé no vespeiro que o Vaticano, com as suas intrigas de corte, de facto é desde os primeiros concílios de Niceia. O Ocidente exerceu o seu domínio no mundo apoiado numa Igreja Católica organizada e disciplinada, dogmática, onde a autoridade não se discute, que castiga sem piedade os hereges e excomunga os que duvidavam. Francisco propõe, sem o dizer explicitamente, uma Igreja mais parecida com os movimentos filosóficos do que com uma guarda que cauciona o poder armado.

Recorrendo à história de Portugal e aos 50 anos do 25 de Abril. A Igreja Católica ou segue o caminho da abertura a povo que Francisco lhe propõe, como se fosse Otelo, ou realiza o seu 25 de Novembro e, na melhor das hipóteses encontra um papa tradicionalista moderado que cumpra o seu ministério como Eanes, trazendo a igreja de volta aos templos e aos conventos.

Mas, esquecendo estes pormenores, a organização das Jornadas foi um êxito, os jovens passearam por Lisboa de graça, comeram a custos moderados, dormiram em casas amigas, os espetáculos foram bem encenados, o som impecável, as autoridades civis e eclesiásticas sorriram e saudaram-se mutuamente. Portugal pode exibir a taça!


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Cujus regio, eius religio. Cujus regio, eius religio é uma frase… | by Carlos Matos Gomes | Aug, 2023 | Medium

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