EM COMBATE – 38 – por José Brandão

Mas, aqui vai a segunda história curiosa passada no Tridente e em Noqui.

 

Como referi, Noqui estava na linha de fronteira com o Congo e, como tal, além da guarnição militar e de um administrador havia as autoridades fronteiriças e um posto da PIDE.

 

Em Angola, os Pides não andavam de chapéu e gabardina, com golas levantadas, como no “Puto”, e aparentavam serem pacatos civis frequentemente confundíveis com qualquer comerciante ou cantineiro. Uma das áreas em que eles eram peritos era a gestão (como dizemos hoje!) da informação.

 

A sua rede de informadores, de ambos os lados da fronteira, permitia terem uma noção bastante razoável do que se passava do lado do inimigo (IN), dos seus movimentos, iniciativas, problemas, dificuldades, etc. Mas a obtenção da informação não se fazia só com chá e simpatia ou a troco de uns cobres. Fazia-se também por troca de informações. Passava-se para o lado de lá aquilo que se achava ser pouco importante ou não reservado, na expectativa de receber em troca algo de mais sério e substancial.

 

Com todo esse contacto acabava por se criar um certo à vontade, quase que alguma intimidade. Os turras do lado de lá conheciam bem a nossa PIDE e eles conheciam também razoavelmente alguns deles. Enfim, todos sabemos que a vida é feita de compromissos e importa que o resultado seja positivo.

 

Um dia, numa das tardes que fui a Noqui beber uma cerveja com os camaradas do Exército, o médico da companhia, o “Doc” não apareceu. Estava a dormir. A dormir às quatro horas da tarde? Sim, estava a dormir e não podia ser acordado. Tinha vivido uma aventura espantosa que terminara nessa manhã e estava a recarregar as baterias.

 

Dias antes, a altas horas da noite, vindo do Congo, tinham-se apresentado no posto fronteiriço de Noqui dois carros civis com negros, alguns deles armados. Queriam falar com o nosso Pide com urgência. Tinha acontecido uma desgraça e só ele poderia, eventualmente, ajudar a resolvê-la.

 

Que se tinha passado?

 

Nesse dia, algures longe e a leste de Noqui, os turras da FNLA tinham caído numa emboscada montada pela nossa tropa (mas não a de Noqui) junto à nossa fronteira com o Congo. Tinham sofrido umas baixas, mas o pior era que, na patrulha da FNLA que tinha sofrido a emboscada, tinha sido gravemente ferido o segundo comandante da base de Kinkusu. Ora a base de Kinkusu, para quem não sabe ou já não se lembra, era um dos principais, se não o principal campo militar da FNLA no Congo e servia de apoio logístico aos grupos de guerrilheiros da FNLA que actuavam no Norte de Angola. Obviamente, a base era por sua vez apoiada pelo estado congolês.

 

Ora acontecia que, o segundo comandante da base tinha sido gravemente ferido pelos portugueses, encontrava-se em estado grave e recusava-se peremptoriamente quer a ser evacuado para qualquer hospital de Leopoldville (depois Kinshasa), quer a ser assistido por médicos da FNLA ou congoleses. Só admitia ser tratado por médico português e por nenhum outro. Os colegas dele que se desenrascassem e descobrissem um português que fosse lá tratar dele.

 

Assim, na fronteira de Noqui, depois de várias horas de viagem em picada, lá estavam os negros da base de Kinkusu a pedir ao nosso Pide que mandasse o “Doc” da companhia de Noqui com eles, de regresso a Kinkusu, para safar o segundo comandante deles que tinha sido ferido por um dos nossos!

 

Depois de muitas súplicas e muita conversa, o nosso Pide fala com o comandante da companhia que, depois de ponderar a situação, decide acordar o “Doc” e pôr-lhe o problema: Estaria ele disposto a ir, não se sabia muito bem onde, tentar safar um principal do IN que tinha sido ferido por comandos nossos?

 

As condições eram mais que precárias: garantias de regresso e segurança eram zero. Mas, se o homem fosse safo, talvez tudo naquela região pudesse vir a melhorar. Estaria ele disposto a correr o risco? O “Doc” acabou por aceitar o desafio. Arranjou a trouxa, preparou os seus instrumentos e mezinhas e lá partiu, sozinho, sem escolta nem viaturas, com aquela turma semi­turra e semi­civil para destino desconhecido.

 

Depois de algumas horas de saltos e safanões lá chegou a Kinkusu. A base militar era grande, razoavelmente organizada e guarnecida, e lá lhe puseram o segundo comandante nas mãos. Com todas as dificuldades que são fáceis de imaginar, o “Doc” conseguiu extrair-lhe a bala que estava alojada já não me lembro onde. Tratou o turra e quando estava já relativamente fora de perigo, ao fim de alguns dias, trouxeram-no de volta a Noqui.

 

Tinha chegado nessa manhã, depois de alguns dias e noites de vigília ao segundo comandante de Kinkusu, completamente exausto e, nessa tarde, estava naturalmente a refazer­se de tudo: do susto, da emoção, do risco que tinha corrido e do cansaço físico e psicológico.

 

Tinha sido tratado nas palminhas, com considerações e mordomias durante os dias e noites que tinha durado aquela aventura. Não o tornei a ver pois, passados poucos dias, o meu grupo de combate largava o Tridente. Também fiquei sem saber como evoluiu a acção militar naquela terra depois deste incidente. Mas certamente para o turra que tinha sido baleado e, para o “Doc” português que o tinha tratado e salvo nas circunstâncias que relatei, muito de importante se tinha passado.

 

Este caso que descrevi não é único. O que de único tem para mim, é ter-se passado perto e nas minhas barbas. Episódios bizarros deste género passaram-se em Angola repetidamente. Seriam eles o reflexo deste nosso porreirismo nacional também já assimilado pelos nossos negros de Angola ou será que é normal e corrente as guerras fazerem-se assim?

 

 

Vasco Quevedo Pessanha
2º tenente FZE RN – 7º CEORN

 

Fontes:
Revista da Associação dos Oficiais da Reserva Naval n.º 10, Outubro 1999.

 

http://reservanaval.blogspot.com/

 

 

A seguir -Companhia de Caçadores 1494

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