A economia social e o modelo económico europeu – 2: o caso do mercado de trabalho. Por Margarida Antunes.

(Continuação)

 

Em relação aos sindicatos, considera-se que quanto maior for o seu poder negocial, maior é o nível salarial atingido, mas menor o nível de emprego alcançado. Também neste campo, a evolução da legislação laboral e outros processos característicos do modelo da economia global têm provocado uma diminuição do peso dos sindicatos. É o caso da individualização crescente dos contratos de trabalho, o aumento crescente de contratos não permanentes e a tempo parcial e o processo de privatizações do sector público. Existem igualmente outros factores, como a crescente terciarização da economia, o processo de deslocalizações produtivas e incontornavelmente os elevados níveis de desemprego, principalmente na Europa, que limitaram também a capacidade negocial dos sindicatos. Assim, encontra-se um outro modo de desvalorização do trabalho com consequências na desvalorização relativa dos salários[1].


A criação de um quadro legislativo específico ou de desregulação alargada que permitiu a liberalização e a financeirização da economia à escala mundial é o outro elemento a incluir nesta segunda categoria. O processo de construção da economia global ou de globalização económica não pode ser assumido como um processo apolítico, que decorre do “normal funcionamento dos mercados”, tal como foi referido acima. Ele resulta essencialmente de decisões e acções políticas dos governos nacionais e das instituições internacionais e europeias bem pensadas e articuladas, permitindo esta visão uma leitura diferente dos seus efeitos sobre a repartição de rendimento. Assim, a possibilidade de o capital se movimentar à escala mundial criou processos de glocalização por parte das multinacionais que consistem em combinar as diversas vantagens comparativas dos diferentes países e territórios com a competitividade global da empresa perante o mercado mundial. Com isto, o investimento directo estrangeiro, as deslocalizações produtivas e a criação de zonas económicas especiais intensificaram-se, o que acelerou mecanismos de pressão salarial quer através da concorrência entre trabalhadores de diferentes países na produção do mesmo bem e, por vezes, na mesma multinacional[2] quer também pela concorrência entre territórios como forma de inserção na divisão internacional dos processos produtivos. Esta pressão salarial é tanto mais relevante quando se sabe que com a participação das economias da ex-União Soviética, Índia e China neste processo de globalização económica duplicou o volume de mão-de-obra à escala mundial, surgindo o caso chinês com mais acuidade apenas depois de a China se ter tornado membro da Organização Mundial de Comércio em finais de 2001 (Freeman, 2010).


Com a financeirização da economia, assistiu-se a uma difusão da abordagem e lógica financeira na actividade produtiva com prejuízo para esta última; a empresa, essencialmente a cotada em bolsa, dentro desta lógica passou a ser considerada um activo financeiro e o valor relevante a ela associada deixou de ser o valor produtivo para ser o valor bolsista, determinado então nos mercados financeiros e sem correspondência, maior parte das vezes, com os fundamentais da chamada economia real. Isto foi acompanhado pelo aumento do poder dos accionistas no seio das empresas e de tal forma que o objectivo passou a ser a maximização de rendimento e no curto prazo, ou seja, a maximização dos dividendos e a maximização do valor bolsista. A questão é tanto mais importante quando fundos de investimentos compram e vendem empresas apenas numa perspectiva financeira e enquanto as detêm eles próprios têm o poder de renomear novas administrações, vinculando-as apenas aos seus objectivos de rentabilidade imediata. A maximização dos dividendos tem sido feita em detrimento do rendimento dos trabalhadores; por exemplo, na Alemanha, em França e nos Estados Unidos, verificou-se um aumento do peso dos dividendos distribuídos aos accionistas no valor acrescentado das empresas, em detrimento do peso dos salários. Por seu turno, a maximização do valor bolsista tem sido conseguida em desvantagem para a massa salarial e para o volume de emprego efectivo e potencial. Como refere Quatrepoint (2008, p. 80), “os mercados exigem às empresas que considerem o trabalho como um input na produção e não como uma fonte de valor acrescentado”. O trabalho é assim considerado uma variável de ajustamento e alvo da transferência por parte dos accionistas de riscos da actividade produtiva. Houve assim uma reconfiguração da repartição do rendimento no interior das empresas sem que tenham existido necessariamente alterações nas suas condições de produção.

 

2.1. A Estratégia Europeia para o Emprego

 

No caso da União Europeia, é necessário falar igualmente da Estratégia Europeia para o Emprego (EEE), que como se verá tem contribuído para reforçar alguns mecanismos que contribuíram para a desvalorização relativa do salário. Esta estratégia foi lançada em 1997 e o seu objectivo estava bem explícito no Tratado que Institui a Comunidade Europeia, artigo 125.º (hoje, artigo 145.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia): “Os Estados-membros e a Comunidade empenhar-se-ão… em desenvolver uma estratégia coordenada em matéria de emprego e, em especial, em promover uma mão-de-obra qualificada, formada e susceptível de adaptação, bem como mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças económicas”.

 

 

A EEE traduz-se na definição de orientações comuns no que respeita aos objectivos e meios (as linhas directrizes) das políticas de emprego dos diferentes Estados-membros e num processo de acompanhamento da União que visa controlar regularmente a aplicação das directrizes nos países respectivos. As linhas directrizes recomendadas aos Estados-membros contêm orientações que apelam a políticas do tipo “making work pay” (as orientações 5, 17, 18 e 19) que partem da ideia que os estímulos para um trabalho pago não são suficientes, pois o nível dos rendimentos de substituição (subsídios de desemprego, subsídios social de desemprego e rendimentos mínimos) leva os indivíduos a rejeitar o regresso ao emprego quando têm essa possibilidade, devido a expectativas insuficientes quanto ao seu novo rendimento líquido (Comissão Europeia, 2005, e Conselho da União Europeia, 2008a e 2008b). Assim, o objectivo destas políticas consiste precisamente em acentuar a diferença entre o salário líquido e os rendimentos de substituição através da imposição de condições mais restritivas no acesso e no funcionamento dos subsídios de desemprego e dos rendimentos mínimos ou em alguns países também pela criação de esquemas de créditos de imposto ou impostos negativos (França e Inglaterra). Ambas as medidas levam à ocupação de postos de trabalho aos quais estão associados níveis salariais baixos que correspondem, em regra, a trabalho pouco qualificado. Há assim, por esta via, uma precarização salarial e da qualidade dos postos de trabalho. Existem igualmente orientações (as 5 e 21) que recomendam políticas que aumentem a “flexibilidade” dos mercados de trabalho nacionais. Neste sentido, propõe-se aos Estados-membros a “adaptação da legislação laboral, revendo, sempre que necessário, as diferentes cláusulas contratuais e as relativas ao horário de trabalho”. Sugerem também implicitamente o aumento da oferta da mão-de-obra que contribui para a moderação salarial, via redução da pressão à alta dos salários (a orientação 5). Em 2005, pela primeira vez no âmbito da EEE, recomendam-se medidas respeitantes aos salários (as orientações 4 e 22), sugerindo-se custos do factor trabalho favoráveis ao emprego, ou seja, evoluções nos salariais reais em linha com o crescimento da produtividade no médio prazo e consistentes com uma taxa de lucro que permita investimentos que melhorem a produtividade, a capacidade produtiva e a criação de emprego (Comissão Europeia, 2005, e Conselho da União Europeia, 2008a e 2008b).


As políticas de emprego delineadas no contexto desta estratégia parecem assim criar condições para a criação ou a manutenção de postos de trabalho pouco qualificados, para o aumento dos contratos de duração determinada e para a contenção ou mesmo redução de salários, através do aumento da oferta de mão-de-obra ou por pressões directas sobre o nível salarial.


No que toca ao quadro teórico de referência, as políticas de emprego foram (e são) delineadas tendo por base a concepção neoclássica do mercado de trabalho, à luz da qual este mercado deve funcionar de acordo com os mecanismos económicos automáticos subjacentes a um mercado de concorrência perfeita e o trabalho deve ter então um estatuto similar ao de uma qualquer outra mercadoria. De acordo com isto, a haver desemprego ele é considerado voluntário, porque não se aceita trabalhar em determinadas condições salariais e, sendo assim, é assumido como sendo de responsabilidade individual. Com esta concepção de mercado de trabalho e no quadro actual da concepção microeconómica do desemprego falada anteriormente, cabe às políticas de emprego diminuir ou eliminar as “imperfeições” do mercado de trabalho e, se isto não for possível, colmatar ou atenuar os efeitos destas mesmas “imperfeições”, de modo a aproximar o mercado de trabalho tanto quanto for possível de um mercado de concorrência perfeita. Estas “imperfeições” tanto decorrem de variáveis exógenas a este tipo de mercado de trabalho e são resultantes de intervenções neste mesmo mercado, como é o caso do Estado através de regimes de subsídio de desemprego, de procedimentos respeitantes à protecção no emprego e de estabelecimento de salários mínimos, como têm origem em “imperfeições” endógenas ao próprio mercado e cujas causas residem essencialmente na circulação imperfeita de informação entre trabalhadores e empresários ou na dualidade do mercado de trabalho entre insiders e outsiders. As “imperfeições” que existem não são assim “imperfeições” do mercado, mas antes “imperfeições” sobre o mercado[3].

 

(Continua)


[1] Para uma análise teórica sobre as variáveis institucionais, ver Margarida Antunes (2005).

[2] Recentemente, a General Motors Company comprou à General Motors Corporation as suas fábricas de Estrasburgo. De seguida, informou os trabalhadores que só reiniciaria a produção se estes aceitassem uma redução do salário nominal de 10% para assim atingir o mesmo nível de competitividade de fábricas do mesmo grupo produtoras das mesmas peças instaladas no México.

[3] Para desenvolvimentos sobre o modelo de mercado de trabalho de concepção neoclássica, ver Margarida Antunes (2005).

 

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