CARLOS MATOS GOMES – ALIENAÇÃO E COMPADRIO

 

Na coluna que mantem no jornal Público o cronista João Miguel Tavares titulou a sua crónica: “1,1 milhões de fascistas começam a ser fascistas a mais”. É uma crónica exemplar de como um demagogo vê outro demagogo e como o justifica, promovendo a confusão de conceitos e utilizando frases publicitárias — os sound bytes em que Paulo Portas, tal como Marcelo Rebelo de Sousa, são mestres — para, neste caso, vender dois produtos: a normalidade e a respeitabilidade do Chega como partido político democrático e a do apoio popular à sua entrada no governo, assim pressionando o atarantado Montenegro.

A demagogia é uma forma de ação política assente na manipulação das massas através de promessas que muito provavelmente não serão realizadas, visando apenas a conquista do poder. Os demagogos utilizam argumentos apelativos, emocionais ou irracionais, em vez de argumentos racionais. A demagogia procura manipular a maioria usando frases de senso comum entremeadas com disjunções falaciosas. Esta prática remonta à Grécia antiga e um dos exemplos mais conhecidos de demagogo é o do ateniense Cléon, conhecido entre outras habilidades por, depois de Atenas ter derrotado a frota de Esparta e de esta apenas poder pedir a paz sem condições, ter persuadido os atenienses a rejeitar a oferta de paz e, para coroar as suas propostas, apesar de nunca ter combatido, acusou de cobardia os generais atenienses, e prometeu conduzir a guerra contra a Esfactéria mesmo sem conhecimento militar. Também Alcibíades é um exemplo grego de demagogo: convenceu o povo de Atenas a conquistar a Sicília e conseguiu com os seus discursos e promessas que a assembleia ateniense o nomeasse comandante dos seus exércitos, com resultados desastrosos.

Ventura e os seus pastores, como João Miguel Tavares, agem dentro do registo dos demagogos, à semelhança do que fazem, aliás, personagens bem mais perigosas para nós, ocidentais, como Trump, Biden, Úrsula Von der Leyen, ou Borrel. Não sabem, não combateram, mas cospem injúrias e sopram promessas de vitória e limpeza a eito. O que é significativo não é a impossibilidade de existência de um milhão de fascistas e racistas em Portugal, mas a possibilidade de haver mais de um milhão de crentes nas virtudes do Ventura como restaurador da grandeza da Pátria, da sua limpeza e da probidade dos seus aristocratas e senhorios! Isto é, da restauração de um Portugal que nunca existiu! De um Dom Sebastião que no regresso encontrasse Portugal transformado num infantário.

A demagogia enquanto prática de manipulação está associada a dois outros conceitos: o da publicidade e o da alienação. Tal como o ovo e a galinha não é possível afirmar quem nasceu primeiro. O certo é que constituem os ingredientes essenciais para garantir o poder, que é o objetivo final da política.

A mensagem sublimar que o título de João Miguel Tavares pretende transmitir é que não havendo em Portugal 1,1 milhões de fascistas e racistas o Chega não é fascista nem racista e pode e deve fazer parte de um governo da República! É escusado ler o programa do Chega, da prisão perpétua à castração, do fim da escola pública ao do serviço nacional de saúde, da proposta de “seleção” dos emigrantes por raças à ideia de uma raça nacional portuguesa, da defesa de um estado policial à prioridade no investimento em despesas com forças de segurança, em detrimento de despesas sociais.

Ao contrário do que João Miguel Tavares escreve, o voto no Chega não é de portugueses zangados — a análise dos eleitores do Chega revela uma elevada percentagem de jovens urbanos pertencentes a dois estratos sociais muito distintos, mas que não se caraterizam por estarem zangados com o país: jovens de classes médias (bling bling — betos — o que os franceses designam por BCBGBon Chic, Bon Genre e os ingleses por Good Style, Good Class) e a malta suburbana das claques do futebol. Os festivais de música e os estádios cheios provam que esses grupos de votantes não estão zangados e que se divertem sem grandes preocupações cívicas. Não querem é misturas, nem dores de cabeça a pensar.

A questão que as volumosas votações em partidos demagógicos e oportunistas levanta é o da facilidade , o da recorrência da alienação de massas e o do êxito  da demagogia, isto é da resiliência (para usar um termo da moda) de velhos e primitivos truques que funcionam tanto em sociedades de baixa literacia como em sociedades tidas por muito desenvolvidas. A questão é a da descoberta que a educação formal e a informação podem ser utilizadas contra a liberdade e, mais, contra os interesses dos alienados que estejam para além do seu apetite imediato.

A propósito da linguagem da demagogia, encontrei um texto de Paula Maimuna Bernardo Angelo Bambo, da Universidade Licungo, de Moçambique, sobre as frases de atrair clientes dos vendedores de roupa no mercado de Quelimane. Alguns exemplos: Mana moça compra aqui saias de primeira. — Experimenta ‘boss’, aqui e só novidade. — Saias, blusas, vestidos da primeira qualidade, olha, olha, é só ‘bling’ das famosas. As famosas compram aqui mesmo, vem mana moça, aqui é só ‘grif’ de marca. — Mana, não precisa tirar mais, essa saia ficou muito bem é teu número mesmo, parece que trouxe de casa, leva mana moça leva mana é de marca, vou fazer bom desconto.

O discurso dos demagogos políticos é deste tipo. Os demagogos vendem roupa, não a vestem, e sabem que nunca a vestirão. Vivem da alienação dos compradores, que comprarão roupa que não lhes servirá e que, em muitos casos, eles terão vergonha de utilizar.

Há quem defenda que o conceito de alienação pode ser encontrado no Velho Testamento, na implantação da idolatria sob a forma de profetas de um Deus único todo poderoso. A alienação necessita de um ídolo todo poderoso e a criação desta figura é feita com um discurso demagógico.

O discurso demagógico comum a Ventura e a João Miguel Tavares, a Trump e tantos outros pode ser desmontado com uma análise do discurso dos vendedores do mercado de Quelimane. O discurso demagógico, tal como o dos vendedores, derruba barreiras hierárquicas e funciona como um elemento persuasor. Os comerciantes, tal como os demagogos, contam histórias para o cliente se considerar alguém de confiança e que, para não defraudar essa prova, acaba por comprar o produto. Mas, contudo, o cliente do mercado informal não é um idiota, tal como o votante do Chega não o é — existe um acordo tácito entre o cliente e o vendedor. Os clientes partilham os mesmos valores do vendedor, o que impede o distanciamento ou a estranheza quanto aos métodos do comerciante e estabelecem entre si relações dentro do princípio do ditado inglês Every dog has his day, que corresponde ao adágio português: um dia é do caçador e outro é da caça.

O milhão de votantes do Chega que João Miguel Tavares garante não ser fascista nem racista é, no mínimo a prova da eficácia do discurso demagógico e da existência de um milhão e cem mil portugueses disponíveis para comprar produtos sem garantia, para serem conduzidos por motoristas sem carta, operados ao cérebro por curandeiros ou magarefes, para comprarem bilhetes da lotaria premiados. Um milhão e cem mil portugueses que são contra as empresas de certificação de elevadores, os prazos de validade dos alimentos, a correspondência dos rótulos aos produtos dentro das embalagens, que podem comprar tremoços sem miolo e bifes da cabeça das vacas.

A expressão “fala mana”, produzida pelo comerciante do mercado de Quelimane, é uma forma de atrair o cliente, a partir do momento em que o comerciante percebe a disposição do mesmo em consumir. O Ventura, apoiado por João Miguel Tavares, disse: Votem manos. E os manos já dispostos a votar, votaram, mas agora, tal como o da história daquele que, acusado de consumo de droga, respondeu que fumara, mas não inalara, garantem que votaram, mas não são fascistas nem racistas. São apenas uns compinchas que apoiavam um pobre diabo. Estavam zangados e em vez de uma bebedeira, de umas cenas de pancadaria, votaram no Chega!

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