Le Monde daté du 28 mars 2012
Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
Jovens empregados de pequenas lojas, de cafés ou empregados distribuidores de porta a porta, na capital da região da Campânia, milhares de crianças abandonaram a escola e trabalham ilegalmente para poderem satisfazer às suas necessidades básicas assim como as das suas famílias. E tudo isto perante uma indiferença quase geral.
São sete horas da manhã. Em San Lorenzo, no coração de Nápoles. Um miúdo parece vaguear no labirinto de ruas molhadas, com uma caixa de conservas nos braços. Vestido com roupa já desbotada, com um capuz na cabeça e com sapatilhas de ténis já rotas, o pequeno Gennaro começa o seu dia de trabalho. Ninguém fica surpreendido de o ver aparecer a uma hora ainda tão cedo para uma criança. Em Setembro de 2011, Gennaro foi contratado para trabalhar numa mercearia. Seis dias em cada sete, dez horas por dia, ele reabastece as prateleiras e as bancas, descarrega as caixas e vai fazer a entrega de compras ao bairro, porta a porta. Gennaro sonhava em se tornar um bom técnico em computadores, mas é um marçano numa pequena mercearia, a profissão mais comum entre os filhos de trabalhadores de Nápoles. Eles trabalham ilegalmente, e por menos de 1 euro por hora e ganha, na melhor das hipóteses, 50 euros por semana. Gennaro acaba de fazer 14 anos de idade.
Nunca Paola Rescigno, a mãe de Gennaro, teria acreditado ter que o privar da escola alguma vez na vida, nunca na vida seria capaz de pensar tal coisa. Desde há vinte anos, ela vivia com o seu marido, nuns 35 metros quadrados nas traseiras de um prédio no bairro de San Lorenzo, a zona mais obscura do centro da cidade. Depois, o pai morreu, levado por um cancro repentino e fulminante. Paola Rescigno agora vive de expedientes. Ela organizou um mini-empresa de trabalhos de limpeza e partilha o trabalho com os outros desempregados seus vizinhos. Ela ganha 45 cêntimos do euro por hora, 35 euros por semana, menos do que o salário do seu filho.
É ela que, todas as manhãs, pelo amanhecer, acorda Gennaro para que este chegue a horas à mercearia. A sua filha mais nova, tem 6 anos e, então ela teve que escolher: “Eu não tenho meios para pagar os livros aos dois.” Seria a um ou ao outro. “Na mesa da cozinha,” um pão de oito dias”, uma bola de 3 kg, um pão de centeio, que se conserva durante muito tempo e custa apenas 5 euros.” O produto de referência dos anos de fome do pós-guerra italiano.
Em Nápoles, milhares de crianças como Gennaro são assim levadas a trabalhar. São cerca de 54 000 em toda a Campânia, a região de Nápoles, a terem abandonado o sistema escolar entre 2005 e 2009, de acordo com um relatório alarmante publicado em Outubro de 2011 pela Câmara Municipal; 38% deles têm menos de 13 anos de idade. Empregados de pequenas lojas, empregados de café, distribuidores de lojas no porta-a-porta, aprendizes de cabeleireiro, pequenas mãos a trabalharem as peles nas unidades artesanais e nas unidades que trabalham para as grandes marcas, ” homens de todo o serviço ” para os mercados, eles são visíveis por toda a parte, a trabalharem em plena luz do dia, na indiferença quase geral.
“Claro, nós sempre fomos a região mais pobre da Itália.” Mas isto, isto é um nunca visto desde o final da Segunda Guerra Mundial “, disse Sergio D’Angelo, vice-prefeito de Nápoles”. Apenas com 10 Anos, essas crianças já estão a trabalhar doze horas por dia, uma verdadeira negação do seu direito a crescerem. “Os pais vivem na ilegalidade e serviços sociais podem em qualquer momento colocar os seus filhos numa família de acolhimento, num orfanato.”
A crise italiana aí está ela. Desde 2008, as sucessivas leis de finanças impuseram planos de austeridade drásticos. A Campânia suprimiu, em Junho de 2010, o equivalente do rendimento de solidariedade activa em França, atirando mais de 130 000 famílias elegíveis para a situação de pobreza. O rendimento médio na região era de 633 euros per capita: hoje em dia, metade dos habitantes crêem que a sua situação se deteriorou (fonte: Istat). ” Os jovens absorvem, sozinhos, só eles, o custo da mais grave crise económica do pós-guerra”, disse Sergio D’Angelo.
Os “jovens” são, por vezes, muito jovens. Toto tem 10 anos, cabelo encaracolado ainda de miúdo, corpo adelgaçado e uma vida já definitivamente desenhada para toda a vida. Ele vive com os seus pais, dois irmãos e uma irmã, numa barraca de um bairro de espanhóis com as paredes cheias de humidade. Cada fim- de- semana, Toto parte para ir empurrar o seu carrinho de pipocas, de produtos achocolatados na praça Dante, imediatamente a seguir à saída do metro. Toto gosta da escola, mas ele já sabe que, em Setembro, terá que trabalhar durante todo o dia: “nem todos podemos ser advogados ou médicos.” Depois da escola, joga futebol americano, com cerca de 30 crianças com idades entre os 10 e os 14 anos, numa associação do bairro, num campo cercado de edifícios. ” Dentro de um ano, cerca de três quartos dessas crianças terão deixado a escola, disse o seu professor e, na melhor das hipóteses, apenas um destes jovens terminará o curso liceal.”
Em 2007, ao votarem os seus planos de austeridade, o governo de Berlusconi achou por bem elevar a idade da escolaridade obrigatória, de 14 a 16 anos. Mario, 13 anos, cabelo dourado e olhos azuis, é um dos amigos do futebol que joga com Toto. Quando o seu professor de italiano lhe ensinou que a lei exigia que estudasse outros três anos, ele não hesitou: ele, mesmo assim, deixou a escola e foi procurar trabalho. Mario tem a voz trémula de um adolescente e tem uma certeza: “os meus pais têm ambos o seu nono ano, a sua terza média – e estão ambos desempregados.” Em seguida, Mario quer-se formar e quer fazê-lo rapidamente, num mestre-pasteleiro e aí aprender a fazer grandes bolos. O negócio dos casamentos é o único que aqui que não conhece a crise e o fabrico destes bolos enormes que requerem dezenas de “mãos pequenas” na sua confecção. Mario não tem nem tempo nem os meios para aprender a profissão numa escola profissional. Ele irá aprender este ofício com um mestre pasteleiro que lhe pagará 90 euros por semana e com 12 horas de trabalho diário. “ Aí, ao menos, terei uma forma de me desenrascar.” Paradoxo, a medida de Berlusconi condenou cada vez mais os menores à situação de “escravatura do trabalho ilegal”.
Em Nápoles, as crianças de famílias pobres já não têm outra escolha que não seja ou agarrarem-se aos estudos ou alternativamente a irem para o trabalho ilegal. Uma terceira opção é a de se juntarem às fileiras da Camorra, a máfia napolitana. É contra esta escolha brutal que combate Giovanni Savino, um professor de 33anos, um professor especializado. A sua área de trabalho é um dos piores bairros da Nápoles: Barra, verdadeiro supermercado da droga, um supermercado de águas turvas, de grandes torres de casas degradadas sob a influência dos clãs da Camorra.
Semanalmente, Giovanni Savino vai a Rodino College, uma escola da área situada no coração dos HLM. Aqui, o tráfego atinge a intensidade máxima, e uma criança em cada duas falta mais de cem dias por ano. Segundo a lei, depois de sessenta dias de ausência, estes devem ser expulsos. O director da escola, Annunziata Martire e o educador lutam ambos contra o tempo: uma vez por semana, ele entrega-lhe uma lista dos absentistas. Giovanni Savino tem dez dias para encontrar uma solução, antes da intervenção dos serviços sociais. Na maioria das vezes, é ele que se encarrega de os levar a alcançar o certificado do ensino básico como alunos externos para que eles não sejam retirados às suas famílias e colocado em orfanatos.
Os funcionários da Câmara Municipal já nem ousam aproximar-se das torres de habitação HLM e apenas alguns educadores são capazes de o fazer, tais como Giovanni Savino, de entrarem na Barra. A sua associação é chamada Il Tappeto di Iqbal, o “tapete de Iqbal”, o nome de uma criança escrava paquistanesa que se revoltou e foi assassinada. Ele percorre incansavelmente o bairro, com um pacote cheio de narizes de palhaço no seu saco, para distribuir pelas crianças perdidas. Giovanni Savino é um homem profundamente irritado contra a máfia, contra uma educação sem meios e que falhou, contra o Estado, “que abandona estas crianças”. Em Itália, não existe nenhum esquema de assistência social. O apoio aos jovens e às suas famílias depende da energia de 150 associações que dependem exclusivamente de subvenções pagas pela Prefeitura. Desde a crise, o fundo de assistência social foi reduzido em 87%. Desde há dois anos que vinte mil educadores da Campânia não recebem nenhum salário e devem mesmo endividar-se… para poderem trabalhar. Por falta de financiamento, o tapete de Iqbal fechará as suas portas.
Giovanni Savino já conseguiu retirar assim dezenas de crianças de Barra à ganância dos empregadores sem escrúpulos ou aos clãs de máfia que vêm aqui para recrutar os seus futuros soldados. Carlo é um dos primeiros sobreviventes. Aos 13 anos, criança-assassino já tatuado, ele assaltava, saqueava, matava a pedido do clã de Aprea. Quatro anos mais tarde, Carlo tornou-se o braço direito de Giovanni Savino, a quem ele dedicou uma lealdade absoluta: “Ele não só o ajuda a conseguir o seu diploma do ensino médio. Ele não o deixa. Ele salvou-me a vida.”. “Depois de Carlo, houve Marco, com 12 anos e viciado em cocaína e era especialista nos roubos à mão armada.” E Ciro, estudante brilhante, que se tornou servidor para salvar a sua família que foi vítima e endividada até ao pescoço para com os usurários mafiosos.
Sobre o último, Pasquale, 11 anos, Giovanni Savino diz que foi o seu maior desafio. Quando ele o tomou sob a sua asa protectora, Pasquale tinha abandonado a escola e nunca comeu até matar a fome. Para ajudar a sua família, este menino de 1,30 metros, de rosto cheio de borbulhas descarregava caixas num supermercado. De noite, ele passou a roubar cobre em aterros ou nos armazéns da Trenitalia. ” Tu levas o fio de cobre, e derrete-lo e, depois, corta-lo assim para fazer uma barra”, disse ele, como um profissional. Antes de se preocupar: “Acima de tudo, não digas à minha mãe que tenho uma faca, Hein?” No bairro de Barra, cobre e alumínio são negociados no mercado negro a 20 euros por quilo. E o tráfego é um assunto das crianças. Quando lhe perguntámos o que é que ele quer fazer mais tarde, Pasquale fica subitamente sem voz. E, depois, grita: “Eu farei o que puder.”
Actualmente, seis jovens adultos ensinam as crianças no bairro a fazer malabarismos, a cuspir o fogo, a andarem sobre um fio ou sobre andas altas. Indiferentes aos comportamentos da Máfia, as crianças não hesitam em mostrar o seu nariz vermelho de palhaço. Melhor ainda: em Junho de 2011, Giovanni Savino e “seus” filhos criaram uma companhia de circo. Quando a trupe parte em turné, as crianças partilham a receita, 20 a 50 euros para cada um, numa só noite. Mais do que o salário dos seus pais numa semana inteira.
Cécile Allegra