DIA DO BRASIL – Por Enquanto – Clarice Lispector

 

Como ele não tinha nada o que fazer, foi fazer pipi. E depois fi­cou a zero mesmo.

 

Viver tem dessas coisas: de vez em quando se fica a zero. E tu­do isso é por enquanto. Enquanto se vive.

 

Hoje me telefonou uma moça chorando, dizendo que seu pai morrera. É assim: sem mais nem menos.

 

Um dos meus filhos está fora do Brasil, o outro veio almoçar co­migo. A carne estava tão dura que mal se podia mastigar. Mas be­bemos um vinho rosé gelado. E conversámos. Eu tinha pedido pa­ra ele não sucumbir à imposição do comércio que explora o dia das mães. Ele fez o que pedi: não me deu nada. Ou melhor me deu tu­do: a sua presença.

 

Trabalhei o dia inteiro, são dez para as seis. O telefone não toca. Estou sozinha. Sozinha no mundo e no espaço. E quando telefono, o telefone chama e ninguém atende. Ou dizem: está dormindo.

 

A questão é saber aguentar. Pois a coisa é assim mesmo. Às ve­zes não se tem nada a fazer e então se faz pipi.

 

Mas se Deus nos fez assim, que assim sejamos. De mãos aba­nando. Sem assunto.

 

Sexta-feira de noite fui a uma festa, eu nem sabia que era o ani­versário do meu amigo, sua mulher não me dissera. Tinha muita gente. Notei que muitas pessoas se sentiam pouco à vontade.

 

Que faço? telefono a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocu­pado, eu sei, uma vez já liguei distraída para o meu próprio número. Como acordo quem está dormindo? como chamo quem eu que­ro chamar? o que fazer? Nada: porque é domingo e até Deus des­cansou. Mas eu trabalhei sozinha o dia inteiro.

 

Mas agora quem estava dormindo já acordou e vem me ver às oito horas. São seis e cinco.

 

Estamos no chamado «veranico de maio»; grande calor. Meus dedos doem de tanto eu bater à máquina. Com a ponta dos de­dos não se brinca. É pela ponta dos dedos que se recebem os fluidos.

 

— Eu devia ter me oferecido para ir ao enterro do pai da moça? A morte seria hoje demais para mim. Já sei o que vou fazer: vou comer. Depois eu volto. Fui à cozinha, a cozinheira por acaso não está de folga e vai esquentar comida para mim. Minha cozinheira é enorme de gorda: pesa noventa quilos. Noventa quilos de insegu­rança, noventa quilos de medo. Tenho vontade de beijar seu rosto preto e liso mas ela não entenderia. Voltei à máquina enquanto ela esquentava a comida. Descobri que estou morrendo de fome. Mal posso esperar que ela me chame.

 

Ah, já sei o que vou fazer: vou mudar de roupa. Depois eu co­mo, e depois volto à máquina. Até já.

 

Já comi. Estava óptimo. Tomei um pouco de rosé. Agora vou to­mar um café. E refrigerar a sala: no Brasil ar refrigerado não é um luxo, é uma necessidade. Sobretudo para pessoa que, como eu, so­fre demais com o calor. São seis e meia. Liguei meu rádio de pi­lha. Para a Ministério da Educação. Mas que música triste! não é preciso ser triste para ser bem-educado. Vou convidar Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso e que cada um traga a sua vio­la. Quero alegria, a melancolia me mata aos poucos.

 

Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coi­sas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas «por enquanto». São vinte para as sete. E para que é que são vinte para as sete?

 

Nesse intervalo dei um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de «para o meu gáudio». É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha es­tante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.

 

Estou com saudade. Saudade de meus filhos, sim, carne de minha carne. Carne fraca e eu não li todos os livros. La chair est triste.

 

Mas a gente fuma e melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha.

 

Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes.

 

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