Espuma dos dias — “Assédio e demolição contra a ONU devido a Gaza”. Por Enrique Yeves Valero

Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

Assédio e demolição contra a ONU devido a Gaza

 Por Enrique Yeves Valero

Publicado por , nº 343, Mayo de 2024

 

A crise de Gaza continua a provocar danos colaterais: a ONU sofre um assédio sem precedentes tanto em Gaza, onde já morreram uns duzentos trabalhadores da organização, como em Nova Iorque, onde os altos dirigentes sofrem pressões e campanhas de difamação para limitar o seu já diminuído poder.

 

Tudo aconteceu muito rapidamente num fim de semana, e foi impossível travar a disparatada reação em cascata de numerosos governos ocidentais num frenesim diplomático absurdo pela sua falta de racionalidade. Em 26 de janeiro o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) emitiu pelas 13 horas a sentença preliminar contra Israel em que lhe solicitava um aumento dos esforços para evitar mais mortes e danos em Gaza. Um par de horas depois o governo de Israel anunciava, sem apresentar provas, que 12 empregados da UNRWA (Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Médio Oriente) teriam participado nos ataques do Hamas de 7 de outubro, notícia que as redes sociais se encarregaram de propagar massivamente em poucos minutos. De forma imediata, um atrás de outro, os principais doadores da UNRWA anunciavam a cessação do seu apoio à organização. Primeiro foram os Estados Unidos, o principal contribuinte, depois a Alemanha – o segundo maior contribuinte – a que se seguiram em 27 e 28 de janeiro (sábado e domingo) um gotejar contínuo: Reino Unido, Itália, Países Baixos, Suíça, Finlândia, Austrália, Canadá, Estónia… até um total de 16 países. Na segunda-feira, pela manhã, somente 48 horas depois do anúncio israelita, em pleno fim de semana de trabalho inaudito nas chancelarias ocidentais, a agência que cuida dos refugiados palestinianos acordava perante o cancelamento de contribuições que totalizavam 450 milhões de dólares (411 milhões de euros).

“Foi um fim de semana louco. Imperou uma irracionalidade difícil de entender com governos com os quais trabalhamos diariamente, com uma comunicação fluida, que num fim de semana decidiram cancelar as suas contribuições sem sequer falarem connosco, baseando-se tão somente naquilo que dizia o governo de Israel”, sublinhou Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, conversando com o Le Monde Diplomatique em espanhol. Até hoje, o governo israelita não só não apresentou nenhuma prova de tão graves acusações, como aumentou o número de empregados acusados por colaborarem com o Hamas para 450 trabalhadores. Uma investigação independente divulgada em abril em Nova Iorque e dirigida pela ex-ministra dos Negócios Estrangeiros francesa Catherine Colonna chegou à conclusão de que Israel ainda não tinha apresentado provas que demonstrem que o pessoal da UNRWA esteja vinculado a organizações islamistas como o Hamas.

Muitos quiseram ver uma cortina de fumo para tapar o impacto mediático da sentença do TIJ. O certo é que o assédio e demolição a que a ONU em geral está a ser submetida, e a UNRWA em particular, por parte de Telavive, com o apoio de poderosos aliados como Washington, vêm de longe, mas atingiu um nível muito preocupante para a comunidade internacional desde o ataque do Hamas de 7 de outubro passado.

A agência da ONU para os refugiados palestinianos é um bastião imprescindível para manter o apoio aos palestinianos, especialmente em Gaza, onde, dos 2 milhões de habitantes, 1,5 milhões são refugiados da Palestina. 80% da população de Gaza dependia antes desta crise da ajuda de emergência da UNRWA, e 59% estava classificada como população em situação de insegurança alimentar. A agência não opera apenas em Gaza; ajuda também a outros 4,4 milhões de refugiados palestinianos na Cisjordânia, Jerusalém Este, Síria, Líbano e Jordânia, e é responsável por 8 campos, 276 escolas (com quase 300.000 alunos) e 22 centros de atenção primária [1].

O preço pago pelos trabalhadores da ONU em Gaza durante esta crise não foi pequeno. Uns 200 trabalhadores da ONU morreram desde 7 de outubro devido ao ataque israelita, que provocou já uns 33.000 mortos e 77.000 feridos, segundo o ministério de saúde de Gaza (este número não inclui as numerosas vítimas que ainda estão debaixo dos escombros). As ações de Telavive estão dirigidas claramente à eliminação da UNRWA, e não começaram em 7 de outubro com o ataque do Hamas. Para Raquel Martí, diretora executiva da UNRWA de Espanha, trata-se em primeiro lugar de uma organização incómoda “porque representa os direitos reconhecidos pela comunidade internacional aos refugiados palestinianos, nomeadamente o direito de regresso que tanto preocupa – e não reconhece – Israel. Além disso, trata-se de uma organização grande que gere toda a ajuda humanitária que entra em Gaza. Acabar com a UNRWA é acabar com a coluna vertebral da ajuda humanitária em Gaza”.

Algumas fontes assinalam que Israel e os Estados Unidos estariam a negociar um plano para eliminar a UNRWA e substituí-la por alguma outra organização à qual Washington destinaria os fundos que agora nega à UNRWA, como poderia ser a ACNUR (Alto Comissariado da ONU para os Refugiados) ou o Programa Mundial de Alimentos (PMA), que depende do financiamento massivo dos Estados Unidos, controlado por Washington e cuja diretora executiva atual é Cindy McCain, viúva do ex-senador por Arizona e ex-candidato republicano à presidência dos Estados Unidos em 2008, John McCain.

 

Relatório explosivo sobre torturas

O assédio contra o pessoal da UNRWA escalou a partir do ataque do Hamas. A agência elaborou um relatório sobre torturas e abusos sobre os detidos palestinianos pelas tropas israelitas e baseia-se nas declarações de 1.506 detidos de Gaza e libertados posteriormente através da passagem de fronteira de Karem Abu Salem. Este número inclui 43 crianças e 84 mulheres. Entre os libertados havia 23 trabalhadores da agência da ONU e 16 familiares do seu pessoal, assim como 326 operários de Gaza que trabalhavam em Israel [2].

“Os prisioneiros denunciaram abusos durante as diferentes etapas da sua detenção. Entre os detidos libertados havia homens e mulheres, crianças, pessoas idosas, pessoas com discapacidades, feridos e doentes, todos os quais foram submetidos a formas semelhantes de abusos, segundo testemunhos com experiência própria recolhidos pela UNRWA. “Golpeavam-me com uma barra metálica extensível. Tinha sangue nas calças e, quando o vira, golpearam-me aí mesmo” assinala um palestiniano detido de 26 anos.

Segundo as denúncias, os abusos incluíam espancamentos enquanto os deitavam em colchões sobre os escombros durante horas, sem comida, água ou acesso a uma retrete e com as pernas e as mãos atadas com abraçadeiras de plástico. Vários detidos denunciaram que os tinham metido em jaulas e atacado com cães. “Alguns detidos libertados, entre eles uma criança, apresentavam feridas de mordidelas de cão”, assinala o relatório. Além disso, os detidos eram ameaçados com uma detenção prolongada, ou ameaçados de lesões ou o assassinato dos seus familiares se não forneciam a informação que lhes era solicitada.

Este é o testemunho de uma mulher palestiniana de 34 anos: “Mostrou-me o meu bairro num écran de computador e pediu-me que lhes falasse de todas as pessoas que eles assinalavam: quem é este, quem é esta, etc. Se não reconhecia a alguém o soldado ameaçava bombardear a minha casa. Perguntou-me que da minha casa não tinha partido para o sul. Disse-lhe que os meus irmãos e o meu pai tinham ficado em casa. Disse-me: se não confessas toda a informação. Bombardearemos a tua casa e mataremos a tua família”.

Outros métodos de abusos que foram denunciados incluíam ameaças de danos físicos, insultos e humilhações, como fazer-nos comportar como animais ou urinarem em cima de nós, utilização de música alta e ruídos, privação de água, comida, sono, casa de banho, recusa do direito a rezar e o uso prolongado de algemas fortemente apertadas que causavam feridas abertas e lesões por fricções. Os espancamentos incluíam golpes contundentes na cabeça, ombros, rins, pescoço, costas e pernas com barras metálicas e coronhas das pistolas e botas, que em alguns casos provocaram costelas partidas, ombros deslocados e lesões permanentes.

As mulheres descreveram terem sido expostas a abusos psicológicos, insultos e ameaças, assim como tocamentos indevidos durante as vistorias e intimidação e assédio enquanto tinham os olhos tapados. Tanto homens como mulheres foram obrigados a despir-se diante dos soldados durante as vistorias e serem fotografados e filmados nus.

Outra mulher palestiniana de 34 anos relatou os abusos que sofreu: “Pediram aos soldados que cuspissem em cima de mim, dizendo ‘esta é uma de Gaza’. Golpeavam-nos enquanto nos movíamos e diziam que nos poriam pimenta nas partes sensíveis. Atiravam-nos ao chão, golpeavam-nos, levaram-nos em autocarro para a prisão de Damon ao fim de cinco dias. Um soldado tirou-nos o hiyab e beliscaram-nos e tocaram em todo o corpo, mamas incluídas. Tínhamos os olhos vendados e sentíamos como nos tocavam, empurrando as nossas cabeças contra o autocarro. Começámos a apertar-nos umas contra outras para tentarmos proteger-nos dos tocamentos. Diziam ‘puta, puta’. Disseram aos soldados que nos descalçássemos e bateram-nos com os sapatos”.

A UNRWA registou também casos de palestinianos do pessoal da agência detidos pelas forças israelitas, alguns deles presos durante o desempenho das suas funções oficiais para a ONU, nomeadamente enquanto trabalhavam nas instalações do próprio organismo e num caso durante uma operação humanitária. “Também denunciaram ter sido objeto de ameaças e coações durante a detenção, sendo pressionados durante os interrogatórios para que confessassem à força contra a Agência, nomeadamente que o organismo tem relações com o Hamas e que o pessoal da UNRWA participou nos atentados de 7 de outubro contra Israel”, diz o relatório.

Maus tratos e abusos contra o pessoal da UNRWA incluíram severos espancamentos físicos e a tortura do afogamento simulado resultando num sofrimento físico extremo; também incluíram espancamentos por parte dos médicos quando tinham de ser assistidos medicamente, ataques de cães; e ameaças de violação e electrocução, entre outros maus tratos assinalados no relatório. Pelo seu lado, a UNRWA aumentou os seus protestos oficiais junto das autoridades israelitas pelo tratamento que os membros da Agência receberam enquanto estavam em centros de detenção israelitas, sem que tenha recebido qualquer resposta até ao momento.

 

O cerco estende-se a Nova Iorque

O trabalho de assédio e demolição contra as Nações Unidas pelo seu papel em Gaza não aconteceu somente no Médio Oriente. Na sede central de Nova Iorque foram empregues todas as armas possíveis para minar o seu trabalho e desprestigiar a organização. Além dos habituais pedidos de demissão do secretário geral, António Guterres, e de outros altos cargos por parte de Israel, assim como a inação do Conselho de Segurança devido ao bloqueio constante exercido por Washington , um dos objetivos preferidos dos lóbis pro-israelitas nos Estados Unidos tem sido a agência ONU Mulheres e em especial a sua diretora executiva, a jordana Sima Bahous, acusada de não ter defendido os direitos das mulheres sequestradas e vítimas do ataque do Hamas. Embora tanto Bahous como a ONU Mulheres tenham condenado o ataque, foram acusadas de o terem feito tarde e não se preocuparem com as mulheres israelitas.

Uma eficaz campanha, denominada “Me Too UNless ur a Jew” (Eu também exceto se és judia), jogando com as palavras da campanha feminista “Me Too” e a sigla das Nações Unidas (UN) manteve a tensão do lóbi pro-israelita contra a ONU e penetrou no público estado-unidense [3]. Pelo seu lado, o conselho Nacional das Mulheres Judias criticou Bahous por ter demorado a condenar o ataque do Hamas, enquanto que no passado dia 8 de março, dia internacional da mulher, umas duzentas mulheres manifestaram-se diante da sede da ONU Mulheres em Nova Iorque com cartazes e fotografias das israelitas sequestradas.

Outro objetivo israelita foi Francesca Albanese, relatora especial sobre a situação dos direitos humanos no território palestiniano ocupado desde 1967 – um cargo independente nomeado pelo Conselho de direitos Humanos da ONU – e uma das vozes mais críticas contra Israel. Foi acusada de ser anti-semita pelas suas contundentes declarações públicas em que qualificava a ofensiva israelita em Gaza como “crime contra a humanidade”, falava abertamente de “limpeza étnica” e pedia um embargo internacional da venda de armas a Israel. As autoridades israelitas não permitiram que visitasse os territórios ocupados palestinianos para fazer o seu trabalho desde que foi nomeada em maio de 2022.

Abanese reconheceu que recebeu ameaças após a publicação do seu relatório sobre indícios de “genocídio” cometidos por Israel contra a população palestiniana no âmbito da sua ofensiva militar na Faixa de Gaza. “Recebo ameaças, nada que até ao momento considerei que exija precauções adicionais. Pressão sim, mas isso não muda nem o meu compromisso nem os resultados do meu trabalho”, assinalou numa conferência de imprensa em Genebra [4].

Mas foi no campo financeiro onde os críticos da organização encontraram o elemento mais débil da ONU. O tradicional atraso dos países membros no pagamento acentuou-se perigosamente este ano. Em abril, somente 10 países dos 193 membros da ONU tinham mantido o sistema de financiamento voluntário. E somente 70 países tinham pago integralmente a sua parte do orçamento ordinário, entre os quais não se encontrava os EUA, o maior contribuinte, o que forçou o secretário geral, António Guterres, a enviar em 25 de janeiro deste ano uma carta interna ao pessoal da organização, assinalando uma bateria de medidas de urgência devido à falta de liquidez, nomeadamente o congelamento dos lugares vagos, limites nas viagens e outras reduções para atenuar o défice de 859 milhões de dólares que se arrasta desde o ano anterior.

A sede de Genebra, a maior depois de Nova Iorque, teve que fechar parcialmente em 22 de abril passado – pela segunda vez desde o início do ano – e reduzir drasticamente as suas atividades devido à falta de liquidez. Segundo Tatiana Valovaya, diretora geral da sede, “a ONU enfrenta a pior crise económica dos últimos anos devido à falta de pagamento das quotas de numerosos países, o que provocou um impacto muito negativo na nossa capacidade operacional” [5].

Todos estes fatores estão a criar a tormenta perfeita sobre as Nações Unidas numa crise que está a pôr à prova a sua capacidade de resistência ante o perigo de irrelevância no atual quadro geopolítico.

 

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Notas

[1] “La ONU se la juega en Gaza”, Le Monde Diplomatique em español, dezembro de 2023.

[2] “Detention and alleged ill-treatment of detainees from Gaza during Israel-Hamas war”. UNWRA, 16 de abril de 2024.

[3] www.metoo-unlessurajew.com/

[4] Europa press, “La relatora especial de la ONU para Palestina reconoce que recibió amenazas por el informe de “genocidio” en Gaza, 27 de março de 2024.

[5] Thalif Deen, “UN in Geneva to partially shut down – for second time – due to cash flow crisis”, 2 de abril de 2024, www.ipsnews.net

 


Enrique Yeves Valero é um jornalista especializado em temas relacionados com a ONU. Tem uma longa trajetória profissional tanto nos meios de comunicação internacionais como nas Nações Unidas.

Iniciou a sua carreira na Espanha na televisão espanhola (TVE) e trabalhou, entre outros, para a BBC e Reuters em Londres, além de ter sido correspondente e enviado especial na África, Ásia e América Latina.

Nas Nações Unidas, foi diretor de comunicação da FAO na sua sede central em Roma, Porta-voz do Presidente da Assembleia Geral em Nova York, onde trabalhou na Secretaria da ONU durante cinco anos, e Diretor do escritório da FAO na Espanha. Foi também coordenador oficial dos eventos de comemoração do 75O aniversário das Nações Unidas em Espanha. É também autor de vários livros, entre os quais cabe destacar: “a Contra: uma guerra suja” (edições B, Barcelona 1989) que foi finalista do Prémio Reporter 1990, e “O ano que vivemos ousadamente”, fruto de sua experiência como porta-voz na ONU. Dirigiu e coordenou uma série de 11 livros da coleção “el Estado del Planeta”, publicados em 2018 conjuntamente pelo jornal El País e pela FAO. Recebeu inúmeros prémios internacionais como o prestigioso “CNN World Report Award” e o “Stories from the Field” da ONU.

Escreve regularmente para Le Monde Diplomatique em espanhol e El País.

 

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