Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
Jacques Sapir : “O anúncio de Mario Draghi é uma capitulação em campo aberto”
Parte I
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Jacques Sapir é economista e director de estudos em l’EHESS
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Na quinta-feira passada, o Banco Central Europeu anunciou que iria resgatar “sem limite” uma série de obrigações (de um a três anos) de países em dificuldade pertencentes à zona euro. Esta decisão foi saudada como decisiva. O que acha disso?
A minha apreciação não é muito positiva. A declaração feita por Mario Draghi foi calorosamente saudada na imprensa. Mas quando ler o seu comunicado de imprensa – extremamente preciso -publicado pelo BCE, vai notar várias coisas.
Em primeiro lugar, o BCE está empenhado em fazer resgates aos países que o solicitem. Não há aqui questão de poderem intervir a menos que haja um pedido expresso desse país, pedido este que implica que o país vai passar sob as forças caudinas dos programas ditos de “ajustamento estrutural”, via o FEEF (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira) ou via o futuro MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade ). O resgate de títulos da dívida será feito nas condições aí impostas. É importante sublinhá-lo: isto significará reforçar as políticas de ajustamento já praticadas na Europa do Sul.
Em seguida, todo o resgate deverá ser feito no quadro de uma operação de “esterilização”. De facto, o BCE não quer aumentar a quantidade de dinheiro em circulação no mercado. Por outras palavras, sempre que ele vai injectar dinheiro em títulos públicos, ele deslocará títulos privados que serão vendidos nos mercados [para que com esse dinheiro obtido possa fazer o respectivo resgate] . Assim, temos um mecanismo que irá aliviar os Estados, mas que vai endurecer a questão da liquidez que circula no sector privado, ou seja, vai endurecer as condições de acesso ao crédito para as empresas.
Chegamos assim, portanto, ao terceiro ponto: tudo isso implica que as amortizações da dívida, ao contrário do que disse o Senhor Draghi, não são ilimitadas. Porque o montante de títulos a comprar pelo BCE será estritamente limitado pela quantidade de dívida privada que detém hoje e que pode vender.
Quarto ponto: o BCE apenas redimirá títulos com uma maturidade de um a três anos. A consequência será o incentivo para o país reduzir o prazo de vencimento da sua dívida. Tomemos o exemplo francês. Hoje, o tempo médio de maturidade da dívida francesa é de 7 anos. O montante de 1 600 mil milhões de dívida deve ser renovado em cada sete anos. Nós, portanto, para o rol over da dívida temos uma emissão de títulos na ordem de 220 a 240 mil milhões por ano. No entanto, se quisermos um dia beneficiar da facilidade que o BCE acaba de criar devemos parar a emissão de títulos do tesouro a dez anos para vender títulos entre 1 e 3 anos. Isso iria encurtar o tempo médio. Ele poderia, por exemplo, passar de sete para quatro anos. Portanto, nós passaríamos a ter que levantar anualmente nos mercados, não os 220 mil milhões como agora mas sim 400 mil milhões de euros. Esta é uma medida perfeitamente perversa, que vai aumentar as necessidades instantâneas de liquidez, quando o que se pretende é aliviar a pressão dos mercados.
Draghi também disse que iria comprar virado de costas no mercado secundário. O que isso significa, o que é que implica?
É simples: os bancos privados deverão comprar títulos públicos e, em seguida, revendê-los ao BCE. Haverá, portanto, uma cotação para estes títulos. Ser-lhes-á aplicada uma taxa de juro. Finalmente, este mecanismo impedirá a subida das taxas para valores muito altos, mas em nenhuma circunstância os irá reduzir.
Nós estamos pois muito longe do que foi dito pela imprensa. A acreditar pelo que foi escrito penso que possivelmente muitos jornalistas não leram sequer o comunicado final do BCE, ou não entenderam ou não quiseram entender … Mas a diferença é flagrante entre a realidade do texto publicado por Frankfurt e a interpretação que foi feita é bem enorme!
O conceito de “esterilização” foi usado pelo BCE para testemunhar a sua vontade de não deixar crescer a massa monetária. Presume-se que é para evitar a inflação. Se tal é o caso, não será então uma coisa boa, dado o estado do poder aquisitivo da população?
Mas toda a questão é de se saber se a inflação está realmente e em todo os casos ligada ao aumento da oferta de moeda. De todo, esta ligação pressuposta não é nada evidente.
Mas foi assim em certos casos. Penso naturalmente no caso da Alemanha em 1923-24. É importante lembrar as condições da altura: a Alemanha não pagava as suas dívidas do Tratado de Versalhes. A França, a Itália e a Bélgica decidiram ocupar o Ruhr. Os trabalhadores de Ruhr lançaram uma greve geral. O governo alemão decidiu pagar os seus salários. Desta forma substituía-se ao sector privado e, por isso, aumenta as suas despesas, mas sem que receba impostos do Rhur porque este está ocupado e a colecta de impostos fica bloqueada pelas potências ocupantes. Daqui resulta um défice de 20 a 25% por ano. Este último foi monetizado, resultando em inflação. Vê assim que se trata de uma situação excepcional .
Exemplos desse tipo são encontrados noutros lugares. E em cada um deles, vemos que a ligação entre a inflação e a criação de dinheiro está ligada a circunstâncias muito específicas.
Por outro lado, considere o caso de uma economia em depressão, como é o caso neste momento, a zona euro. Nesta economia, em que se está muito longe do pleno emprego dos seus factores, um aumento da oferta de moeda não provocaria nenhuma inflação. Poder-se-ia mesmo aumentar a oferta de dinheiro em 10% ao ano sem termos preços mais elevados. Acreditar que o aumento da quantidade de moeda irá sempre gerar inflação tem sobretudo a ver com o dogma. Esse dogma foi imposto pelo Bundesbank a Mário Draghi. Finalmente, o anúncio de Draghi é sobretudo uma capitulação em campo aberto face ao Bundesbank…Este último faz aceitar todas as suas exigências.