Produtos derivados e derivas das dívidas soberanas. O debate sobre as dívidas soberanas dos países mais desenvolvidos torna-se cada dia mais grave – II. Por François Morin. Selecção e tradução por Júlio Marques Mota.

(Continuação)

A crise financeira


Prolonguemos o raciocínio precedente e tentemos medir em primeiro lugar o desfasamento entre a esfera dos produtos derivados e a esfera da economia real no momento em que, em 2007, se desencadeia a crise financeira. Adoptaremos uma unidade de medida única, o milhão de milhões de dólares (ou o tetra-dólar), referido como “ T$ ”, ou seja ainda o milhar de milhar de milhões de dólares. Reter-se-á dois quadros de análise complementares que medem cada um deles uma realidade bem distinta. O primeiro refere-se a uma abordagem em termos de fluxos anuais (ou de transacções), bem adaptada à análise dos mercados de produtos derivados organizados. A outra análise feita em termos de carteira de activos existente, (ou de montantes) é, quanto a ela, bem perfilada para analisar, a uma certa data, os produtos derivados acordados de forma descentralizada, fora da bolsa, feitos por medida, e, por conseguinte, podendo dificilmente ser objecto de transacções organizadas.


Referindo-se aos inquéritos trienais do BPI (Banco de Pagamentos Internacionais) e aos dados de CLS Bank, um banco regulado pelo Federal Reserve, pôde-se  considerar que as transacções totais sobre o mercado cambial ascenderam em 2007 a cerca de 940 T$, enquanto que o comércio mundial dos bens e serviços sobre o mesmo período atingia apenas cerca de 32,6 T$ (fonte OMC), ou seja 3,5% apenas das transacções totais. Aqui está uma ilustração impressionante do enorme desfasamento entre as transacções reais e as transacções de cobertura e/ou de especulação. De resto, os especialistas deste mercado não se enganam dado que alguém como Chantana Sam, estratega em produtos derivados na AXA estima que no mercado cambial “80% a 90% das transacções são especulativas[1] ». A esse respeito, conhece-se a aversão das autoridades alemãs no que diz respeito aos derivados de divisas. Em Maio-Junho de 2010, Berlim procurou proibir os derivados sobre o euro que não serviam explicitamente para a cobertura cambial. Esta iniciativa ficou sem qualquer consequência à escala europeia. Os seus detractores estavam em boa posição para afirmar que provar que um derivado serve para cobertura de câmbio pode revelar-se um pesadelo. Fazer a triagem pode com efeito tornar-se impossível e não é por conseguinte uma solução viável para combater a especulação. Porquê, então, não voltar ao sistema de taxas de câmbio fixas, o que, com uma só medida, estabilizava as taxas de câmbio e eliminaria as operações especulativas? Voltaremos a esta questão, mais tarde.


Trata-se apenas de uma análise parcial feita em termos de fluxos. Pode-se ir  muito mais longe, tomando o conjunto das transacções sobre produtos derivados nos mercados organizados (com exclusão do mercado cambial). O BPI indica, para o ano de 2007, um volume de transacções que atinge o total faraónico de 2.208 T$[2] ! Se tomarmos agora em consideração outro fluxo, sobre o mesmo período, o da produção de bens e de serviços à escala mundial, quer dizer, 54,3 T$, a diferença torna-se tão espantosa entre o subjacente real criado nesse ano, seja o PIB mundial, e entre o volume dos produtos derivados. É com efeito de 1 para 58! Tem-se aqui um elemento essencial para compreender o contexto no qual a última crise financeira se desencadeou. Quando aparece um choque sobre uma parte de um subjacente, no caso sobre os créditos imobiliários subprime nos Estados Unidos, os produtos derivados ligados aos títulos representativos destes créditos são então fechados, executados, liquidados, por uma operação inversa, provocando por contágio no sistema bancário a crise sistémica  que se conhece.


Examinemos agora a outra via de análise, a das carteiras de títulos (ou dos montantes existentes ) em  produtos derivados que são negociados fora da bolsa e cujas trocas ulteriores são, por este facto, nulas ou muito raras. Em Junho de 2007, exactamente na véspera da crise financeira, o montante dos valores nestes produtos atingia, ainda de acordo com o BPI, o valor de 516,4 T$. Um número, este também, completamente espantoso e cuja evolução foi extremamente rápida: dez anos antes, o mesmo número ascendia a 28,7 T$ e, em 1990, apenas a 3,4 T$, ou seja, trata-se de  uma progressão anual média de 36% desde 1990! Na véspera da crise, cerca de dois terços destes produtos estavam ligados à cobertura das variações das taxas de juro. Mede-se por aqui os efeitos devastadores da liberalização das taxas de juro ocorrida na maior parte dos países desenvolvidos durante os anos 80. Uma vez decidido que o nível das taxas de juro é fixado pelas leis do mercado, nomeadamente através dos mercados obrigacionistas, foi necessário criar imediatamente produtos financeiros derivados para assim se cobrirem dos riscos que podiam daí decorrer. Ora, o valor das obrigações emitidas sobre estes mercados estabelecia-se, em 2007, apenas em 39 T$[3]. Aqui também, a desconexão aparece como sendo total entre o valor subjacente obrigacionista, de um lado, e o valor nocional, o valor  coberto pelos produtos derivados, pelo outro, dado que o desvio entre os dois valores se estabelece de 1 para 9!


Uma outra categoria de produtos derivados que são negociados fora da bolsa, desempenhou um papel essencial na propagação da crise financeira, e esta categoria de produtos é os CDS. Segundo os cálculos do BPI o montante dos valores dos contratos em aberto, ainda por liquidar, por encerrar, foi avaliado, na véspera da crise financeira, em Junho de 2007, em 42,6 T$. Lehman Brothers, Fannie Mae, Freddie Mac são outras tantas sociedades cuja situação de falência provocou a liquidação dos derivados de crédito que tinham o seu nome como entidade contra a qual os agentes se estavam a cobrir, a cobrir contra uma própria seguradora.  Todos os bancos que tinham vendido produtos de cobertura contra o risco de incumprimento destes actores tiveram que passar uma esponja sobre as perdas dos compradores de protecção e sofrerem assim, brutalmente, os efeitos financeiros da liquidação, do fechar das posições sobre estes produtos derivados. Neste efeito em cadeia, a origem das entradas em situação de incumprimento foram, sabe-se hoje bem, as operações de titularização dos créditos subprime americanos. Transformaram-se em títulos financeiros – negociáveis, portanto, nos mercados financeiros – eram créditos em que uma parte se tornava tóxica na sequência de um choque na economia real. Neste caso, tratou-se de uma mudança total no comportamento do mercado imobiliário e do aumento das taxas de juro, no final de 2006, nos Estados Unidos. Não nos devemos espantar pelo facto de que os títulos obrigacionistas representativos dos créditos ( CDO’s, ou Collateralized Debt Obligation) perderam o seu valor, atingindo fortemente numerosas carteiras de investidores financeiros, o que conduziu a que  fechassem a posição sobre os CDS comprados, para o caso da situação de incumprimento do emitente destes títulos tóxicos, exigindo o valor dos activos segurados. A falência espectacular do grupo AIG nos Estados Unidos foi o exemplo típico da impossibilidade de satisfazer todos os pedidos de encerramento de posição, de liquidação, dos CDS que lhes foram dirigidos em 2008, devido ao facto de se tratar de volume demasiado grande destes produtos que anteriormente a AIG tinha ela pópria vendido.


O sobre-endividamento dos Estados


O efeito mais notável da crise é a  verdadeira proeza, por parte dos maiores bancos, de terem conseguido transformar a sua dívida privada, tóxica, ligada à crise dos créditos subprimes, em dívida pública, reduzindo assim a nada as margens de manobra de muitos dos governos. É certo, os governos tiveram que enfrentar e de modo urgente os efeitos devastadores de uma crise económica e financeira de uma gravidade excepcional. Foi necessário assim recapitalizar os bancos e ao mesmo tempo injectar recursos consideráveis para financiar os planos de reactivação económica. Mas a consequência mais desastrosa para os Estados, foi evidentemente o montante considerável do serviço da dívida, um verdadeiro tributo anual que é necessário pagar à esfera financeira e… aos grandes bancos em especial! Daí, também, os planos de rigor orçamental que foram desencadeados por todo o mundo. O montante actual da dívida pública mundial e, mais ainda, a rapidez excepcional do seu crescimento recente só podem suscitar apreensão e temor face ao futuro. A contrapartida desta fuga para a frente das finanças públicas está agora bem à nossa frente: a verdadeira saída da crise revela-se já explosiva no plano social e política devido ao rigor orçamental que se impõe actualmente a um número importante de países.


No final de 2010, a dívida pública mundial era avaliada em 41 T$ de acordo com o contador web da revista The Economist (e provavelmente em 46 T$ em 2011). Estes montantes são impressionantes, e a sua evolução foi extremamente rápida. De acordo com a OCDE, os trinta países mais desenvolvidos do globo viram a sua dívida subir para cerca de 100%, ou mais, do seu PIB em 2010, ou seja, uma duplicação em vinte anos[4] .Mas, sobretudo, a agência Moody’s corroborando ao mesmo tempo estes dado, insiste na aceleração muito rápida desta evolução, dado que a dívida pública mundial subiu cerca de 45% entre 2007 e 2010, ou seja, um aumento de 15,3 T$ ao longo de um período extremamente curto! Deve-se então concluir que o sobre-endividamento actual dos Estados se deve principalmente aos efeitos directos da crise financeira. Certamente, os Estados  já estavam endividados antes da crise, mas a derrapagem das finanças públicas é tão impressionante que não nos é permitida nenhuma dúvida sobre a sua origem.


A bolha das dívidas públicas, nomeadamente na Europa e nos Estados Unidos, é assim explosiva devido às despesas exponencialmente crescentes que a bolha faz pesar sobre as finanças públicas de muitos Estados. Mas as soluções, retomadas da experiência histórica para as reabsorver, aparecem hoje inadaptadas ou sendo como outros tantos impasses.


Viu-se que a ideia de uma reestruturação de certas dívidas, nomeadamente da dívida grega é, na sua origem, o resultado de um braço de ferro que dura até agora e desde há mais de um ano. Os adversários da reestruturação avançam com o risco de contágio e de crise sistémica que ocorreria, nomeadamente, devido à liquidação, ao encerramento das posições, dos CDS; os partidários da reestruturação sublinham, avançam, quanto a eles, com o carácter insustentável desta dívida, simultaneamente no plano social e no plano financeiro. É necessário acrescentar o papel especulativo dos mercados financeiros, agitados pelas agências de notação que degradam periodicamente as dívidas dos países ditos periféricos da zona euro. Estas agências ameaçam, na confusão criada, baixar a notação dos maiores dos grandes bancos europeus em razão da sua exposição aos riscos de incumprimento do Estado grego e dos bancos deste país. A especulação toma assim posições à baixa sobre os títulos obrigacionistas gregos (vendas a descoberto) e com posições à alta sobre os spreads dos CDS.


O braço de ferro entre partidários e adversários da reestruturação conduz evidentemente ao impasse: cada uma das vias propostas é catastrófica, porque fonte de caos económico e social  e, provavelmente,  até mesmo de caos  político. Alguns podem mesmo acreditar noutras soluções como, por exemplo, um regresso da inflação. Sabe-se que a inflação é um meio eficaz para aliviar os países endividados, mas esta via está resolutamente fechada desde que a esfera financeira foi liberalizada e que os bancos centrais ficaram independentes. A sua missão não é ela fundamentalmente a de preservar o valor interno da sua moeda? Para que esta via se possa abrir, seria necessário passar por cima de  quarenta anos de práticas e de pensamento neoliberais que impuseram esta liberalização… Uma outra via: um regresso a um elevado crescimento: esta via permitiria com efeito reduzir os défices e o recurso ao empréstimo. Ora uma retoma económica duradoura e autónoma nos países industrializados não continua a estar na ordem de trabalhos. De acordo com as últimas previsões do FMI[5], a taxa de crescimento dos países desenvolvidos para o ano 2012 foi revista à baixa e seria de 2,0% (2,7% para os Estados Unidos, 1,7% para a zona euro). Estas perspectivas confirmam a ideia de que um crescimento frouxo nestes países é assim incapaz, tão frouxo que é, por esta via impossível, de rectificar as suas finanças públicas.


(Continua)


[1] Veja-se a este respeito  o artigo de Tan La Quang em Agefi de 27 de Maio de 2010.

[2] Reporta-se ao quadro 23A publicado em  bis Quarterly Review, de Março de 2008.

[3] Segundo os dados de World Federation Exchanges (wfe

[4] Considera-se habitualmente que um limite de endividamento de 90 % du pib é um valor crítico para um país, porque para além deste valor limite, torna-se muito difícil controlar a carga da dívida, excepto se houver  um retorno ao crescimento.

[5] Perspectives de l’économie mondiale, de 17 de Junho de 2011

 

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