SER MANGUÇO
SER MANGUÇO foi, primeiro, uma imensa sensação de frio na pele, de vazio na alma, de desconforto total. Era o abandono da casa, da família, da terra, do emprego, dos amigos, dos hábitos adquiridos, da vida habitual, em suma, que se desenrolava segundo uma cómoda rotina já estabelecida, e integrar-se num Mundo completamente diferente, o mundo da tropa, com o seu rol de feições características, das quais, vistas de fora, se conheciam apenas as desagradáveis: fardar, desfardar, as continências, a posição de sentido a toda a hora, engraxar as botas, a rigidez dos horários, a alvorada ainda noite fechada, as canseiras da instrução ás intempéries, a uniformização exterior e interior das pessoas, a ausência de intimidade, o cheiro a suor. E tudo isto agravado pela negra ideia da partida para a GUERRA, essa coisa que só se ouvia e só se lia coisas medonhas, e que por isso se afigurava uma espécie de queda no inferno, com aquela dramática inscrição no limiar: “Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais! “.
SER MANGUÇO depois, foi o abrir de um novo livro da vida, livro esse totalmente diferente dos anteriores, cheio de acontecimentos tão inéditos quanto inesquecíveis. E entre eles, logo à cabeça, o embarque, a lenta descida do rio Tejo, sair a barra; quase logo a seguir, aquela sensação intraduzível de uma pessoa se ver numa casca de nós a baloiçar entre o céu e o mar.
E passada a excitação da partida, quando se cuidava que tal sensação não abrandaria, uma tranquilidade nunca antes experimentada a invadir o corpo e a alma, num relaxamento total, delicioso, quase voluptuoso. Ao mesmo tempo, sentir-se a gente um grãozinho de areia na imensidão de uma praia, uma gota de água no Oceano, um infinitamente pequeno perdido no infinitamente grande. A noção exacta da nossa real dimensão, da nossa pequenez.
SER MANGUÇO foi, ao fim de dez dias de mar, ver aproximar-se terra – sensação inesquecível! – foi pôr o pé num continente diferente e nele se inserir, de olhos esgazeados e todos os sentidos alerta, absorvendo tudo quanto se passava, como um computador a armazenar dados para mais tarde serem tratados.
SER MANGUÇO foi a deslocação para a zona de destino, atravessar plena região de guerra e, naqueles dias de viagem e nos primeiros tempos a seguir, sentir o peito opresso, o coração pequenino como uma ervilha, em cada curva, em cada subida ou descida, em cada quilómetro, de cada morro ou de cada mata esperando tiros, uma emboscada, o rebentamento de uma mina; sentir permanentemente a morte a rondar por perto, a espreitar. A guerra, finalmente, com a sua tensão nervosa permanente. E até houve tiros naquela viagem para o Norte: a certa altura disparou-se uma arma acidentalmente, e foi um pandemónio! Todos cuidaram ser uma emboscada e vá de se atirarem das viaturas, mergulharem no terreno à volta, e dar tiros, muitos tiros, enquanto houvesse munições! Serenados os ânimos, depois concluiu-se que aquela tinha sido realmente uma guerra contra o… medo! Mas um ensinamento logo ali se colheu: como se não deve fazer as coisas.
Mais á frente a emboscada já foi verdadeira, muitos tiros foram trocados e a escolta que nos acompanhava, fez prodígios na arte de nos defender, fazendo fogo ininterrupto do alto do seu jipão e com a sua metralhadora pesada.
SER MANGUÇO foi assumir a responsabilidade de uma zona operacional na histórica região dos Dembos, em pleno coração do café, no Noroeste de Angola, e aí iniciar e desenvolver acções de guerra; ser, finalmente, protagonista, e não mero espectador ou leitor, de um dos mais pungentes dramas da Humanidade – o drama da guerra. E foi, em tais circunstâncias, vivendo de manhã à noite em sobressalto, sentir voltar à superfície a sua própria personalidade, praticamente submersa, adormecida desde a entrada para o primeiro quartel; foi recuperar de forma surpreendente o equilíbrio íntimo, que já se receava perdido para sempre. E entre surpreso e maravilhado, ver nessa semente de si próprio germinar e crescer, fazer de si o Homem que nunca fora: consciente do perigo mas enfrentando-o, consciente do medo mas vencendo-o; sabendo que a cada momento lhe poderia ser exigido realizar esforços sobre-humanos, dar a própria vida, fazer milagres, para salvar a vida de camaradas seus em apuros ou para que a missão fosse cumprida, sentir, mais que saber, que na altura necessária a sua confiança, o seu engenho, a sua coragem, o seu espírito de sacrifício e de solidariedade, o ajudariam a resolver os problemas, chegar a porto salvo.