CARLOS MATOS GOMES – PELA REINTRODUÇÃO DO PRINCÍPIO DA INCERTEZA NOS PARLAMENTOS

 

O princípio da incerteza é um dos aspetos mais conhecidos da física do século XX. Foi formulado pelo físico alemão Werner Heisenberg, em 1927 e tem sido muito utilizado para exemplificar a diferença entre a mecânica quântica e as teorias físicas clássicas. Nestas, quando conhecemos as condições iniciais, conseguimos determinar o movimento e a posição dos corpos ao fim de um certo espaço de tempo, enquanto, segundo o princípio da incerteza da física quântica, não podemos medir a posição e o momentum de uma partícula com total precisão e quanto mais preciso for o conhecimento de um dos valores, menos sabemos do outro.

Ainda que o princípio da incerteza tenha a sua validade restrita ao nível da física, ao inserir valores como indeterminação e probabilidade no campo da análise de fenómenos físicos podemos aproveitá-lo para o estudo dos comportamentos das sociedades. Existe uma aceitação muito generalizada de que a História da humanidade tem um devir e uma racionalidade.

O que nos é apresentado como realidade são certezas. Com a exceção dos programas dos jogos da Santa Casa e dos de comentários desportivos antes dos jogos, dos boletins dos eurolotos e dos cartões das raspadinhas, não existem programas nem publicações que manifestam incertezas. As certezas com que nos derrubam as dúvidas têm sempre no seu momento inicial a certeza dos Bons e dos Maus, do lugar Certo e do lugar Errado da História.

O domínio dos meios de comunicação de massas são tão apetecíveis pelos que vivem da conquista da opinião pública para obterem as decisões políticas porque são meios de transformar a incerteza em certeza. Uma televisão, uma rádio ou um jornal são aparelhos micro ondas de derreter a incerteza. Colocam-se as dúvidas num recipiente adequado, escolhe-se o programa e passado uns minutos a incerteza sai pronta a servir como um prato de certezas e alguns temperos extras como comentários.

Nos regimes liberais, os grandes meios de comunicação detiveram até há pouco o exclusivo de apresentar a incerteza como uma heresia, ou uma bizarria da ciência, e de fabricar certezas que as eliminassem. O poder político resultante da incerteza das eleições compensava as certezas resultantes dos interesses dos oligarcas.

Os regimes democráticos, com todas as suas reais limitações, eram fruto da incerteza que permitia a escolha, e, havendo escolha não há certeza, diria o criado do senhor La Palisse. Um parlamento de um regime de democracia representativa resultante do voto era um lugar de incertezas. Mesmo quando havia maiorias, existia incerteza. É conhecida a afirmação — comprovada com exemplos do dia-a-dia — do filósofo Bertrand Russel de que o produto mais vendido no mundo não é necessariamente um bom produto — caso da Coca Cola; e que uma falsidade aceite pela maioria das pessoas não passa a ser verdade: -caso da crença de que era o Sol que girava à volta da Terra. Os parlamentos refletiam a diferença entre qualidade e perceção da qualidade em que assenta a dúvida e a incerteza.

A corrupção da qualidade da democracia Ocidental, da europeia em particular e após a guerra na Ucrânia mais claramente, pode ser verificada pela inaudita e abusiva imposição da certeza da atribuição da bondade e da maldade a contendores em conflitos tão complexos como são os que decorrem na Ucrânia e na Palestina.

A iluminação das fachadas dos edifícios dos parlamentos, pelo menos o da União Europeia e o de Portugal, com as cores da Ucrânia ou do Estado de Israel, além da leitura imediata de que os parlamentos não se distinguem dos grandes armazéns, do El Corte Inglês, das Galerias Lafayette, ou do Harrods, o que já diz alguma coisa sobre os promotores da iniciativa, mais dados à publicidade do que ao respeito pelo bem público da dúvida (não da dívida). Mas o essencial da iluminação é o seu significado: os promotores e apoiantes da ação promocional entendem não haver lugar à incerteza, neste caso sobre a bondade de Zelenski e de Netanyahu, de que eles são os nossos campeões.

Estas decisões luminosas também revelam quanto as lições da História (além da ciência) andam arredadas do pensamento dos dirigentes dos órgãos de soberania agora sucessivamente iluminados de amarelo e azul ou de branco e azul. Quantos regimes e dirigentes foram bondosamente considerados num dado momento e que após a sua aclamação causaram catástrofes de dimensões mundiais? E não é apenas Hitler, que recebeu o aplauso das democracias inglesas e francesas, mas também quem mais recentemente decidiu desmembrar a Jugoslávia, atacar a Sérvia, ou invadir o Iraque, assassinar Khadafi.

Conhecedores dos resultados dessas bondosas ações teria sido prudente os parlamentos manterem nas luzes fachadas as luzes do costume. É que, se calhar, as luzes que iluminaram os parlamentos a promover os bons do momento foram fabricadas na China, que, segundo quem manda na Europa, os Estados Unidos, são os próximos maus e então lá terão os obedientes parlamentares europeus de iluminar os parlamentos com a bandeira das Stars and Stripes, que tem quatro cores e ficará mais cara, mas representará melhor quem manda nos parlamentos europeus, quem manda acender as luzes e a cor delas.

Talvez devamos introduzir a incerteza como um elemento da análise da História da humanidade e dos acontecimentos do presente.

 

 

 

 

 

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