Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 2 — Texto 13. O debate entre Blanchard e Brancaccio suscita duas reflexões . Por Annalisa Rosselli

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 2 – De Sraffa à necessidade de romper com o pensamento económico dominante. As grandes questões da macroeconomia

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

11 min de leitura

Texto 13 – O debate entre Blanchard e Brancaccio suscita duas reflexões

 Por ANNALISA ROSSELLI*

 vol. 72, nº 287 (setembro de 2019), Crises e Revoluções da teoria e da política económica: um simpósio (ver aqui)

(*) Contribuição para a edição especial de Moneta e Credito do título “Crises e revoluções da teoria e política económicas: um simpósio”, inspirado no debate entre Olivier Blanchard e Emiliano Brancaccio realizado na Fundação Feltrinelli em Milão em 18 de dezembro de 2018. Editado por Emiliano Brancaccio e Fabiana de Cristofaro. A autora é presidente da Sociedade Italiana de Economistas (SIE) para o triénio 2017-2019. As posições aqui enumeradas não vinculam os órgãos de direcção da SIE e são expressas a título puramente pessoal.

 

Resumo

O debate entre Blanchard e Brancaccio suscita duas reflexões. A primeira diz respeito à possível aliança entre economistas pertencentes a diferentes tradições culturais para promover medidas fortes para relançar a economia e diminuir a desigualdade a fim de evitar consequências que poderiam perturbar as nossas democracias.

A segunda reflexão diz respeito à raridade dos debates entre economistas mainstream e não-mainstream. Numerosos estudos mostram que a profissão económica é hoje em dia altamente hierarquizada, com apertado controlo sobre o que é considerado permissível em termos de método, campo de estudo e meios de divulgação de resultados. A falta de pluralismo é uma característica única da economia entre as ciências sociais.

 

O que têm em comum dois economistas como Emiliano Brancaccio e Olivier Blanchard, para além da mesma origem europeia? Aparentemente, muito pouco. Separam-nos uma geração inteira, um oceano, diferenças na educação, ideias e poder. Blanchard foi formado na tradição do Massachusetts Institute of Technology (MIT) de Solow e Modigliani, que criou a corrente dominante da macroeconomia do século XX ao manter um enfoque democrático no problema do desemprego e uma crença na necessidade e possibilidade de intervir para corrigir as falhas mais gritantes do mercado. A tradição cultural de Brancaccio, por outro lado, é aquela que foi iniciada há mais de meio século pelos italianos em Cambridge (Reino Unido) e que sobrevive em muitas versões diferentes nas reservas de alguns departamentos do nosso país, escapando à homologação com o modelo de importação prevalecente nos EUA. É uma tradição que não expulsou a história – de factos e ideias – dos estudos económicos, que tem a coragem de desafiar o pensamento dominante cujo preconceito ideológico nunca se cansa de destacar, e que prossegue a procura de um “paradigma económico alternativo” (Blanchard e Brancaccio, 2019, p. 9). Blanchard desempenhou um papel de liderança no Fundo Monetário Internacional (FMI) na sequência da falência do Lehman Brothers e no meio da crise da dívida soberana, quando o FMI estava a entrar na Grécia com os outros membros da Troika. Brancaccio organizou ativamente a oposição à política de austeridade e às políticas deflacionistas ferozes impostas a alguns países europeus, recusando-se a aceitar a vulgata de que os problemas da UE se deviam todos a uma dívida governamental excessiva.

Blanchard é um dos economistas mais influentes do nosso tempo. Gerações de estudantes em Itália e em todo o mundo formaram-se ou estão-se a formar com os  seus livros de texto sobre macroeconomia. Um inquérito em curso da Sociedade Italiana de Economistas [1] relata que o seu mais recente livro didático, co-escrito com Amighini e Giavazzi, é adotado por 54% dos cursos básicos de macroeconomia nas universidades italianas (Blanchard et al., 2016). Nenhum manual de economia tem percentagens tão elevadas de adesão e é tão popular. Assim, sem perturbar Keynes e a sua famosa afirmação de que poucas pessoas conseguem estar abertas a novas teorias depois dos vinte e cinco ou trinta anos, o senso comum sugere que a influência de Blanchard está garantida por muito tempo. É, portanto, compreensível que Brancaccio, querendo atacar o paradigma macroeconómico dominante e as prescrições de política económica que dele decorrem, escreva um livro e com o título polémico Anti-Blanchard, porque este título é suficiente para definir o programa (Brancaccio, 2017; Brancaccio e Califano 2018).

No entanto, para que um debate seja interessante – e este debate para o qual fui gentilmente convidada a comentar é sem dúvida muito interessante – deve haver um mínimo de pontos em comum para manter os participantes empenhados no diálogo e no envolvimento dos ouvintes confiantes de que surgirão desenvolvimentos úteis a partir do confronto. O terreno comum que Brancaccio identifica em alguns vislumbres que levariam o mais recente Blanchard, quase desconhecido para ele, a cruzar a demarcação que Brancaccio e a sua tradição de pensamento desenham para separar abordagens teóricas alternativas: aquela, da qual Blanchard descende, que considera a distribuição de rendimentos determinada pelas características estruturais e tecnológicas do sistema, de modo a haver apenas um nível possível de salário, juros e lucro compatível com a máxima eficiência de afetação, e aquela que, em vez disso, introduz a possibilidade de que a distribuição de rendimentos e os níveis de emprego e produção não estejam sujeitos a restrições recíprocas. Para esta segunda abordagem, uma das variáveis de distribuição é determinada exogenamente ao sistema de quantidade e preço, introduzindo assim espaço para a influência de fatores que não são apenas económicos no caso da determinação dos salários, ou o papel das políticas monetárias no caso da determinação das taxas de juro.

Não consigo avaliar quão rebuscada é esta interpretação que Brancaccio oferece do pensamento de Blanchard após o tumulto da última década. Algumas referências no papel de Brancaccio deixam-me perplexa, fazendo-me surgir a dúvida de que seja dado demasiado peso ao aspeto formal do modelo, deixando de fora os pressupostos implícitos e explícitos subjacentes. Por exemplo, Brancaccio vê, nos modelos de Blanchard que admitem uma relação não única entre níveis de produção e distribuição de rendimentos, uma abertura para tradições teóricas ‘heterodoxas’. Contudo, a referência à falácia lógica que vicia a proposta de Hahn de ler Sraffa como um modelo económico de equilíbrio geral parece-me indicar uma tendência para sobrestimar o nível de similaridade formal. Mesmo sem um erro lógico, a proposta não se manteria. Mas há muitas pistas para pensar que o próprio Brancaccio está consciente de que a análise do plano formal por si só não pode ser exaustiva para a comparação entre paradigmas alternativos.

No entanto, com base nas escassas sugestões dadas no debate, não posso dizer mais do que estas palavras de prudência. Na sua resposta, o próprio Blanchard não insiste no confronto teórico e prefere basear as suas atuais posições anti-laissez-faire na convicção de que o equilíbrio eficiente pode ser tão “natural” quanto se queira, mas é tão instável que, assim que nos desviamos dele por muito pouco que seja, uma ação corretiva deve ser imediata antes que seja demasiado tarde e o sistema se desloque inexoravelmente por caminhos divergentes dos quais é difícil e fastidioso repô-lo na situação de equilíbrio anterior. Um tal equilíbrio não é muito útil.

Como historiadora (de ideias e um pouco de factos), porém, gostaria de sugerir outra área de contacto entre os dois participantes no debate, que me parece mais suscetível a novos desenvolvimentos úteis, e que é a de uma aliança de economistas menos imbuídos de ideologia liberal, a fim de construir uma frente comum contra uma tempestade da qual podemos ver os sinais premonitórios. Passaram-se dez anos desde o início da crise e fingimos que, economicamente falando, a normalidade voltou, pelo menos em quase todo o lado. Nesta situação, existe uma forte tentação de agir como se nada tivesse acontecido, existe uma aspiração generalizada de regresso, como diz Blanchard, à normalidade, às políticas dos bancos centrais com a inflação como único objetivo, a uma utilização limitada da política orçamental e ao afrouxamento gradual das regras que foram impostas às instituições financeiras. As lições que a crise ensinou podem facilmente ser esquecidas para que a próxima recessão, que como sempre ninguém verá chegar antes que seja demasiado tarde, nos encontre de novo impreparados.

Desta vez, porém, o custo da crise poderia ser muito mais elevado, e não apenas em termos económicos, infelizmente. E aqui intervêm os avisos da história. Foram feitas demasiadas comparações entre os anos que estamos a viver e o período entre guerras do século passado. Mas enquanto a lição da Grande Depressão parece ter sido aprendida e, mais ou menos rapidamente e com as devidas diferenças de um país para outro, as autoridades de política económica reagiram para evitar as consequências mais catastróficas da crise financeira, outra lição parece ainda não encontrar tantos discípulos. A lição é que é muito difícil gerir processos de mudança epocais na organização da produção enquanto se vive em situação de estagnação. Nas primeiras décadas do século passado, a industrialização, a importação de bens agrícolas baratos do estrangeiro, a produção em massa de bens de consumo, e o advento da distribuição em grande escala levaram ao empobrecimento daquela grande parte da população europeia que era composta por artesãos, pequenos comerciantes, micro-proprietários, e a classe média tradicional. Estes, para além do conflito mundial, viram as suas fontes de rendimento diminuir e a sua forma tradicional de trabalhar, o ambiente de vida a que estavam habituados, e os valores culturais com que tinham crescido mudarem radicalmente. Os processos de urbanização e industrialização em grande escala e o abandono da cultura tradicional, que seriam digeridos sem problemas nos anos após a Segunda Guerra Mundial, quando a economia estava em expansão, deixaram muitas vítimas no contexto da crise após a Primeira Guerra Mundial. Os perdedores da mudança, invocada e apoiada por aqueles que viram os seus benefícios a longo prazo, procuraram então refúgio em movimentos políticos que prometiam proteção económica e social, a redução do desequilíbrio dos governos sentida como sendo demasiada a favor dos novos protagonistas da vida económica, o afrouxamento de novas regulamentações sobre saúde e trabalho, sentido este como sendo imposto de cima, e a redução da tributação excessiva e desigualmente distribuída entre as classes sociais. Metade dos 13 milhões de votos ganhos por Hitler nas eleições de 1932 vieram do mundo rural, dos “perdedores” da industrialização e da urbanização (Overy, 2009, p. 56).

O fascismo e o nazismo não advogavam um regresso ao passado e não eram anti modernos, mas prometiam regeneração moral, o fim da corrupção, uma nova ordem de harmonia social sob o controlo de um único partido comandado por um “homem forte” que não seria intimidado por influências estrangeiras, a expulsão de elementos estrangeiros do corpo saudável da nação. Foi contra estas tendências que Keynes tinha concebido o seu programa reformista a favor do pleno emprego.

Brancaccio sublinha como o pensamento de Keynes pode ter sido “forjado a partir do antagonismo entre capitalismo e socialismo” e pode ser interpretado como uma tentativa incansável de sintetizar esses dois modelos opostos de vida social. O ponto a salientar, contudo, é que os verdadeiros inimigos de Keynes eram ditaduras com o seu kit de nacionalismo e militarismo, independentemente de serem de Hitler ou de Estaline (Dostaler, 2005, p. 177). Mas como Keynes teve de aprender nos últimos anos da sua vida, não há nada mais difícil do que um programa reformista que parece ter sempre alguma hipótese de sucesso apenas após imensas tragédias. E é um sucesso que também é de curta duração. Felizmente, a história não se repete e há muitos espaços de liberdade para as ações humanas. Esperemos que desta vez, como Blanchard espera e Brancaccio tem vindo a pregar há algum tempo, os governos aprendam a olhar um pouco mais para a frente e os economistas, pelo menos os mais argutos e sensatos, os ajudem realmente a fazê-lo.

Mas há outro aspeto para o qual este debate constitui um acontecimento raro e uma importante oportunidade de reflexão. Em Itália é agora cada vez mais raro que economistas de diferentes proveniências se encontrem e o que Roberto Artoni, num belo ensaio datado de 2007 (Artoni, 2007), definiu como a abordagem “monística” da economia, segundo a qual apenas a adesão a um modelo de investigação específico, bem definido em método, tema e abordagem cultural, abre a porta à profissão económica. Fora do modelo dominante, não haveria nada com que valesse a pena lidar.

O pluralismo científico deve ser um elemento indispensável do crescimento do conhecimento, especialmente em campos como a economia e as outras ciências sociais, onde o risco de deturpação ideológica é elevado e a expansão do conhecimento não prossegue através da acumulação progressiva de verdades aceites como irrefutáveis. No entanto, desde 2007, o “monismo” de que Artoni viu as premissas criou novas raízes. A disciplina exacerbou o controlo sobre o que é considerado permissível como produto da investigação do ponto de vista do método, do campo de estudo e dos meios de divulgação dos resultados. Foi notado (Fourcade et al., 2015) que nenhuma ciência, entre as ciências sociais e não só, exerce o mesmo controlo hierárquico apertado a nível mundial e mantém o mesmo consenso interno que na economia.

A rígida hierarquia de cima para baixo vê as posições de topo firmemente ocupadas pelos departamentos de elite das universidades americanas: das fileiras dos cinco departamentos de topo saem 72% dos eleitos para os órgãos diretivos da Associação Económica Americana; uma grande proporção dos autores que publicam nas cinco revistas de topo por citações (a economia está cheia dos Cinco Magníficos) obtiveram um doutoramento sob a supervisão dos seus membros, de acordo com percentagens não encontradas noutras disciplinas e atingindo 57,6% para o Quarterly Journal of Economics (QJE). De facto, nada menos que duas das cinco primeiras revistas estão sediadas em Harvard (e no vizinho MIT) e Chicago e dão uma quantidade desproporcionada de espaço aos seus ex-alunos. E ainda 83 por cento dos autores que publicaram em 2011 no QJE, JPE (Journal of Political Economy) e AER (American Economic Review) pertenciam a universidades nos EUA ou no Canadá (Hamermesh, 2013, p. 164). A estrutura piramidal é também geográfica.

O recrutamento também tem lugar em ordem hierárquica rigorosa. Nos EUA, os estudantes de doutoramento não são recrutados a partir de departamentos pertencentes a ordens inferiores, mas apenas de departamentos de nível igual ou superior. Por outras palavras, apenas os provenientes dos departamentos de elite entram nos departamentos de elite. Fourcade, Ollion e Algan evocaram a estrutura de clã estudado por Levi-Strauss: algumas alianças são preferidas e concedidas, enquanto outras são tabu e nem sequer contempladas.

Fora dos Estados Unidos, num patamar inferior da hierarquia, o reconhecimento obtido das instituições norte-americanas é generalizado e a homologação do modelo importado é fortemente promovida como um elemento da única internacionalização possível. A “adaptação às normas internacionais” tem sido o mantra sobre o qual a profissão está a ser forjada também em Itália. O campo da investigação da economia e do seu método reduziu-se consideravelmente. Acabaram-se as investigações qualitativas (“onde está o modelo?” ouvem-se os autores perguntar quando estudam um fenómeno económico demasiado complexo para ser formalizado), acabou-se a invasão de outras disciplinas sociais, quanto mais não seja para exportar os seus próprios axiomas de escolha racional ou métodos de análise quantitativa (ser informado que o seu trabalho é ‘sociológico’ soa como uma condenação irreparável ao ouvido do economista). Dentro da disciplina oficial, por outro lado, é permitida alguma experimentação agora que a economia comportamental ganhou legitimidade e está em ascensão, mesmo que os seus pioneiros em Itália tenham passado por dificuldades. Ao longo dos últimos vinte anos, áreas disciplinares inteiras têm sido progressivamente marginalizadas. A história do pensamento económico, em que a Itália se destacou, quase abandonou o campo para encontrar refúgio nas humanidades, a história económica sobrevive ao preço de se disfarçar de economia utilizando dados “antigos”, mas mesmo a economia matemática não está a ir bem depois do pico de sucesso alcançado nos anos 80, quando representava o mais alto nível de investigação económica. Afinal, os artigos classificados como “Teoria” publicados nas três primeiras revistas acima mencionadas – AER, JPE e QJE – caíram de 58% do total em 1983 para 19% em 2011 (Hamermesh, 2013, p. 168) e a tendência é descendente. A revolução empírica em curso, resultado do aumento da disponibilidade de dados e do poder das ferramentas informáticas, decretou o triunfo da microeconomia aplicada, mesmo que a sua aplicação diga frequentemente respeito a problemas não relacionados com o mundo da produção e das trocas, que antes não teriam sido considerados de interesse para o economista.

Atualmente, o único tipo de publicação permitida é o artigo da revista, sendo os livros reservados à popularização ou à persuasão política. Os doutorandos, que até há cerca de quinze anos atrás tinham de escrever uma tese-monografia, são agora encorajados a concentrarem-se na produção de dois ou três artigos, por vezes mesmo um único artigo com alguns anexos, sem terem de enfrentar uma única vez na sua vida um problema económico em toda a sua complexidade, aprofundando todos os seus aspetos.

O artigo, por sua vez, será avaliado com base na revista que tenha aceitado ou, espera-se, que seja aceite a sua publicação. Nos corredores dos departamentos, já não se fala de artigos escritos “sobre”, mas sim de artigos publicados “por”. As ciências económicas e estatísticas – a área CUN 13 – são as únicas que no VQR 2011-2015, através de um comité nomeado pela Agência Nacional de Avaliação do Sistema Universitário e Investigação (ANVUR), não escolheram a revisão por pares ou uma medida das citações recebidas pelo artigo individual como critério para avaliar produtos de investigação, como todas as outras áreas fizeram. Em vez disso, escolheram como critério o local de publicação do produto, avaliado de acordo com uma classificação de periódicos dividida em cinco grupos, o que completa a classificação de periódicos de nível A para qualificação científica nacional. Todas as disciplinas têm um periódico de nível A, a economia tem dois, mas esta abundância não aumentou as hipóteses de inclusão para revistas com uma orientação heterodoxa. Por outro lado, o jogo de coautoria e avaliação através da atribuição de pontos permitiu obter a habilitação ao grau de professor em matéria económica a um número razoável de académicos que são investigadores (e provavelmente doutorados) em disciplinas como a patologia vegetal ou a química analítica [2], sobre cuja capacidade de ensinar e fazer as pessoas compreenderem a micro ou a macroeconomia está sujeita a caução. É de notar que nenhum desses qualificados provém das fileiras de filósofos ou juristas. Não são matérias rigorosas, diriam alguns economistas. Nenhum cientista está tão interessado como os economistas em proclamar o seu rigor como sinal de superioridade sobre as outras ciências sociais, identificando provavelmente o rigor com a construção de um modelo matemático ou estatístico. Nunca se ouviu um físico ou matemático vangloriar-se de ser ‘rigoroso’. E que mais pode um cientista ser?

O pluralismo não é apenas uma questão cultural; requer condições de igualdade no acesso a recursos e oportunidades de carreira. Nenhum jovem economista, homem ou mulher, a menos que seja dotado de amplos recursos familiares e de um grande espírito de sacrifício, pode querer enveredar por um caminho que não tenha qualquer hipótese de sucesso. Esta igualdade de condições de concorrência em Itália encontra-se hoje seriamente ameaçada. A Sociedade Italiana de Economistas alterou o seu estatuto este ano e introduziu a “salvaguarda do pluralismo” entre os seus objetivos. A necessidade disto nunca tinha sido sentida antes.

De facto, a estrutura hierárquica dos departamentos italianos reproduz de uma forma reduzida a dos departamentos americanos do tipo “o vencedor ganha tudo”. Há já alguns anos, o financiamento da investigação económica em Itália – PRIN, departamentos de excelência, prémios – tem vindo a cair sobre as mesmas pessoas e os mesmos departamentos, criando grandes disparidades agravadas pelo contexto de grave escassez de recursos que aflige os excluídos do círculo dos vencedores. Uma análise dos dados recolhidos pela Sociedade Italiana de Economistas sobre os PRIN 2015 reconstruiu as ligações entre avaliadores e vencedores de projetos em termos de filiação ou lugar de graduação, revelando anomalias significativas.[3]

Há uma resposta fácil e óbvia a todas estas observações, e é que a hierarquia reflete o mérito. Num regime competitivo, os melhores surgiriam e os economistas seriam simplesmente melhores na promoção da meritocracia do que outros cientistas sociais, de modo que aqueles que se encontram no topo ocupariam apenas as posições mais valiosas no mercado das ideias. O apertado controlo exercido pela hierarquia sobre financiamento, promoção e recrutamento estaria enraizado no consenso alcançado no seio da profissão. É o consenso que explicaria o controlo e não o contrário. Não haveria, portanto, mais paradigmas alternativos em economia do que na medicina, onde só existem cientistas ou charlatões.

Há muitas objeções que podem e foram levantadas a esta posição, que é provavelmente mais aceite no nosso país como uma estratégia de sobrevivência do que partilhada com base na convicção. Não entrarei nas muitas razões pelas quais a economia é diferente da medicina, apesar do facto de que há 250 anos que persegue a aspiração de ser considerada uma ciência da natureza. Mesmo a simples listagem de referências à literatura sobre o assunto ocuparia demasiado espaço. Apenas salientaria que a história da disciplina é abundante com exemplos de abordagens que foram descartadas e depois retomadas. Um caso para todos: o da relação com a psicologia, banida da economia no seguimento de Pareto para dar lugar a uma otimização racional dos agentes. Em 1978, um Prémio Nobel a Herbert Simon tentou recolocá-lo na ribalta, mas foram precisos mais vinte e cinco anos e outro Prémio Nobel para decretar a sua readmissão com triunfo entre os economistas.

Afinal, a crise de 2008, na sequência da indignação popular, parecia ter introduzido algumas brechas também nos escalões superiores da hierarquia dos economistas. No entanto, depois de algum despoeiramento de Keynes e de uma reabilitação tardia de Minsky, as águas parecem ter recuado para o mar da complacência. Aqueles que se preocupam com o futuro da economia, não só como instrumento para compreender o mundo mas também para o melhorar, não podem regozijar-se. É por isso que debates como este entre Brancaccio e Blanchard, que comentamos, são muito bem-vindos. Esperamos que haja muitos mais para vir.

___________

Notas

[1] O inquérito, relativo ao número de estudantes e cursos de Ciências Económicas, será publicado em outubro de 2019 no sítio Web da SIE, entre os materiais da CURV, Comissão para a Universidade, investigação e avaliação: http://www.siecon.org/it/chi-siamo/organizzazione/commissioni/curv

[2] Ver o inquérito da Sociedade Italiana de economistas sobre a posição actual dos qualificados para o segundo nível, disponível em https://www.siecon.org/it/chi-siamo/organizzazione/commissioni/commissione-luniversita-la-ricerca-e-la-valutazione (Último acesso 25/8/2019)

[3] A nota está disponível em https://siecon3-607788.c.cdn77.org/sites/siecon.org/files/media_wysiwyg/nota-prin-2015-fin.pdf. Com base nesses dados, a equipa Editorial de Roarsha escreveu um artigo afirmando: “os professores de Bocconi são 5,1% dos professores de economia (SSD de SECS/p-01 a SECS/P-13), mas 77% dos fundos PRIN no setor económico (SH1) são atribuídos a projetos nos quais Bocconi coordena (36%) ou colabora (41%). É realmente uma coincidência que um membro do Comité de Patrocinadores seja um aluno de Bocconi, o Comité de área SH1 seja composto por um Bocconiano e um ex-aluno, e 48% das revisões tenham sido realizadas por Bocconianos ou ex-alunos?”(https://www.roars.it/online/i-bocconiani-sono-il-5-ma-il-77-dei-fondi-prin-sh1-va-ai-loro-progetti/).

 

 

Bibliografia

Artoni R. (2007), “Valutazione della ricerca e pluralismo in economia politica”, Rivista Italiana degli Economisti, 12 (2), pp. 191-204.

Blanchard O. e Brancaccio E. (2019), “Pensare un’alternativa. Dialogo tra Olivier Blanchard e Emiliano Brancaccio”, Micromega, 2, pp. 7-30; (cfr. anche Blanchard O. e Brancaccio E., “Crisis and Revolution in Economic Theory and Policy: A Debate”, Review of Political Economy, published online 6 August 2019).

Blanchard O., Amighini A. e Giavazzi G. (2016), Macroeconomia. Una prospettiva europea, nuova edizione, Bologna: Il Mulino.

Brancaccio E. (2017), Anti Blanchard. Un approccio comparato allo studio della macroeconomia, Milano: Franco Angeli.

Brancaccio E., Califano A. (2018). Anti-Blanchard macroeconomics. A comparative approach. Edward Elgar. ISBN: 9781788118996.

Dostaler G. (2005), Keynes et ses combats, Parigi: Albin Michel.

Fourcade M., Ollion E. e Algan Y. (2015), “The Superiority of Economists”, The Journal of Economic Perspectives, 29 (1), pp. 89-114.

Hamermesh D.S. (2013), “Six Decades of Top Economics Publishing: Who and How”, Journal of Economic Literature, 51 (1), pp. 162-172.

Overy R. (2009), Crisi tra le due guerre mondiali 1919-1939, Bologna: Il Mulino.

 


A autora: Annalisa Rosselli [1949] é uma economista italiana. É professora de História da Economia Política na Universidade de Tor Vergata, Roma. Licenciou-se em Matemática pela Universidade de Florença e mais tarde estudou economia na London School of Economics e na Universidade da Califórnia, Los Angeles. Iniciou a sua carreira académica na Universidade de Perugia e continuou-a em Roma La Sapienza, Bari e Florença. Atualmente leciona História do Pensamento Económico e da política na Universidade LUISS “Guido Carli” em Roma e é conselheira perito do CNEL desde 2020, nomeada pelo Presidente da República. Os seus principais interesses de pesquisa na história da economia política são história e teoria do dinheiro, economia política clássica, economistas de Cambridge de Marshall ao período imediato do pós-guerra. Sobre estas e outras questões publicou trabalhos que apareceram nas principais revistas nacionais e internacionais do sector. Foi presidente da STOREP (associação italiana para a história do Pensamento Económico) de 2010 a 2012, Vice-Presidente da Sociedade Europeia para a história do Pensamento Económico (ESHET) de 2005 a 2008 e depois presidente de 2012 a 2014; Presidente da Sociedade Italiana de economistas de 2016 a 2019. Para além da actividade habitual das conferências, professor visitante, membro do Conselho editorial das revistas (actualmente Europeanour Por muitos anos, ela também lida com os aspectos económicos da igualdade de género e, como especialista em equilíbrio de género, desenvolve uma intensa atividade de divulgação e participou de inúmeros projetos nacionais e europeus. (ver aqui)

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