DIÁRIO DE BORDO, 10 de Junho de 2012

 

Hoje é dia de Portugal e dia de Camões.  A Argos continua a sua navegação . Os tempos são outros. Mais de meio século se passou sobre a viagem de Vasco da Gama, que já se tem querido apontar como o marco que assinala o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, em vez da tomada de Constantinopla pelos turcos. Poder-se-á dizer que a entrada de Portugal na então CEE consuma o fim de um ciclo, o fim de uma época? Talvez seja grandiloquência a mais. E também haverá uma contradição assim tão grande entre a expansão e uma maior ligação à Europa? Talvez não.


O facto é que o nosso país continua sulcando mares tormentosos. Para aquém da Taprobana. Mas com certeza que continuamos metidos em:


“… perigos e guerras esforçados,

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo reino, que tanto sublimaram;”

 

Talvez se considere que Angela Merkel é um pouco diferente do Samorim de Calecute (em quê? Nas barbas?) e que os senhores Sócrates/Passos/etc. não valem o Adamastor (são piores, claro). Bom, perdoarão Diário de Bordo por hoje não entrar muito por esses lados. Vamos recordar uma coisa que toda a gente já sabe é que durante muito tempo a imagem de Camões foi acorrentada (a expressão, se a memória de Diário de Bordo não falha, é de Eduardo Lourenço) à ideologia nacional-colonialista que se andou a impor em Portugal durante muito tempo. Esse encarceramento do espírito de Camões teve o seu culminar na imposição nas escolas de uma versão censurada dos Lusíadas, e numa secundarização da sua obra lírica. 


Mas vamos focar um aspecto. Os Lusíadas são uma glorificação da epopeia dos Descobrimentos portugueses, sem dúvida. Mas o que pensaria realmente Camões, um actor dos Descobrimentos, sobre a situação de Portugal no mundo? Nas consequências de um esforço tão grande, e cuja orientação não terá sido, muitas vezes, a melhor? Vamos ao Canto IV:


Mas um velho, de aspecto venerando,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

C’um saber só de experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:

 

Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

C’uma aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,

Que crueldades neles experimentas!

 

Pois, já foi assinalado que este seria o sentimento do poeta perante o grande esforço dos Descobrimentos e da expansão, muito orientados para o Oriente, e mais tarde para o Brasil, que acabaram para exaurir e enfraquecer o país. Parece que em certa altura de Quinhentos, estavam mais de setenta mil homens em armas no Oriente, quando na altura Portugal não teria mais de um milhão de habitantes. O Velho do Restelo expunha aos que partiam para a Índia os pensamentos do próprio Camões, que assim não perdeu o espírito crítico perante a Epopeia que celebrava.


Dir-se-á que a batalha de Alcácer-Quibir aconteceu na sequência das ideias que exprimia o Velho do Restelo que também dizia:


Deixas crias às portas o inimigo,

Para ires buscar outro de tão longe,


Diário de Bordo não vai entrar pelos caminhos da história alternativa. Contudo, recorda que Camões não tinha uma perspectiva monolítica sobre os acontecimentos em que participou. É importante, sobretudo nos tempos que correm, e nos mares que navegamos.

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