Aurora Adormecida 20 – Eva Cruz

 

Eva Cruz  Aurora Adormecida

 

 

Capítulo 20

 

 

(continuação)

 

O marido de Aurora continuou, porém, a viver e a trabalhar na casa dos pais. Aurora e o menino almoçavam ritualmente com o marido, ao do­mingo, em casa dos sogros. Logo de manhã, o criado, o Cabalai, pegava no menino, punha-o às cavalitas e com todo o carinho e cuidado saltita­va, calçada abaixo, anunciando o meli, o meli, até casa dos avós.

 

Era ali tradição o arroz de vitela, aos domingos, com muitos padre-nossos (nacos de carne). Entre as sobremesas, a sopa-seca era a mais apreciada.

 

A avó aliciava e presenteava o neto com cerejas ou rebuçados, dependura­dos nos brincos de pingente.

 

Na despensa, o cheiro a goiabada, enviada de África pelo filho padre, perfumou a infância do neto para a vida inteira.

 

Era uma velhinha muito doce, de olhos cor de água. O avó era magro, escorreito, pequeno, de saúde de ferro e olhos muito vivos.

 

O filho entendia-se muito bem com a mãe. Ela protegia-o e pedia-lhe que nunca a deixasse só naquela casa. Morreu não muito velha. O filho não se conformou com a morte da mãe e entrou em depressão profunda. O velhote não parecia ter sentido assim tanto a morte da mulher. Assobiava pelos cantos, o que desesperava o filho. Pouco tempo depois de ela morrer, começou a fazer o rapapé à criada, ainda nova, que vivia com eles. A mor­te nem sempre é vencedora. Do lado de cá a vida chama a vida. Se a relação entre pai e filho não era boa, piorou dali para a frente.

 

* Um dia, tendo o filho presenciado o toledo do pai pela criada, arremessou pela janela fora o colchão da rapariga, exigindo que se fosse embora daquela casa.

 

Moveu-lhe então o pai uma acção de despejo e ele foi obrigado a sair da casa paterna.

 

O velho morreu de velho, com noventa e quatro anos, e o filho, ao avistar ao longe o funeral, chorava e praguejava ao mesmo tempo, num misto de dor e de revolta onde se confundiam verdadeiros sentimentos de amor e ódio.

 

A partir daí, Aurora passou a viver com o marido na Casa do Engenho. Pela primeira vez sentiu o seu estado de mulher casada.

 

Foi composta a casa. Era uma casa em pedra, não tão grande como a dos sogros, com uma escada e uma enorme cerejeira de cerejas negras, junto ao patamar de cima. No cabecinho havia outra que dava cerejas bicais. Em frente estava o engenho do linho e um grande tanque de pedra para onde corria água de merujo. Pela frente da casa passava o caminho que dividia a quinta em duas partes. Fizeram diligências para mudar o cami­nho para trás da casa e demoliram uma parte desta, aumentando-a para o lado. O terreno já tinha sido dividido entre as tias de Aurora.

 

A Quinta do Engenho tomava agora uma configuração diferente, dividindo-se entre quintal de cima e quintal de baixo. O engenho desapareceu. No seu lugar foi aberto um poço que jorrava água noite e dia sem estancar. Em vez de linho, passou a cultivar-se milho, outros cereais, vinho e culturas de subsistência.

 

Muitas figueiras cresciam naquele lugar. Havia uma enorme na ponta do quintal de baixo, uma verdadeira catedral. De tão alta que era não se chegava aos deliciosos figos de pingo de mel. Todas as manhãs, bem cedo, eles eram o pequeno almoço da passarada. Pegas e gaios, em gritos e berros estridentes, disputavam os figos maduros.

 

* Sempre ali houve pelo menos uma figueira a dar bons figos.

 

Resta uma destas figueiras, muito velha, com a raiz meio descoberta por um vendaval. A ramada e as árvores à volta deram-lhe solidariamente a mão e a raiz foi-se agarrando ao chão, de novo.

 

Com os tempos, o nome de Quinta do Engenho foi-se apagando da me­mória daquelas gentes, nascendo outro para aquele lugar e para aquela casa sem engenho, mas onde os figos ainda são de mel.

 

(continua)

 

 

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