Professora Elza Paxeco – Um episódio curioso

Não tive o prazer de conhecer pessoalmente a Professora Elza Paxeco, embora tenha sido grande amigo de José Pedro Machado, seu marido, e ainda antes de ter conhecido o grande filólogo e arabista, ter sido companheiro de lides políticas de seu filho João – o nosso João Machado.

Sabendo-me em contacto diário com o Professor Luís de Albuquerque, presidente da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses mandou-me um recado: viera a lume a notícia de que Placido Domingo viria a Lisboa, ao São Carlos, desempenhar o papel de Vasco da Gama na ópera L’Africaine, do compositor prussiano Meyerbeer. Perguntava a professora se eu conhecia a ópera ou se alguém da Comissão a conhecia. Vasco da Gama era ridicularizado, bem como Portugal e os portugueses. Eu nunca vira a ópera e Luís de Albuquerque a quem expus a questão, também não. Descobrimos o que era possível.  Soubemos que a ópera nunca fora apresentada em Portugal e que só fora estreada em Paris em 1865, após a morte de Meyerbeer. Não sendo uma das óperas mais famosas, tem uma ária muito divulgada e cantada pelos grandes tenores – além de Placido Domingo, Pavarotti, Carreras, Kraus…  

Lendo o libreto do francês Scribe percebemos o que a professora dissera – L’Africaine nada tinha a ver com a verdade histórica. O libretista francês ignorara a História e construira uma vulgar intriga amorosa: uma rainha africana, e uma filha de um grande almirante, apaixonadas por Vasco da Gama, enquanto um homem da corte africana se apaixonava pela filha do almirante. Uma história banal de amores desencontrados. Os africanos, suicidam-se e Vasco da Gama fica com a filha do grande almirante.

Uma conclusão possível, cotejando datas, foi a de que a ópera tenha sido encomendada a Meyerbeer por uma questão política. Em 1857 ocorreu um grave incidente diplomático entre Portugal e França. Um navio negreiro francês, a barca Charles & George, que fazia tráfico de escravos entre Moçambique e a Ilha de Reunião foi interceptada por um navio de guerra português, em águas territoriais portuguesas. O barco foi apresado e o capitão foi aprisionado e enviado para Lisboa. Era óbvio para toda a Europa que Portugal tinha razão, mas em França não se viu o problema pelo prisma legal – a questão era: o pequeno Portugal não tinha o direito de ter razão perante a França. A Inglaterra, foi da mesma opinião e o governo português teve de libertar o navio e o capitão, e indemnizar a França. A encomenda da ópera poderá ter sido um meio de nos humilhar.

Por esta ou por outra razão, a ópera nada tem a ver com a História de Portugal e não fazia sentido pagar uma fortuna para trazer a Lisboa uma ópera em que a epopeia dos Descobrimentos é ignorada e tudo se resume a uma vulgar intriga amorosa. Seria uma estranha maneira de comemorar os Descobrimentos…

Talvez o aviso da Doutora Elza Paxeco tenha contribuído para que em Portugal continue por ser apresentada esta ópera. O que os melómanos lamentarão por não podermos escutar ao vivo esta magnífica ária que Placido Domingo interpreta de forma superior. Se não pensarmos que é o nosso Vasco da Gama, o grande almirante, descobridor do caminho marítimo para a Índia, podemos apreciar a arte de Meyerbeer e, sobretudo, o virtuosismo de Placido Domingo. É uma gravação feita no ano de 1988 na Ópera de São Francisco: 

Obrigado a Henry Espinosa e ao youtube

3 Comments

  1. Não exageremos. O que há por aí mais são óperas que, baseando-se em personagens reais, mas “exóticas” para a maioria do público a que se destinam, contam, com melhor ou pior música, histórias aldrabadas. Só como exemplos: – o “Benevenuto Cellini”, belíssima ópera de Berlioz… que narra um episódio absolutamente inventado e “desmentido” a priori pelo próprio Cellini, que escreveu uma famosa “Vita”, a vários títulos notabilíssima, onde conta, sem ambiguidades, a sua nada recomendável “vida”, não poupando nos pormenores mais escabrosos, nem nas palavras “menos respeitáveis”; – o “Andrea Chénier”, a obra-prima de Umberto Giordano, que, tendo em conta o verdadeiro poeta e revolucionário idealista e humanista, conta uma história completamente trocada e truncada e, embora emprestando uma certa dignidade e heroísmo ao seu Andrea, bem se poderia dizer que avacalha a verdadeira vida, pensamento político, obra poética e também política de André Chénier, bem como subverte as razões da sua prisão e baralha as circunstâncias da sua morte …Provavelmente, o mesmo se passou com “L’Africaine”, cuja enredo aparvalhado é mesmo sublinhado por uma Enciclopédia (francesa!) de Música, que tenho, que usa a expressão “les faiblesses du livret”. Mas isto era comum para a época – se há libreto mais imbecil, de uma ópera sublime, pela música, é o de “La Forza del Destino”, apesar das sucessivas revisões da Verdi, retalhando e decompondo o “original”; ou “Jerusalem”, uma adaptação atamancada, para francês, de “I Lombardi alla Prima Crociata”, do mesmo compositor (uma vez, quando exercia de locutor, quase não conseguia gravar o “resumo” da ópera, cuja impossível sequência me dava uma irresistível vontade de rir).E se o Cellini era exótico para os franceses e o Chénier exótico era para os italianos, que dizer do Vasco da Gama?

  2. Não houve qualquer exagero – apenas a narração do que se passou. A ideia de que o episódio da barca Charles & George teria tido alguma coisa a ver com o disparatado libreto, foi aventada por um historiador que trabalhava connosco e surge como mera hipótese. A questão central é – justificava-se pagar tanto dinheiro para termos em Lisboa uma ópera como l’Africaine? Por que razão esta ópera de Meyerbeer nunca veio a Portugal? De uma forma geral, os libretos são efabulações muito frágeis. Esta ópera, no entanto, revela um total desprezo pela História. Meyerbeer, estava a trabalhar neste projecto desde 1834. A personagem central não era Vasco da Gama, mas um qualquer outro navegador castelhano. Foi a súbita opção por Lisboa, Vasco da Gama e outros ingredientes semelhantes, que levaram a estabelecer uma relação de causa/efeito com o incidente diplomático. Exagero? Afirmá-lo sê-lo-ia. Pôr como hipótese é apenas contextualizar historicamente.

  3. O meu alerta – “não exageremos” – visava apenas a hipótese de alguma intenção malévola de deliberada humilhação ter presidido à composição da ópera. Tentei explicá-lo, com base nos razoáveis conhecimentos que tenho nesta área, que o Prof. Luís de Albuquerque, com as suas excepcionais qualidades intelectuais, não tinha qualquer obrigação de dominar. E dei alguns exemplos, tentando “situar” a ópera num contexto de modas, práticas e hábitos (numa época em que os interesses empresariais já pesavam na “indústria do espectáculo”), em que o desvirtuamento, não raro ridículo, da realidade histórica ou, até, a simples coerência interna eram relativamente comuns e não chocavam ninguém – enquanto a “censura” de reizinhos e papazinhos continuava a fazer-se sentir, quando os temas abordados tinham “outra espessura”. Quanto ao resto do episódio, não tenho nada a dizer, até porque suponho que o S. Carlos já atravessaria, então, uma fase de razoável desorientação (não tanto dos gestores mas, sobretudo, de governantes, com os seus habituais adereços culturais de fancaria), pelo que não faço ideia nenhuma (ou já não me lembro…) das razões da programação e desprogramação da ópera. E é bem provável que a intervenção descrita tenha desempenhado o seu papel, levando alguém a informar-se melhor (até porque tenho a vaga ideia de que esta encenação, em colaboração com uma ou mais instituições estrangeiras, terá sido mesmo fruto de alguma “encomenda” suscitada por uma qualquer criatura que “achou graça” à existência de tal ópera, com uma personagem de nome Vasco da Gama).De qualquer modo, na minha modestíssima opinião, mesmo com o Plácido Domingo, creio que não se perdeu grande coisa com a eliminação do “programa das festas” de “L’Africaine”. Meyerbeer morreu antes de completar a versão final da obra, que sofreu alterações que desvirtuaram a concepção global do compositor. Por outro lado, se teve grande êxito inicial, rapidamente a obra desapareceu do repertório, pelo que também não espanta que nunca tenha sido apresentada em Portugal – ainda por cima nas versões (ainda mais!) adulteradas e sem critério em que era apresentada, com cortes “à balda”, para “encurtar” e ir ao encontro do “gosto do público”, que era, sobretudo, o dramalhão romântico (as TVs não inventaram nada… só avacalharam mais). Mas não tenho grandes dúvidas de que, se o tivesse sido, na sua curta época áurea, também por cá alcançaria êxito estrondoso. O “gosto do público” burguês e aristocrata da época não andaria longe do das actuais “audiências” da SIC e da TVI…

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