Vladímir Nabókov Chuva de Páscoa
(tradução de Luísa Costa Gomes)
Vladímir Nabókov nasceu em S. Petersburgo em 1899, primeiro filho de uma família aristocrática, culta e liberal. O pai, Ministro do Czar, foi obrigado a evadir-se da Rússia depois da Revolução de 1917 e exilou-se primeiro em Londres e depois em Berlim, onde acabou por ser assassinado. Nabókov juntou-se à família em 1922, depois de acabar os estudos em Cambridge. Entre 1923 e 1940 publicou romances, contos, peças, poemas e traduções que o tornaram conhecido na comunidade russa de Berlim. Em 1940 mudou-se com a mulher e o filho para os Estados Unidos onde leccionou literatura russa em várias universidades. Morreu em Montreux, na Suíça, em 1977. Easter Rain (Chuva de Páscoa) data de 1925 e foi escrito em russo com o pseudónimo Sirin e publicado no n° 15 do semanário Ruskoje Echo, feito por emigrantes russos em Berlim. Este texto foi encontrado em 1990 e traduzido por Dieter Zimmer para Alemão. A Nouvelle Revue Française publicou em 1999 a primeira tradução francesa. A tradução inglesa utilizada na tradução apresentada neste número é a do filho do escritor, Dmítri Nabókov.
Naquele dia, uma velha solitária, suíça, de nome Joséphine, ou Josefina Lvovna, como lhe chamava a família russa com que vivera doze anos, comprou meia dúzia de ovos, um pincel e duas pastilhas de aguarela carmim. Naquele dia, as macieiras estavam em flor. Na esquina, o cartaz de um filme reflectia-se invertido na lisa superfície de uma poça e, de manhã, as montanhas do outro lado do Lago Léman velavam-se de uma névoa sedosa, como as folhas opacas do papel de arroz que cobrem as águas-fortes nos livros caros. O nevoeiro prometia um dia bom, mas o sol mal rompeu sobre os telhados das casinhas de pedra meias tortas, acima dos fios molhados de um eléctrico de brinquedo e logo se dissolveu na neblina. O dia acabou por ser calmo, com nuvens de Primavera, mas, para o fim da tarde, deslizou um vento pesado e gelado pela montanha abaixo e Joséphine, a caminho de casa, teve um ataque de tosse tal que, à porta, perdeu por um instante o equilíbrio e, quase roxa, se apoiou no chapéu de chuva bem enrolado, fino como uma bengala.
No quarto já estava escuro. Quando acendeu o candeeiro, iluminou-lhe as mãos — mãos magras, de pele esticada e brilhante com manchas escuras e pontos brancos nas unhas.
Joséphine pôs as compras na mesa, o casaco e o chapéu em cima da cama. Deitou água num copo e, pondo o pince-nez de aros pretos que lhe dava uma expressão severa aos olhos cinzentos escuros, por baixo das sobrancelhas que se juntavam acima da cana do nariz, espessas e lúgubres, começou a pintar os ovos. Mas por qualquer razão a aguarela carmim não pegava. Talvez devesse ter comprado uma tinta química, mas não sabia como havia de pedi-la, e tinha vergonha de explicar. Pensou em ir ter com um boticário que conhecia – e já agora, comprava também aspirina. Sentia-se sem forças e os olhos doíam-lhe da febre. Queria sentar-se calmamente, pensar calmamente. Hoje era a festa russa do Sábado de Aleluia.
Em tempos, nos vendedores ambulantes da Avenida Nevsky havia umas pinças especiais. As pinças eram muito práticas para tirar os ovos do líquido quente, azul escuro ou cor de laranja. E também havia colheres de pau: batiam ao de leve, densas, contra o vidro espesso dos frascos de que se exalava o vapor tóxico e pesado da tinta. Depois os ovos secavam-se em montinhos, os vermelhos com os vermelhos, os verdes com os verdes. E também os pintavam de outra maneira, embrulhando-os bem apertados em tiras de pano com decalcomanias, que pareciam amostras de papel de parede. Depois de fervidos, quando o criado trazia a panela imensa da cozinha, que divertido que era desenrolar o pano e tirar os ovos sarapintados e jaspeados do tecido quente e húmido, de que vinha um vapor suave, um cheirinho da nossa infância.
A mulher suíça sentiu-se estranha ao recordar que, quando vivera na Rússia, tivera saudades de casa e mandara longas cartas melancólicas e muito bem escritas aos amigos, dizendo que se sentia sempre mal aceite e incompreendida. Todas as manhãs depois do pequeno almoço dava uma volta no grande landó aberto com a discípula, Hélène. E ao lado do rabo gordo do cocheiro, que lembrava uma gigantesca abóbora azul, via as costas abauladas do velho criado, todo botões dourados e estadão. As únicas palavras que sabia em russo eram: “cocheiro”, “chiu-chiu”, “assim-assim” (Kutcher, Tish-tish, Nichevo) e pronunciava-as todas mal.
Partira de S. Petersburgo com uma obscura sensação de alívio, logo no princípio da guerra. Pensava que agora se iria deliciar infinitamente em serões de conversa com os amigos no conforto da sua cidade natal. Mas a realidade veio a ser exactamente o contrário. A sua vida real — ou seja, a parte da vida em que nos habituamos mais e mais profundamente às pessoas e às coisas – fora ali, na Rússia, que inconscientemente acabara por amar e compreender e onde só Deus sabia o que agora se passava… E amanhã era a Páscoa Ortodoxa.
Joséphine suspirou alto, levantou-se e foi fechar bem a janela. Olhou para o relógio, negro na corrente de níquel. Tinha de se fazer qualquer coisa àqueles ovos. Eram uma prenda para os Platonovs, um casal de velhos russos que viera há pouco viver para Lausanne, uma cidade simultaneamente nativa e estrangeira para ela, onde era difícil respirar, as casas empilhadas ao acaso, sem ordem, numa confusão ao longo das ruas íngremes e cheias de esquinas.
Ficou pensativa, a ouvir o zumbido nos ouvidos. Depois sacudiu-se para sair do torpor, deitou um frasquinho de tinta púrpura numa lata e mergulhou com cuidado um ovo lá dentro.
A porta abriu devagarinho. A vizinha, Mademoi-selle Finard entrou, silenciosa como um rato. Era uma mulher magra e pequenina, também ela ex-preceptora. O cabelo curto era todo prateado. Trazia um xaile preto, iridescente de vidrilhos.
Joséphine, ao ouvir os passinhos de rato, cobriu atabalhoadamente com um jornal a lata e os ovos que secavam no papel mata-borrão.
– O que é que quer? Não gosto que me entrem assim por aqui dentro.
Mademoiselle Finard olhou de viés para a cara ansiosa de Joséphine e não disse nada, mas ficou profundamente ofendida, e sem uma palavra, saiu do quarto no mesmo passo miúdo e afectado.
Por essa altura já os ovos estavam de um violeta venenoso. Num ovo que ainda não pintara, decidiu escrever as duas iniciais da Páscoa como sempre fora costume na Rússia. A primeira letra, X, saiu bem, mas da segunda não tinha bem a certeza e por fim, em vez de um B, desenhou um R, absurdo e torto. Quando a tinta secou completamente, embrulhou os ovos em papel higiénico macio e pô-los na carteira.
Que tormento de moleza… Queria deitar-se na cama, beber café quente e esticar as pernas… Tinha febre e as pálpebras picavam… Quando saiu, a tosse seca subiu-lhe de novo à garganta. As ruas estavam húmidas, mortas e desertas. Os Platonovs moravam ali perto. Estavam sentados, a tomar chá, e Platonov, careca, barba rala, camisa russa de sarja com botões de lado, enrolava mortalhas de tabaco louro quando Joséphine bateu com o punho do chapéu de chuva e entrou.
– Ah, boa noite, Mademoiselle.
Sentou-se ao pé deles e sem grande tacto, muito palavrosa, pôs-se a discutir a iminente Páscoa russa. Tirou um por um os ovos violeta da mala. Platonov reparou no ovo com as letras a lilás “X e R” e desatou a rir.
– Mas a que propósito é que ela pôs iniciais judaicas?
A mulher, uma gordinha de cabeleira amarela e olhos tristes, sorriu breve. Começou a agradecer a Joséphine, com indiferença, arrastando as vogais em francês. Joséphine não percebia de que se riam eles. Sentia-se quente e triste. Começou a falar outra vez, mas tinha a sensação de que o que dizia era deslocado, e mesmo assim não se conseguia conter.
– Pois é, nesta altura não há Páscoa na Rússia… Pobre Rússia! Lembro-me de que as pessoas se beijavam na rua. E a minha pequena Hélène parecia um anjo nesse dia… Oh, muitas noites passo eu a chorar, a pensar no vosso país maravilhoso!
Os Platonovs achavam sempre desagradáveis estas conversas. Nunca falavam da pátria perdida com estranhos, como os homens ricos que, arruinados, escondem a pobreza e se tornam ainda mais altivos e menos acessíveis do que antes. Por isso, bem no fundo, Joséphine sentia que não tinham amor à Rússia. Normalmente, quando visitava os Platonovs pensava que, se começasse a falar da bela Rússia, de lágrimas nos olhos, os Platonovs haviam de romper subitamente em soluços e começar a recordar e a evocar, e que iam ficar assim os três a noite toda a recordar, a chorar e a apertar as mãos uns dos outros.
Mas, na realidade, isto nunca aconteceu. Platonov assentia com a barba por boa educação e indiferença, enquanto a mulher tentava saber onde é que se conseguia o chá ou o sabão mais baratos.
Platonov pôs-se outra vez a enrolar cigarros. A mulher alinhava-os numa caixa de cartão. Tinham pensado dormir uma sesta até à hora de irem para a Vigília Pascal na Igreja Grega ali ao pé. Queriam estar calados, pensar os seus pensamentos, falar só por olhares rápidos e aparentemente distraídos e sorrisos especiais, do filho que fora morto na Crimeia, e de coisas e loisas da Páscoa, da igreja ao pé de casa, na Rua Pochtamskaya. E agora vinha esta velha faladora e sentimental, de olhos cinzentos-escuros e ansiosos, sempre aos suspiros, e era bem capaz de ali ficar até eles terem de se ir embora.
Joséphine calou-se, esperando com avidez que a convidassem para os acompanhar à Igreja e, depois, para quebrar o jejum com eles. Sabia que tinham feito bolos russos de Páscoa no dia anterior, e embora obviamente não pudesse comê-los por se sentir com tanta febre, mesmo assim, seria tão agradável, tão caloroso e tão festivo.
Platonov rangeu os dentes e, contendo um bocejo, olhou furtivamente para o relógio, para o mostrador debaixo da tampa. Joséphine viu que não iam convidá-la. Levantou-se.
– Precisam de descansar, caros amigos, mas quero dizer-vos uma coisa antes de ir – e aproximando-se de Platonov, que também se levantara, exclamou num russo sonoro e macarrónico: “Asciension de Cristio!”.
Era a última esperança dela para lhes arrancar uma torrente de lágrimas quentes e doces, de beijos de Páscoa, um convite para quebrarem juntos o jejum… Mas Platonov só endireitou os ombros e disse, num riso contido:
– Vê, Mademoiselle, a sua pronúncia é belíssima.
Lá fora, rompeu em soluços, e caminhava com o lenço apertado aos olhos, vacilando ligeiramente, batendo no passeio o guarda-chuva de seda que parecia uma bengala. O céu estava cavernoso e perturbado — a lua vaga, as nuvens como ruínas. Os pés em ângulo de um Chaplin de caracóis reflectiam-se numa poça à porta de um cinema todo iluminado. E quando Joséphine passou debaixo das árvores ruidosas e chorosas à beira do lago, que pareciam uma parede de névoa, viu uma lanterna esmeralda brilhando palidamente à borda de um pequeno cais e uma coisa grande e branca trepar com esforço para um barco negro que oscilava na água. Procurou focar, por entre lágrimas. Um enorme cisne velho entufou-se, bateu as asas, e de repente, desastrado como um ganso, gingou, pesado, para o convés. O barco balançou; brotaram círculos verdes na água negra e oleosa que se fundia no nevoeiro.
Joséphine ponderou se devia mesmo assim ir à Igreja. Mas em S. Petersburgo, a única Igreja em que estivera fora a católica, de tijolo, ao fundo da Rua Morskaya, e sentia vergonha de ir agora a uma igreja ortodoxa, onde não saberia quando se havia de benzer ou como pôr as mãos, e onde alguém ainda lhe poderia fazer alguma observação. Sentia arrepios intermitentes. A cabeça encheu-se de uma confusão de sussurros de folhas, dos estalidos das árvores, de nuvens negras e recordações de Páscoa: montanhas de ovos de várias cores, os reflexos sombrios de S.Tiago. Ensurdecida e tonta lá conseguiu chegar a casa e subir as escadas, batendo com o ombro contra a parede e depois, titubeante, a bater os dentes, começou a despir-se. Sentiu-se ainda mais fraca e deixou-se tombar na cama, num incrédulo sorriso de beatitude.
Apoderou-se dela um delírio tempestuoso e poderoso como o ressoar de sinos. Montanhas de ovos coloridos espalhavam-se com baques rotundos. O sol – ou seria um carneiro de cornos dourados feito de manteiga cremosa – entrou aos baldões pela janela e começou a crescer, enchendo o quarto de um amarelo tórrido. Entretanto, os ovos subiam muito depressa e rebolavam por umas tabuinhas polidas e brilhantes, batendo uns contra os outros, as cascas rachadas, as claras manchadas de carmim.
Toda a noite assim delirou, e só na manhã seguinte Mademoiselle Finard, ainda ofendida, entrou, abafou um grito e correu, em pânico, a chamar o médico.
– Pneumonia lobar, Mademoiselle.
Pelas ondas do delírio brilhavam flores dos papéis de parede, o cabelo prateado da velha, os olhos plácidos do médico – tudo cintilava e se dissolvia. E, outra vez, um zumbido agitado de alegria lhe inundava a alma. O céu azul de conto de fadas era como um gigantesco ovo pintado, os sinos ribombavam, e alguém entrou no quarto, e parecia-se com Platonov – ou talvez com o pai de Hélène – e ao entrar desdobrou um jornal, pô-lo em cima da mesa e sentou-se ali ao pé, olhando ora para Joséphine ora para as páginas em branco com um sorriso intencional, modesto e ligeiramente manhoso. Joséphine percebeu que havia nesse jornal notícias prodigiosas mas, por mais que tentasse, não conseguia decifrar as letras russas do cabeçalho negro. A visita continuava a sorrir e deitava-lhe uns olhares cheios de significado e parecia prestes a revelar o segredo, para confirmar a felicidadede que ela já tivera uma amostra – mas o homem dissolveu-se lentamente. A inconsciência tomou-a de repente como uma nuvem negra.
Veio depois outra mistura de sonhos delirantes: o landó rolava ao longo do cais, Hélène lambeu a cor quente e brilhante de uma colher de pau, o largo Neva cintilava expansivo e o Czar Pedro saltou de repente do cavalo de bronze, que pousara ao mesmo tempo os cascos das patas da frente. Aproximou-se de Joséphine e, com um sorriso na cara tempestuosa e tingida de verde, abraçou-a, beijou-a na cara primeiro de um lado, depois do outro. Tinha os lábios macios e quentes e quando lhe aflorou a face pela terceira vez, ela palpitou, gemeu de felicidade, abriu os braços e calou-se de repente.
De manhã cedo, ao sexto dia de doença, depois de uma crise final, Joséphine recobrou a razão. Pela janela cintilava um céu branco e brilhante e a chuva perpendicular cachoava em ondas nas sarjetas. Um ramo molhado ia de um lado ao outro da janela e, à ponta, uma folha tremia debaixo do crepitar da chuva. A folha debruçou-se e deixou cair uma gota grossa da extremidade do limbo. A folha estremeceu de novo e percorreu-a um raio húmido e um brinco comprido e brilhante oscilou e caiu.
E para Joséphine foi como se a frescura da chuva lhe corresse nas veias. Não despegava os olhos do céu fluido e a chuva que pulsava absorta era tão agradável, a folha estremecia tão comovente, que lhe deu vontade de rir; o riso encheu-a, embora ainda insonoro, percorrendo-lhe o corpo, fazendo-lhe cócegas no céu da boca, a ponto de fazer a sua erupção.
À esquerda, no canto, algo esgaravatava e suspirava. Sacudida pelo riso que lhe subia, desviou os olhos da janela e virou a cabeça. A velha pequenina estava no chão, no seu xaile negro. O cabelo curto prateado abanava zangado enquanto ela remexia e se contorcia metendo a mão debaixo da cómoda para onde lhe rolara o novelo de lã. O fio negro ia da cómoda à cadeira, onde ainda estavam as agulhas de tricô com metade de uma meia.
Ao ver as costas negras de Mademoiselle Finard, que esperneava, ao ver as botinas, Joséphine desatou à gargalhada, tremendo sem fôlego e arrulhando por baixo do édredon de penas, sentindo que ressuscitava, que voltava de névoas remotas de felicidade, prodígio e esplendor de Páscoa.
(in FICÇÕES, Revista de Contos, nº. 6, Tinta Permanente)