Helena – Ethel Feldman

 

 

Ethel Feldman  Helena

 

 

 

 

 

(Adão Cruz)

 

 

   À porta do prédio,Helena espera-me, como sempre, com mais um poema.

 

 – Vê lá,se gostas deste.. É o que ando a fazer agora. Não leias, se estás cansada, mas se queres esquecer o teu dia, embrenha-te nele. É o que ando a escrever. Não sei que horas são…

 

– Já passa das seis da manhã. Acho que vou ler depois de dormir…

 

Devolve-me um sorriso. Responde-me sempre assim. Ela é a minha vizinha do r/c. Não sei o que faz, para além dos poemas que me oferece a cada manhã.

 

– “Edito a vida de quem não tem vida, todos os dias“, diz a caminho de sua casa.

 

Se Helena matasse o vizinho do segundo esquerdo, teria um editor. Seria notícia em todos jornais:  “Poetisa estrangula vizinho, ao raiar da manhã…”. Em pouco tempo teria um livro publicado com todos os seus poemas. Tenho certeza que seria um best seller.

 

Augusto é um velho militar reformado. Toca uma corneta desafinada ao raiar de todas as manhãs. Helena está convencida que o homem terá sido galo numa vida passada.

 

Quando chove, a poeira vira lama. Na mesa da minha sala de jantar, amontoam-se fotografias. O passado ganha contornos de presente. Desenho com os dedos cada traço como se nesse gesto, a velhice fosse somente um breve pesadelo. Deixo que os espelhos ganhem pó e com o tempo se distraiam de mim.

 

Helena parece não ter idade. Enquanto envelheço a cada manhã, ela parece sempre a mesma com um sorriso que não consigo definir. Os seus poemas moram com as minhas fotos, como se fossem amantes inseparáveis.

 

Antes de me deitar, em vez de pedir a Deus desculpas por todos os meus pecados, leio. Os poemas de Helena são como a noite morna que aconchega meu corpo.

 

Dormir de dia, é como andar em contra-mão. O corpo pesa e reage descompassado.

 

Depois de um banho quente, sento-me a ler o poema de hoje:

 

“Tudo que nasce é gerado na sombra,

A morte acolhe a semente de uma nova vida”

 

Doce é esta dor que abraça o meu coração antes de adormecer.

Um casal de grilos canta na minha janela.

 

 

(vídeo da autoria de Ethel Feldman com a música “Da noite ao silêncio” de Bernardo Sassetti)

 

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