Hoje é dia de Portugal e dia de Camões. A Argos continua a sua navegação . Os tempos são outros. Mais de meio século se passou sobre a viagem de Vasco da Gama, que já se tem querido apontar como o marco que assinala o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, em vez da tomada de Constantinopla pelos turcos. Poder-se-á dizer que a entrada de Portugal na então CEE consuma o fim de um ciclo, o fim de uma época? Talvez seja grandiloquência a mais. E também haverá uma contradição assim tão grande entre a expansão e uma maior ligação à Europa? Talvez não.
O facto é que o nosso país continua sulcando mares tormentosos. Para aquém da Taprobana. Mas com certeza que continuamos metidos em:
“… perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram;”
Talvez se considere que Angela Merkel é um pouco diferente do Samorim de Calecute (em quê? Nas barbas?) e que os senhores Sócrates/Passos/etc. não valem o Adamastor (são piores, claro). Bom, perdoarão Diário de Bordo por hoje não entrar muito por esses lados. Vamos recordar uma coisa que toda a gente já sabe é que durante muito tempo a imagem de Camões foi acorrentada (a expressão, se a memória de Diário de Bordo não falha, é de Eduardo Lourenço) à ideologia nacional-colonialista que se andou a impor em Portugal durante muito tempo. Esse encarceramento do espírito de Camões teve o seu culminar na imposição nas escolas de uma versão censurada dos Lusíadas, e numa secundarização da sua obra lírica.
Mas vamos focar um aspecto. Os Lusíadas são uma glorificação da epopeia dos Descobrimentos portugueses, sem dúvida. Mas o que pensaria realmente Camões, um actor dos Descobrimentos, sobre a situação de Portugal no mundo? Nas consequências de um esforço tão grande, e cuja orientação não terá sido, muitas vezes, a melhor? Vamos ao Canto IV:
Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Pois, já foi assinalado que este seria o sentimento do poeta perante o grande esforço dos Descobrimentos e da expansão, muito orientados para o Oriente, e mais tarde para o Brasil, que acabaram para exaurir e enfraquecer o país. Parece que em certa altura de Quinhentos, estavam mais de setenta mil homens em armas no Oriente, quando na altura Portugal não teria mais de um milhão de habitantes. O Velho do Restelo expunha aos que partiam para a Índia os pensamentos do próprio Camões, que assim não perdeu o espírito crítico perante a Epopeia que celebrava.
Dir-se-á que a batalha de Alcácer-Quibir aconteceu na sequência das ideias que exprimia o Velho do Restelo que também dizia:
Deixas crias às portas o inimigo,
Para ires buscar outro de tão longe,
…
Diário de Bordo não vai entrar pelos caminhos da história alternativa. Contudo, recorda que Camões não tinha uma perspectiva monolítica sobre os acontecimentos em que participou. É importante, sobretudo nos tempos que correm, e nos mares que navegamos.