Espuma dos dias — Você é um antisemita ! Por Gerardo Tecé

Seleção e tradução de Francisco Tavares

6 min de leitura

Você é um antisemita !

Está na hora de aceitar que a vida de um palestiniano não vale nada. Que lhe parece bem o genocídio que está em marcha. Que uns são nossos iguais e outros, como diz o ministro da Defesa israelita, uns animais.

 Por Gerardo Tecé

Publicado por  em 9 de Outubro de 2023 (original aqui)

 

                                Guerra/J.R.Mora

 

O maior drama do conflito Israel-Palestina é a perda de vidas, seguido de perto pela perda da dignidade intelectual. Décadas de massacre internacionalmente tolerado têm vindo a construir um corpo teórico de difícil digestão. A lista de desculpas e argumentos põe-se em marcha nas televisões, jornais, redes sociais e declarações institucionais como tanques desfilando em coluna para Gaza cada vez que Israel mobiliza o seu exército contra civis. Ele está apenas a defender-se e tem o direito de fazê–lo, diz o argumento mais comprado por milhões de espectadores de estômago à prova de – perdão – bombas. A estes não parece que importe muito o facto de que, a cada ano que passa, o estado de Israel ocupe mais e mais áreas sombreadas do mapa do Oriente Médio, reduzindo a Palestina pouco a pouco à mínima expressão. Se pensarem nisso, é uma forma de se defender tão curiosa quanto eficaz. É indiscutível que, se a Palestina desaparecesse, Israel teria conseguido defender-se estupendamente da Palestina. Disso não há dúvida. Enquanto Israel invade a sangue e fogo, outro dos argumentos estrela aparece cruzando o caminho: se os palestinianos pudessem, eliminariam os israelitas. Se quiserem, podemos transferi-lo para a vida doméstica. Entrem no jardim do vizinho. Quando este lhes repreender a ocupação, cortem-lhe o pescoço e fiquem com a sua parcela. Na vida real, logicamente, você acabaria na prisão. No cenário internacional, os vizinhos acenam com a cabeça enquanto o portador da faca explica, com  as mãos manchadas de sangue e os pés empoleirados na propriedade do seu vizinho, que ele estava apenas a defender-se.

Você é um anti-sionista, é outro dos projéteis argumentativos lançados frequentemente sobre aqueles que se atrevem a apontar como algo problemático o facto de que um poderoso exército invade terras e massacra a sua população. Ou seja, o que lhe acontece, caso não saiba, não é que lhe repugne a violência impune com que se executou a morte de mais de 6.500 palestinianos desde 2008. O que lhe acontece é que se opõe à doutrina de Theodor Herlz que, no século XIX, defendeu a criação de um estado judeu. Quem é Herlz? Não dissimule o seu ódio antijudaico, ande. Um ódio antijudaico que, a propósito, Hitler não tinha. Não sou eu que o digo, diz o atual primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. O líder ultra-direitista israelita introduziu um novo argumento para uso e desfrute desses estômagos nos quais cabe tudo o que lhes atirem, absolvendo quem acabou com a vida de seis milhões de judeus para fabricar um culpado à medida destes tempos modernos: quem convenceu Hitler a exterminar os judeus foi um muçulmano que era, naquela época, pai da nação Palestina. Entre Nietzsche e o palestiniano, parece injusto que a história continue a desenhar Hitler como um tipo mau. Um pouco influenciável, pelo menos. A coisa não acaba aqui. Se no meio de um desses bombardeamentos israelitas de autodefesa que destroem prédios inteiros cheios de civis, as imagens de televisão mostram corpos enterrados de crianças mortas nos escombros é porque os terroristas palestinianos os usam como escudos humanos. Quem pode imaginar antes de bombardear um prédio de apartamentos que dentro desses andares em que vivem crianças pode haver crianças estrategicamente colocadas cada uma em sua casa pelo terrorismo palestiniano. Um terrorismo que inunda tudo na Palestina. Porque, talvez não saibam, mas qualquer palestiniano é terrorista entendendo como terrorista aquele que infunde terror em Israel. Se há 40 adultos e 15 crianças mortas num edifício bombardeado, 40 eram terroristas e 15, ainda sem idade para o serem, eram os seus escudos humanos. E ponto final.

Mapa histórico dos territórios ocupados (1946-2012). / Palestineiawarenesscoalition

 

O argumentário é insultante para quem tem certo apreço pela sua dignidade intelectual. Se olharmos para os mapas, verificaremos que a Palestina que Israel pretende eliminar é cada vez mais pequena, já que Israel está a eliminar a Palestina. Se estudarmos os números, será uma trapalhada para decidir quem é o terrorista, já que o contador de mortes marca uma proporção de 20 para 1. Se alguém se respeita a si mesmo, não aceitará ser apelidado de anti-sionista, anti-semita ou tantos outros antis que fazem, neste caso sim, de escudo humano diante de um genocídio. É por isso que devemos agradecer que nas últimas horas o ministro da defesa de Israel tenha finalmente acabado com esta bateria de desculpas projetadas para os espectadores mais idiotas deste massacre. Os palestinianos, disse o ministro da democracia mais avançada da região, são animais e vamos tratá-los como o que são, bombardeando os dois milhões de pessoas que habitam Gaza, deixando-os sem eletricidade, água ou comida. Há que aplaudir que, por uma vez, a sinceridade se tenha imposto à propaganda barata, ainda que para isso seja preciso reconhecer que se violam os Direitos Humanos e se atire para o lixo a Convenção de Genebra que proíbe ações contra a população civil.

É hora de pôr de lado os argumentos pré-fabricados e de se auto estimar. Aceitar que, para você, a vida de um palestiniano não vale nada e sim a de um israelita. Que lhe parece bem o genocídio que está em curso. Que isto não se trata de direitos humanos nem de soberania dos povos, como se empenham em nos fazer crer com a bandeira da Ucrânia presidindo um Celta-Getafe pela televisão. Que uns são nossos iguais e outros, como diz o ministro da Defesa israelita, são uns animais. A União Europeia, Prémio Nobel da Paz em 2012, já entrou neste esquema mental de sinceridade ao projetar a bandeira de Israel nos seus edifícios; e parece debater–se entre suspender de forma imediata a ajuda humanitária que envia à Palestina após o terrível atentado perpetrado pelo Hamas – tese do Comissário húngaro para o Alargamento numa mensagem em X (anteriormente Twitter) – ou ficar quieto por enquanto – o Comissário para a gestão de crises diz que não, que na ajuda não se toca. Ele faz isso enquanto Israel dá mais um passo no genocídio. Talvez o definitivo, já que se proporcionam as circunstâncias. Talvez seja preciso começar a olhar com bons olhos para o aquecimento global. Talvez extinguir-nos todos seja finalmente o mais oportuno.

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O autor: Gerardo Tecé [1982-], jornalista espanhol, com formação superior em Estatística (Universidade de Sevilha). Atualmente é correspondente de CTXT na Andaluzia, escreve para late Motiv e continua na Agência Plop que fundou em 2015.

 

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