REFLEXÕES SOBRE A MORTE DA ZONA EURO, SOBRE OS CAMINHOS SEGUIDOS NA EUROPA A CAMINHO DOS ANOS 1930

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

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Jacques Sapir : “O anúncio de Mario Draghi é uma capitulação em campo aberto”

Parte I

Sapir - I

Jacques Sapir é economista e director de estudos em  l’EHESS
Autor entre várias obras, de  
    – La démondialisation, Seuil, Abril de  2011 (click)
Faut-il sortir de l’euro ? Seuil, Janvier 2012
photo : Margot L’Hermite

Na quinta-feira passada, o Banco Central Europeu anunciou que iria resgatar “sem limite” uma série de obrigações (de um a três anos) de países em dificuldade pertencentes   à  zona euro. Esta decisão foi saudada como decisiva. O que  acha disso?

A minha apreciação não é muito positiva.   A declaração  feita por  Mario Draghi foi calorosamente saudada na imprensa. Mas quando ler o seu comunicado de imprensa – extremamente preciso -publicado pelo BCE, vai notar várias coisas.

Em primeiro lugar, o BCE está empenhado em fazer resgates aos países que o  solicitem. Não há aqui  questão de poderem intervir  a menos que haja um pedido expresso  desse país, pedido este que implica que o país vai passar sob as forças caudinas dos programas ditos de  “ajustamento estrutural”, via o FEEF  (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira) ou via o futuro MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade ). O resgate de títulos da dívida será feito nas condições aí impostas. É importante sublinhá-lo: isto significará reforçar as  políticas de ajustamento já praticadas na  Europa do Sul.

Em seguida, todo o resgate deverá ser feito no quadro de uma operação de “esterilização”. De facto, o BCE  não quer aumentar  a quantidade de dinheiro em circulação no mercado. Por outras palavras, sempre que ele vai injectar dinheiro em títulos públicos,  ele deslocará títulos privados  que serão vendidos nos mercados [para que com esse dinheiro obtido possa fazer o respectivo resgate] . Assim, temos um mecanismo que irá aliviar os Estados, mas que vai endurecer a questão da liquidez que circula no sector privado, ou seja, vai endurecer as condições de acesso ao crédito para as empresas.

Chegamos assim, portanto, ao terceiro ponto: tudo isso implica que as amortizações da dívida, ao contrário do que disse o Senhor Draghi, não são ilimitadas. Porque  o montante de títulos a comprar pelo BCE será estritamente limitado  pela quantidade de dívida privada que detém hoje e que pode vender.

Quarto ponto: o BCE apenas redimirá títulos com uma maturidade de um a três anos. A consequência será o incentivo para o país reduzir o prazo de vencimento da sua dívida. Tomemos o exemplo francês. Hoje, o tempo médio de maturidade da dívida francesa é de 7 anos. O montante de 1 600 mil milhões de dívida deve ser renovado em cada sete anos. Nós, portanto, para o rol over  da  dívida temos uma emissão de  títulos na ordem de 220 a 240 mil milhões por ano. No entanto, se quisermos um dia beneficiar  da facilidade que o BCE acaba de criar devemos  parar  a emissão de títulos do tesouro a  dez anos para vender títulos  entre 1 e 3 anos. Isso iria encurtar o tempo médio. Ele poderia, por exemplo, passar de sete para quatro anos. Portanto, nós passaríamos a ter que levantar anualmente nos  mercados,  não os  220 mil milhões como agora  mas sim 400  mil milhões de euros. Esta é uma medida perfeitamente perversa, que vai aumentar as necessidades instantâneas de liquidez, quando o que se pretende é aliviar a pressão dos mercados.

Draghi também disse que iria comprar virado de costas no mercado secundário. O que isso significa, o que é que implica?

É simples: os bancos privados deverão  comprar títulos públicos  e, em seguida, revendê-los ao BCE.  Haverá, portanto, uma cotação para estes títulos. Ser-lhes-á aplicada uma taxa de juro. Finalmente, este mecanismo impedirá a subida das taxas para valores muito altos, mas em nenhuma circunstância os irá reduzir.

Nós estamos pois muito longe do que foi dito pela imprensa. A acreditar pelo que foi escrito penso que possivelmente muitos jornalistas não leram sequer o comunicado final do BCE, ou não entenderam ou não quiseram entender  … Mas a diferença é flagrante entre a realidade do texto publicado por Frankfurt e a interpretação que foi feita é bem enorme!

O conceito de “esterilização” foi usado pelo BCE para testemunhar a sua vontade de não deixar crescer a massa monetária. Presume-se que é para evitar a inflação. Se tal  é o caso, não será  então  uma coisa boa, dado  o estado do poder aquisitivo da população?

Mas toda a questão é de se saber se a inflação está realmente e em todo os casos ligada ao  aumento da oferta de moeda.  De todo, esta ligação pressuposta não é nada evidente.

Mas foi assim em certos casos. Penso naturalmente no caso da Alemanha em  1923-24. É importante lembrar as condições da altura: a Alemanha não pagava as suas dívidas do Tratado de Versalhes. A França, a Itália e a Bélgica decidiram ocupar o Ruhr. Os trabalhadores de Ruhr lançaram  uma greve geral. O governo alemão decidiu pagar os seus salários. Desta forma substituía-se  ao  sector privado e, por isso,  aumenta as suas despesas, mas sem que receba impostos do Rhur  porque este está ocupado  e a colecta de impostos fica bloqueada  pelas potências ocupantes.  Daqui resulta um défice  de 20 a 25% por ano. Este último foi monetizado, resultando em inflação. Vê assim que se trata de uma situação excepcional .

Exemplos desse tipo são encontrados noutros lugares. E em cada um deles, vemos que a ligação entre a inflação e a criação de dinheiro está ligada a circunstâncias muito específicas.

Por outro lado, considere o caso de uma economia em depressão, como é o caso neste momento, a zona  euro. Nesta economia,  em que se está muito longe do pleno emprego dos  seus factores, um aumento da oferta de moeda não provocaria nenhuma inflação. Poder-se-ia mesmo aumentar a oferta de dinheiro em 10% ao ano sem termos preços mais elevados. Acreditar  que o aumento da quantidade de moeda  irá sempre  gerar inflação tem sobretudo a ver com o dogma.   Esse dogma foi imposto pelo Bundesbank a Mário Draghi. Finalmente, o anúncio de Draghi é sobretudo uma capitulação em campo aberto face ao Bundesbank…Este último faz aceitar todas as suas exigências.

(continua)

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