O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade – 39 – por Raúl Iturra

 

(Continuação)

 

Em jeito de conclusão. Parece-me, na minha fantasia, não a definida por Freud, mas a definida e invocada ao longo deste texto, essa que às vezes me faz pensar, outras temer, outras ainda ter pesadelos, essa minha fantasia usada na infância quando pensava que os filhos do último Czar da Rússia não tinham perdido uma filha (assassinada) mas sim um filho (que a família Romanoff não queria reconhecer) oculto, bem-criado, tratado com doçura, amor e todo o carinho do mundo, esse filho, mais não era do que o meu pai.

 

Fantasia própria, que sempre povoou a minha mente e permitiu-me sonhar acordado, outorgando galardões aos meus seres mais queridos. Seres queridos, como o meu Senhor Pai, esse Engenheiro e Terratenente, o “el papá”, como era referido por nós, os seus descendentes, ou a nossa Senhora Mãe, Licenciada em Matemática e Línguas. Os dois, da mesma Universidade, essa Pontifícia Católica de Valparaíso, onde se conheceram, namoraram, mais tarde casaram e tiveram muitos filhos e, para acabar este parágrafo, é natural dizer que viveram felizes até ao fim das suas vidas. Final romântico, agradável e convencional.

 

É evidente que a paixão dessa juventude os levara a ser pais de imensos filhos, que foram estragando a felicidade da frase ritual do casamento: para sempre até ao fim dos seus dias. Colégios caros, a serem pagos todos os meses para que os filhos os pudessem frequentar, fim de mês sempre temido, quando as contas começavam a aparecer. As roupas que deviam ser de marca. Os descendentes eram filhos à Romanoff, dentro de um pequeno imenso estado, no qual, pela fantasia do “gallallla”, cabiam todas as Rússias. Mandava-se a torto e a direito, colaborava-se a direito e torto e montava-se a cavalo ao som do prazer numa praia imensa e privada. Uma fantasia de vida. Fantasia que devo ter vivido ao longo de toda a minha vida. Fantasia que, nesses tempos, me mantinha fechado na Quinta da Baía de Laguna Verde, a nossa pequena monarquia de luz, de sol, de um Pacífico verde-esmeralda, a brincar com irmãos e primos. Irmãos bem mais novos do que eu, primos de marca (não somente a roupa), filhos dos familiares consanguíneos dos nossos Senhores pais.

 

Nem era preciso trazer amigos para casa: éramos tantos! Casa grande, sim, mas nem sempre capaz de receber tanta gente por longos períodos de tempo. Cada um de nós tinha os seus amigos, que adoravam visitar aquele jardim do Éden, comer repostarias bem preparadas pela multidão de servos da gleba que havia dentro da casa dos Senhores Pais. Às vezes, na casa de jantar, eu comia só, enquanto na copa e na cozinha havia mais pessoas do que no resto da casa. A fantasia ia crescendo: leituras de mitos, de Dickens, Jules Verne, Pablo Neruda, Gabriela Mistral, Stephan Zweig, Pearl Buck, John Cronin entre outros e canto com Mozart, Vivaldi, Beethoven e especialmente Bach e os seus concertos de Branderburg, outros na imensidão das dívidas do Senhor Pai e da sua música, mas, também a fantasia da concertista de guitarra clássica, a nossa Senhora Mãe, com o seu Albeniz e Granados. Nós, os mais novos da casa, nem respeitávamos essa música que, por vezes, era acompanhada de música da casa Real de Espanha ou das impostas, anos mais tarde, pelo ditador (esse que matou a Segunda República de um dos Estados Ibéricos e foi rei até ao dia da sua morte, após cinquenta anos de tirania, essas matanças, também, a torto e a direito).

 

Eram senhores os meus pais? Mais do que isso, sabiam mandar com simpatia e doçura acolhendo em casa os mais desamparados, sabiam ensinar o que era trabalhar e, ainda, sabiam ensinar como fazer comidas que alimentassem. Ao mesmo tempo, divertíamo-nos com as peças de teatro que nós próprios encenávamos às quais toda a povoação assistia. Não pelo Senhor Pai ser quem mandava, empregava ou despedia pessoal da sua fábrica, mas porque não havia alternativas a este entretenimento, excepto as Missões de Padres organizadas pela Senhora Mãe, ou as sessões cinematográficas que o Senhor Pai promovia. Esse manda chuva que, na minha fantasia, ao longo do meu crescimento, de Romanoff, passou a ser, não na fantasia mas sim, na materialidade da vida, um senhor com quem foi preciso lutar para defender postos de trabalho, manter e respeitar os horários de técnicos e operários, que precisavam de descansar.

 

(Continua)

 

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