Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 3 — Texto 3. O realismo dos pressupostos é importante: Porque é que a teoria de Keynes-Minsky deve substituir a teoria dos mercados eficientes como guia da política de regulação financeira (1/4). Por James Crotty

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 3 – Das harmonias universais decretadas pela Escola de Chicago à violência das crises atuais – Reflexões sobre os Nobel ou nobelizáveis da Escola de Chicago

Nota de editor: devido a extensão e nível de abstração do presente texto, o mesmo é publicado em 4 partes. Hoje a primeira.

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

15 min de leitura

Texto 3 – O realismo dos pressupostos é importante: Porque é que a teoria de Keynes-Minsky deve substituir a teoria dos mercados eficientes como guia da política de regulação financeira (1/4)

 Por James Crotty (*)

Publicado por  Department of Economics, março de 2011 (ver aqui)

(*) Agradeço a Jerry Epstein os comentários sobre um projecto anterior e, em especial, a Tom Bernardin, que prestou um valioso apoio à investigação e conselhos úteis. Gostaria de agradecer ao Departamento de Economia da UMASS pelo apoio à investigação através do seu programa Sheridan Scholar.

 

 

Resumo

A desregulamentação radical dos mercados financeiros após a década de 1970 foi uma condição prévia para a explosão em tamanho, complexidade, volatilidade e grau de integração global dos mercados financeiros nas últimas três décadas. Por conseguinte, contribuiu para a gravidade e amplitude da recente crise financeira global. Não é provável que a desregulamentação tivesse sido tão extrema e a crise tão ameaçadora se a maioria dos economistas financeiros tivesse adotado a teoria do mercado financeiro de Keynes-Minsky, que conclui que os mercados financeiros não regulamentados são inerentemente instáveis e perigosos. Em vez disso, aqueles argumentaram que as teorias neoclássicas dos mercados financeiros eficientes demonstram que reguladas levemente geram preços de segurança e níveis de risco ideais e evitam explosões e quedas.

A teoria do mercado eficiente tornou-se dominante, apesar do facto de que é uma teoria tipo conto de fadas baseada em hipóteses cruamente irrealistas. Ela só poderia ter sido adotada por uma profissão comprometida com a metodologia positivista fundamentalmente falhada de Milton Friedman, que afirma que o realismo das hipóteses não tem relação com a validade de uma teoria. Keynes argumentou persuasivamente que apenas hipóteses realistas podem gerar teorias realistas. A teoria de Keynes-Minsky, que é derivada de um conjunto de hipóteses deve ser o guia da profissão para a política de regulação.

 

1. Introdução

No rescaldo do colapso financeiro nos EUA que começou em 1929, acreditava-se quase universalmente que os mercados financeiros não regulamentados são inerentemente instáveis, vulneráveis à fraude e manipulação por parte de pessoas de dentro, e capazes de desencadear crises económicas profundas e agitação política e social. Estes eventos económicos e políticos eram compatíveis com as teorias de instabilidade financeira endógena criadas por John Maynard Keynes e depois desenvolvidas por Hyman Minsky. Para proteger o país da instabilidade financeira, o governo dos EUA criou um sistema regulatório rigoroso que funcionou efetivamente durante a década de 1960. A turbulência económica e financeira nos anos 1970 e início dos anos 1980 levou a uma mudança de paradigma e de regime de política. A teoria neoclássica de mercados financeiros ‘eficientes’ ou ‘perfeitos’ e a nova teoria macro clássica (que pressupõe que os mercados sempre geram pleno emprego) substituíram as visões teóricas de Keynes e Minsky [1]. O governo, influenciado pela crença de que a teoria do mercado financeiro eficiente foi sancionada pela ‘ciência econômica’, desregulamentou radicalmente os mercados financeiros dos EUA após 1980.

A maioria dos economistas financeiros argumenta que os mercados financeiros levemente regulamentados permitem que investidores individuais e institucionais alcancem o máximo de retorno para um determinado nível de risco e escolham a quantidade de risco ideal para eles. Na mesma linha consideram que estes mercados também alocam recursos escassos para as suas utilizações mais produtivas, tornando o setor real da própria economia mais eficiente. Teria sido muito mais difícil promulgar uma desregulamentação radical se o núcleo da profissão económica se opusesse à teoria dos mercados eficiente, e tivessem apoiado uma regulação apertada, como fizeram nas décadas de 1950 e 1960 [2]. Nas palavras do Prémio Nobel Joseph Stiglitz:

“A profissão de economia tem mais do que um pouco de culpa [pela crise financeira e económica global]. Forneceu os modelos que deram conforto aos reguladores de que os mercados poderiam ser auto-regulados; que eles eram eficientes e auto-corretores. A hipótese dos mercados eficientes – a noção de que os preços de mercado revelam plenamente todas as informações relevantes – tem sido dominante. Hoje, não só a nossa economia está em ruínas, como também o paradigma económico que predominou nos anos anteriores à crise – ou pelo menos deveria estar.”

(Financial Times, “Needed: a new economic paradigm”, 19 de agosto de 2010)

Francis Fukuyama, conselheiro de Ronald Reagan e de George Bush filho, comentou sobre a relação simbiótica entre grandes empresas financeiras e economistas financeiros que ele acredita que contribuíram para o apoio da profissão à hipótese do mercado financeiro eficiente:

Wall Street seduziu a profissão de economista não através de corrupção evidente, mas alinhando os incentivos dos economistas com os seus próprios. É muito fácil para os economistas académicos mudarem de universidades para bancos centrais, para fundos de cobertura, um mundo estreitamente unido em que todos partilhavam as mesmas opiniões sobre os efeitos auto-reguladores e benéficos dos mercados de capitais abertos. A aliança foi extremamente lucrativa para todos: os académicos receberam grandes honorários de consultoria e Wall Street obteve legitimidade. E manteve o sistema a funcionar apesar das enormes falhas políticas que gerou, sem excluir a crise recente. (Citado em Skomarovsky 2011) [3]

A teoria do mercado eficiente não foi universalmente apoiada pela elite da profissão. Havia economistas financeiros respeitados cuja crítica à teoria dominante apareceu em revistas de economia de primeira linha. Alguns utilizaram pressupostos de conflito agente-principal, informação assimétrica e contratos incompletos para minar até certo ponto a conclusão da eficiência do mercado. Outros basearam-se na teoria financeira comportamental para demonstrar que várias formas de ‘irracionalidade’ do investidor, psicologicamente fundamentada, podem ajudar a explicar testes empíricos dececionantes de eficiência do mercado. Mas nenhuma dessas teorias pretende, segundo os seus apoiantes, ser um substituto para a visão incorporada na teoria financeira neoclássica. Em vez disso, elas devem ser tomadas como suas emendas que não desafiam a sua posição dominante na profissão. “A literatura financeira comportamental… simplesmente adota a visão neoclássica com adicionais enviesamentos (por exemplo, sobrerreação, subreação, enquadramento, etc.” (Findlay e Williams 2008-09, p. 224). Camerer e Lowenstein insistem que as finanças comportamentais não procuram “uma rejeição geral da abordagem neoclássica da economia baseada na maximização da utilidade, equilíbrio e eficiência” (2004, p. 1). Matthew Rabin, uma estrela no campo comportamental, argumenta que o seu programa de pesquisa é “não só construído sobre a premissa de que os métodos económicos dominantes são excelentes, mas também que a maioria dos pressupostos económicos dominantes são excelentes” (2002, p. 658). E, à semelhança de problemas de abuso infantil ou conjugal, essas disputas teóricas foram mantidas ‘dentro da família’ dos principais economistas financeiros. Assim, a sua existência não corroeu a crença do público de que a profissão apoiava fortemente a desregulamentação.

A teoria dos mercados financeiros eficientes e ótimos parece ser aos não-crentes uma teoria bastante absurda, porque é baseada numa longa lista de hipóteses grosseiramente irrealistas que têm pouca relação com o sistema financeiro do mundo real. Além disso, os testes empíricos da teoria são dececionantes. Isso levanta duas questões interessantes:

Como é que uma teoria construída sobre um conjunto de hipóteses que não têm nenhuma semelhança com os mercados do mundo real e têm um suporte empírico muito fraco se tornou tão amplamente aceite pelos economistas financeiros?

E porque é que os economistas financeiros rejeitam as teorias muito mais realistas associadas a Keynes e Minsky que podem explicar eventos como a recente crise?

Uma parte importante da resposta a estas perguntas reside na metodologia peculiar utilizada pela maioria da profissão de economista – a teoria do positivismo como foi explicada e defendida por Milton Friedman no seu famoso ensaio de 1953 “A Metodologia da Economia Positiva” [4]. Esta metodologia é examinada na Seção 2, e nela Milton Friedman considera que o realismo das hipóteses é irrelevante para se avaliar se uma teoria é considerada válida e corretamente consistente. A Seção 3 avalia criticamente os testes empíricos usados para defender a teoria dos mercados financeiros ótimos. A Seção 4 compara o canónico modelo neoclássico de determinação dos preços dos ativos financeiros com a teoria dos mercados financeiros associada a Keynes e Minsky (KM) e nesta secção argumenta-se que a teoria de Keuynes-Minsky (KM) é uma teoria superior e, portanto, um guia muito melhor para a política de regulação precisamente porque é baseada em hipóteses realistas. A Seção 5 apresenta três exemplos de como os pressupostos irrealistas da teoria convencional enganaram reguladores e investidores na recente crise. A última Seção oferece observações finais.

 

2. O positivismo de Friedman e o domínio da teoria dos mercados financeiros otimais.

A teoria dos mercados financeiros ótimos tem duas partes como componentes. A primeira é a hipótese de que os mercados financeiros têm uma eficiência informacional perfeita; esta é a hipótese do ‘mercado eficiente’ ou HME “per se”. A segunda é a hipótese de que os preços de mercado dos ativos são preços de equilíbrio ótimos definidos por agentes maximizadores de utilidade racional que têm informações perfeitas sobre os fluxos de caixa associados a todos os títulos.

A HME [hipótese do mercado eficiente] afirma que todas as informações relevantes para o preço correto dos títulos são utilizadas no processo de revelação do preço dos ativos. Como Eugene Fama, um dos criadores da teoria do mercado eficiente, escreveu: “Eu tomo a hipótese de eficiência do mercado como a simples afirmação de que os preços dos ativos refletem plenamente todas as informações disponíveis” (1991, p. 1575). Fama observou que “os modelos de equilíbrio de mercado começam com a hipótese de que os mercados são eficientes” (Federal Reserve Bank of Minneapolis 2007, itálico acrescentado). Assim, a eficiência não é nem uma propriedade derivada nem observável nem diretamente testável dos mercados financeiros. É uma hipótese necessária para construir modelos de revelação dos preços ótimos dos ativos que concluam que o risco e o retorno têm preços adequados.

A HME levanta duas questões importantes:

  • qual é o conjunto de informações ‘relevantes’ que está disponível para os investidores; e.
  • o que é que significa dizer que essa informação é ‘totalmente refletida’ nos preços dos títulos.

Em relação à primeira questão, a teoria neoclássica dos mercados financeiros pressupõe que o conjunto de informações disponíveis aos investidores consiste na expectativa correta da distribuição dos fluxos de caixa futuros associados a cada título. Por outras palavras, a teoria é construída na hipótese de que os investidores, através de algum processo milagroso, mas não especificado, ganham conhecimento perfeito do futuro [5]. Através de uma torção peculiar na linguagem, essas expectativas são chamadas de expectativas ‘racionais’, mesmo que pareça ser o auge da irracionalidade assumir que qualquer um pode conhecer o futuro. No entanto, como discutido abaixo, a hipótese de que todas as informações relevantes são usadas para revelar o preço dos títulos não está exclusivamente associada à teoria neoclássica. Num mundo keynesiano em que ninguém pode saber o futuro, os agentes sensatos também usariam todas as informações que considerassem relevantes para formar as suas expectativas, embora não tivessem motivos para acreditar que as suas expectativas estavam seguramente corretas.

Uma resposta para a segunda pergunta requer a especificação de um modelo de revelação de preços, ou uma teoria que possa ser usada para converter expectativas de fluxo de caixa em preços dos títulos. A teoria convencional do mercado financeiro postula que todos os agentes usam expectativas “racionais” como entrada num dos canónicos modelos ótimos de preços de títulos, como o modelo de precificação de ativos de capital (CAPM-Capital Asset Pricing Model) ou o modelo de precificação de opções. O modelo então gera preços ótimos que refletem com precisão o risco e o retorno associados a todos os títulos. O paradigma perfeito dos mercados financeiros que sustentou o movimento de desregulamentação consiste, portanto, na hipótese conjunta de que a HME e uma teoria canónica de preços ideais explicam, juntas, como os mercados geram preços dos títulos.

Existem dois problemas sérios com a teoria dominante de preços de segurança financeira ideais. O primeiro é metodológico e trata da relação entre hipóteses e conclusões ou hipóteses derivadas. O segundo relaciona-se com a evidência empírica usada para apoiar a teoria.

Poucos economistas questionam a metodologia, mas a base metodológica da economia neoclássica é a versão de Milton Friedman (1953) do ‘positivismo’. O positivismo afirma duas teses importantes. Em primeiro lugar, nem a medida em que o conjunto de pressupostos de uma teoria incorpora todos os elementos centrais do fenómeno sob investigação, nem o realismo institucional ou comportamental ou empírico das hipóteses adotadas importam na avaliação de sua validade ou utilidade. A “relação entre o significado de uma teoria e o “realismo” das suas hipóteses é quase o oposto do sugerido pelos [críticos do positivismo]. Hipóteses verdadeiramente importantes e significativas deverão ser encontradas para ter “hipóteses” que são representações descritivas muito imprecisas da realidade…” (Friedman 1953, p. 14). Em segundo lugar, é impossível determinar se uma hipótese é mais realista do que outra. Uma teoria “não pode ser testada comparando as suas “hipóteses” diretamente com a “realidade.” De facto, não há nenhuma maneira significativa pela qual isso possa ser feito” (p. 41). O único teste legítimo de uma teoria, então, é se as suas hipóteses derivadas podem ser usadas para fazer previsões consistentes com dados relevantes: “O único teste relevante da validade de uma hipótese é a comparação das suas previsões com a experiência” (Friedman 1953, p. 9). Uma vez que o teste de previsão de necessidade envolve hipóteses “ceteris paribus”, na prática a profissão depende de testes de hipóteses econométricos com dados passados.

Porque é que uma profissão académica sancionaria a utilização de teorias baseadas em hipóteses grosseiramente irrealistas? Não é uma ideia intuitivamente atraente. Suspeita-se que a razão subjacente seja a seguinte: os economistas estão, em geral, comprometidos com a defesa de proposições que não podem ser geradas por modelos baseados em hipóteses realistas. Por exemplo, uma longa série de hipóteses irrealistas é necessária para gerar a conclusão desejada de que os mercados financeiros não regulamentados têm um desempenho ótimo. Considere o comentário de William Sharpe num artigo de referência sobre o CAPM que o ajudou a ganhar o Prémio Nobel:

“Escusado será dizer que [as hipóteses do modelo] são hipóteses altamente restritivas e, sem dúvida, irrealistas. No entanto, uma vez que o teste adequado de uma teoria não é o realismo das suas hipóteses mas a aceitabilidade das suas implicações, e uma vez que essas hipóteses implicam condições de equilíbrio que formam uma parte importante da doutrina financeira clássica, está longe de ser claro que esta formulação deve ser rejeitada…” (1964, p. 434).”

Claro, a doutrina financeira clássica insiste que os mercados financeiros competitivos são eficientes. Em 1970, Sharpe reconheceu que se apenas uma das muitas hipóteses irrealistas utilizadas para criar o CAPM – que os agentes poderiam contrair empréstimos sem limite com a taxa de juros sem risco – é rejeitada, “a teoria fica feita em ruínas.” Sharpe argumentou que a inclusão de “tais aspetos da realidade provavelmente será desastroso em termos da utilidade da teoria resultante” (citado em Smith 2010, p. 82-83). O método usado aqui claramente é adotar quaisquer hipóteses necessárias para gerar a conclusão de mercado eficiente desejada.

Milton Friedman não era apenas um economista; ele era também um ativista político conservador e de muita energia. A sua metodologia positivista possibilitou que economistas conservadores usassem um conjunto absurdo de hipóteses que ninguém aceitaria como uma descrição razoável do capitalismo do mundo real para difundir a aceitação da ideia de que o capitalismo não regulamentado é um sistema ideal. Hipóteses realistas levam a teorias que mostram tanto os pontos fortes, como a miríade de perigos e falhas do capitalismo não regulamentado contidos no registo histórico. Mas o positivismo possibilitou uma defesa ‘científica’ da proposição de que o capitalismo não tem perigos e fracassos. Por outras palavras, o positivismo de Friedman instala e utiliza teorias falhadas sobre o capitalismo que não podem explicar ou prever o comportamento real do capitalismo a partir de uma posição crítica efetiva.

Existem inúmeros problemas com a metodologia de Friedman, que tem pouco apoio fora da profissão de economista [6]. Mencionamos dois. Primeiro, se hipóteses muito irrealistas ou manifestamente falsas são adotadas, como muitas vezes são, e a lógica impecável que é aplicada para a partir delas deduzir outras hipóteses, estas hipóteses não podem – por uma questão de lógica – ser uma reflexão precisa da realidade. Foi uma grande conquista para o positivismo triunfar apesar de sua negação dessa proposição.

Em segundo lugar, ao insistir que a única maneira de avaliar em que medida uma teoria corresponde à realidade é através de testes econométricos de suas hipóteses derivadas, o positivismo coloca um fardo mais forte sobre o uso da econometria do que ela pode suportar. Considere apenas dois problemas. O primeiro é que na era dos computadores de alta potência, pode-se literalmente executar milhões de testes econométricos numa hipótese até que um ou mais desses testes ofereçam um resultado aceitável. Testes estatísticos de significância usados para avaliar o realismo das hipóteses derivadas têm pouco significado neste ambiente e as oportunidades para ‘mineração de dados’ são ilimitadas. Praticamente qualquer hipótese será considerada estatisticamente significativa se forem executadas regressões suficientes.

Outro problema é que todos os testes de hipóteses combinam proposições teóricas com substitutos empíricos para variáveis não observáveis. A teoria neoclássica, “per se”, não tem proposições testáveis. Ela essencialmente argumenta que, em qualquer contexto, os agentes irão otimizar. As propriedades de todas as funções gerais – funções de produção, funções de utilidade, e assim por diante – devem ser especificadas para gerar proposições testáveis. Estas propriedades não são uma parte inerente da teoria. Tomemos o caso das hipóteses em que as expectativas não observáveis são importantes. Um substituto para expectativas deve ser selecionado antes que testes econométricos apropriados possam ser realizados. O teste econométrico é, portanto, uma hipótese conjunta combinando elementos da teoria com pressupostos ad hoc sobre a formação de expectativas não especificadas ou relacionadas com a teoria. Se a hipótese conjunta é rejeitada, isso não significa que a teoria está ‘errada’ – e inversamente. Pode ser que a teoria esteja ‘certa’, mas as hipóteses “ad hoc” não o estejam – e inversamente. Na filosofia da ciência isso é referido como a tese de Duhem-Quine, que diz que é impossível testar adequadamente uma proposição teórica em isolamento de hipóteses não especificadas dentro da teoria.

Devido a estes e outros problemas, é extremamente difícil demonstrar apenas com base em testes econométricos que uma teoria é consistente com a realidade, enquanto outra não é. Isto é uma falha fatal na metodologia de Friedman porque rejeita todos os testes de validade que não sejam ‘predição’. Também ajuda a explicar porque é que teorias conflituantes podem coexistir. Portanto, é da maior importância que os economistas usem todas as informações relevantes nos testes teóricos, incluindo não apenas a econometria, mas especialmente o grau de realismo e completude do conjunto de hipóteses da teoria e a capacidade da teoria de explicar processos dinâmicos históricos – como a recente crise global – endogenamente [7].

Os positivistas afirmam que não é possível distinguir hipóteses realistas de irrealistas, mas isso não é convincente. Considere a hipótese de expectativas ‘racionais’ – a crença por agentes racionais de que eles têm verdadeiro conhecimento do futuro. Isso é claramente absurdo [8]. Nenhum economista sensato acredita que alguém possa saber com certeza a distribuição estocástica ‘verdadeira’ dos fluxos de caixa futuros. No entanto, a ‘racionalidade’ das expectativas é amplamente aceite porque o positivismo sanciona o uso de hipóteses irrealistas. Os economistas podem avaliar o realismo da hipótese estabelecida através de estudos institucionais e históricos, investigação de inquéritos, experimentações, conhecimentos de psicologia e da sociologia e verificação de factos básicos. Esta não é uma ideia nova ou original. Robert Solow afirmou que “não temos escolha a não ser levar a sério as nossas próprias observações diretas da forma como as instituições económicas funcionam…” (1988, p. 311). Tony Lawson defende que se dedique mais recursos para aprendermos sobre os comportamentos institucionais, normas, convenções – ou, mais geralmente, sistemas de regras – que são produzidos e reproduzidos por pessoas nas várias esferas de atividade; (1985, p. 925). Robert Shiller sugeriu que devemos fazer mais esforços de modelização na observação e no comportamento humano e nos modelos populares que informam esse comportamento (1992, p. 435). Keynes insistiu que “As nossas conclusões devem ser baseadas na observação real de mercados e na psicologia empresarial” (1973, p. 149).

Existe um método superior disponível para analisar a natureza dos mercados financeiros e outras questões teóricas importantes. Em vez de procurar um conjunto de hipóteses que demonstrem que os mercados financeiros são eficientes, os economistas devem construir um conjunto de pressupostos realistas sobre os mercados financeiros e perguntar: Que hipóteses sobre o comportamento dos mercados financeiros podem ser derivadas destes pressupostos? Esta teoria poderia então ser avaliada usando todos os métodos viáveis, desde estudos históricos até econometria. Este é o método associado ao trabalho de Keynes e Minsky.

Quando se trata de metodologia, Keynes é o anti-Friedman. Keynes argumentou que teorias úteis só podem ser geradas por pressupostos realistas. De facto, a sua crítica metodológica mais importante da teoria macro ortodoxa foi que ela é baseada em pressupostos irrealistas e, portanto, deve chegar a conclusões irrealistas. No capítulo final de A Teoria Geral, ele escreveu:

A nossa crítica à teoria clássica, acerca da economia, consistiu não tanto em encontrar falhas lógicas na sua análise, mas em apontar que os seus pressupostos tácitos raramente ou nunca são satisfeitos, com o resultado de que a teoria não pode resolver os problemas económicos do mundo real. (1973, p. 378, itálico adicionado)

No prefácio de A Teoria Geral, Keynes disse que o objetivo do livro é persuadir os economistas a “reexaminar criticamente certos dos seus pressupostos básicos” (1973, p. xxi). As conclusões da teoria clássica estão erradas, disse ele, porque “os postulados da teoria clássica são aplicáveis apenas a um caso especial”, e “as características do caso especial assumido pela teoria clássica não são as da sociedade económica em que vivemos” (1973, p. 3) A sua mensagem clara é que o realismo dos pressupostos importa: conclusões geradas a partir de pressupostos irrealistas não podem ser corretas.

Talvez o exemplo mais claro desta mensagem seja o seu poderoso ataque, na obra Teoria Geral e na sua defesa de 1937 desse livro no Quarterly Journal of Economics, ao pressuposto da economia dominante de que os agentes conhecem a distribuição de probabilidade correta dos estados futuros da economia. Este pressuposto é uma condição necessária para a construção de teorias de mercados perfeitos. Ele argumentou ao contrário que o futuro é incognoscível ou incerto: “não há base científica sobre a qual formar qualquer probabilidade calculável… Nós simplesmente não sabemos” (1937, p. 214) A substituição da hipótese de “risco” com a hipótese de “incerteza” revolucionou a nossa compreensão da natureza dos mercados financeiros.

 

(continua)

 


Notas

[1] Como explicado abaixo, há uma distinção em teoria entre eficiência do mercado financeiro e otimização. No discurso corrente, o termo eficiência incorpora frequentemente ambas as propriedades.

[2]. Os altos quadros da Administração Pública também apoiaram a desregulamentação porque receberam enormes contribuições de campanha vindas de Wall Street, e porque os políticos e os principais funcionários que apoiaram a agenda de Wall Street frequentemente foram altamente recompensados com empregos de lobistas ou emprego em grandes instituições financeiras.

[3]Uma versão mais suave da tese de Fukuyama pode ser encontrada em Epstein e Carrick-Hagenbarth 2010. Eles argumentam que muitos dos principais economistas financeiros tinham laços próximos e altamente remunerativos com as empresas de Wall Street, e isso pode ter favorecido o seu apoio público à desregulamentação radical dos mercados financeiros.

[4]Neste artigo, o termo positivismo refere-se especificamente à interpretação que é dada por Friedman deste conceito.

[5] A teoria reconhece que mudanças imprevistas na economia podem alterar as distribuições de fluxo de caixa. No entanto, uma vez que se presume que os agentes agem como se estes fluxos fossem positivos e que as distribuições de fluxo de caixa esperadas eram permanentes, esta é uma distinção sem relevância.

[6] Para uma avaliação crítica do positivismo, veja-se Caldwell 1994

[7]A afirmação de que pressupostos grosseiramente irrealistas não são inferiores aos pressupostos realistas na construção teórica deve ser distinguida da afirmação mais razoável de que algum grau de abstração – ou aproximação da realidade – é necessário na construção teórica. O debate metodológico, portanto, não é sobre se alguma abstração é necessária, mas sim se devemos ou não favorecer teorias cujos pressupostos não estão excessiva e desnecessariamente em desacordo com a realidade que desejamos teorizar

[8]Este pressuposto envolve uma contradição lógica. Se os agentes presumissem que conheciam o futuro, não poderiam ser agentes racionais porque não há fundamento lógico para essa crença. Ver Crotty 1994 para uma defesa desta afirmação.

 


O autor: James Crotty [1940-2023] foi um economista estado-unidense pós-keynesiano, cuja pesquisa em teoria e política tenta integrar as forças analíticas complementares das tradições marxista e keynesiana. Ele fez contribuições para a teoria da estrutura social da acumulação (SSA); as implicações da incerteza radical para a teoria macro e as teorias dos mercados financeiros. Licenciado pela Universidade de Fordham e doutorado pela Universidade Carnegie Mellon. (para mais info ver wikipedia aqui)

 

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