OS INTELECTUAIS E A UNIÃO HISPÂNICA – por Carlos Loures

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ESPANHA, EXISTE?

A ideia de integrar as nações peninsulares num só estado vem da Idade Média. Afonso Raimundes, primo de Afonso Henriques, já na qualidade de Afonso VII de Leão e Castela, autoproclamou-se imperador da Hispânia em 1135 – uma fantasia, pois uma parte importante do território estava em mãos islâmicas. E da parte cristã sairam o Reino de Portugal e a Coroa de Aragão. Mas, sob diferentes formas, a ideia surgiu em várias cabeças nos séculos seguintes. E não só em cabeças castelhanas – Afonso V, ao desposar Joana a Beltraneja (em Portugal, a excelente Senhora), enfrentou militarmente a recém-formada união castelhano-aragonesa dos Reis Católicos e ostentou nos seus títulos a fórmula «D. Afonso, per graça de Deus Rei de Castela e de León, de Portugal e de Toledo e de Galiza e de Sevilha e de Córdova e de Múrcia e de Jaen e dos Algarves daquém e dalém-mar em África e da Aljazira e de Gibraltar e Senhor de Biscaia e de Molina». Seu filho João II, ao casar o Infante D. Afonso com a filha dos Reis Católicos, visava colocar a Península sob hegemonia portuguesa – projecto falhado pela morte (acidental?) do infante. E João II terá, em carta de que me falou um professor da Universidade de Barcelona, censurado os primos pelo abuso de chamarem Espanha a uma parte da Península.

Não quero deter-me em questões remotas e dou um salto para a conhecida citação de Marcelino Menéndez Pelayo: “El nombre de España, que hoy abusivamente aplicamos al reino unido de Castilla, Aragón y Navarra, es un nombre de región, un nombre geográfico, y Portugal es y será tierra española, aunque permanezca independiente por edades infinitas». A censura feita pelo Príncipe Perfeito é quatro séculos depois repetida pelo erudito asturiano.

Escritores e intelectuais das diversas nacionalidades peninsulares se pronunciaram sobre uma possível união ibérica. Os nomes são sonantes – Antero de Quental, Miguel de Unamuno, Teixeira de Pascoaes, Joan Maragall…  Não é possível fazer aqui um levantamento, mesmo sumário, dessas intervenções de intelectuais num tema essencialmente político. Se analisarmos os projectos que têm surgido, aparecem como soluções políticas globais para problemas nacionais. Para catalães, bascos e galegos seria uma forma de diluir a sua submissão a Madrid. Para os portugueses do século XIX, foi uma utopia interessante – a maneira de ultrapassar a pequenez do país, integrando-o num estado de grande dimensão na escala europeia. Na segunda metade do século XX, surgia como uma forma de unir esforços contra o derrube das ditaduras que dominavam os dois estados

A versão pioneira na idade contemporânea veio de um andaluz – José Marchena y Ruíz de Cueto (1768-1821) – que no seu Aviso al pueblo español (1792), propôs uma federação ibérica e republicana. Outro pioneiro, foi o general catalão Joan Prim i Prats (1814-1870), que concebeu um modelo federal para Portugal e Espanha. Morto num atentado, foi a sua concepção de organização do Estado adoptada na Primeira República, proclamada em 1873. Na Catalunha, a ideia da federação colheu adeptos, destacando-se o grande poeta e filósofo Joan Maragall, o lusófilo Ignasi Ribera i Rovira, Francesc Pi i Margall , presidente da Primeira República Espanhola, em 1873.

Como disse, já na segunda metade do século XX,, portugueses como Miguel Torga, Fernando Lopes-Graça, Natália Correia, António Lobo Antunes, Boaventura de Sousa Santos, Eduardo Lourenço, José Saramago, entre outros, têm manifestado a sua simpatia por essa união que, olhando para o mapa da Europa, faz sentido. Falamos de uma união política, para concretização da qual seria necessário articular instrumentos constitucionais, limar arestas culturais, varrer preconceitos e desconfianças mútuos. Em 1963, referindo-se às fronteiras peninsulares, o escritor catalão Agustì Calvet i Pasqual, que assinava os trabalhos jornalísticos como Gaziel, escrevia no La Vanguardia, também de Barcelona, que «Poucas vezes a insensatez humana terá estabelecido uma divisão mais falsa» (…) «Nem a geografia, nem a etnografia nem a economia justificam esta brutal mutilação de um território único». Por essa época, um grupo de escritores peninsulares e latino-americanos, criou o Círculo de Cultura Íbero-Americano. Nesse grupo avultava o nome do escritor catalão Fèlix Cucurull – Egito Gonçalves, Eduardo Guerra Carneiro, Llorenç Vidal, eu próprio. Como era costume, a edição servia de manto diáfano à intenção política. Iniciativa de vida curta. Em Portugal, a PIDE prendeu o elemento que centralizava as actividades. Mas recordo-me que o nosso projecto iberista, apenas contemplava três nações – Portugal, Catalunha e Espanha. Mas há visões mais redutoras.

Os intelectuais portugueses têm, de uma forma geral, dissertado sobre a hipótese federal numa perspectiva em que a cultura portuguesa e a espanhola são povoadoras únicas de um espaço onde as nações subjugadas são consideradas províncias e os respectivos idiomas dialectos. Ou seja, veiculam o estereotipo que o centralismo castelhano sempre quis impor como verdade. Natália Correia, em Somos Todos Hispanos, não colocando a questão do iberismo, fala de ibericidade e diz: «Em cada grão de literatura ibérica vibram a impulsiva permuta de duas culturas que têm as raízes enterradas no coração de um antiquíssimo e futuro tempo». No fundo Natália projectou na Península a realidade da América Latina onde a paleta idiomática se joga com duas cores. É uma bonita frase que encerra um conceito, quanto a mim, errado. A visão, mais comum de uma península a três – Portugal, Espanha e Catalunha, que vem do século XIX trazida por intelectuais como Joan Maragall e Teixeira de Pascoais, é redutora, mas a de Natália é-o ainda mais, pois aceita como válida a versão castelhana que já Ana de Castro Osório recusara, ao dizer: « Catalunha, Castela, Portugal…Quem pudesse dar-lhes a autonomia que ambicionam os catalães e sem a qual hão-de estar sempre vexados e com razão!»

Teófilo Braga planificou uma Federação Ibérica – Espanha passaria a ser uma República,. Lisboa seria a capital da federação… A ideia das três entidades – Portugal, Castela e Catalunha, esquecendo a Galiza e o País Basco, enformava quase todas as teses iberistas do princípio do século XX, incluindo as de Unamuno, Ribera i Rovira, Maragall, Antero e Teófilo Braga. E nos anos 60, o grupo de que fiz parte também não ia mais longe. A ideia prevalecente era a de uma Federação de estados autónomos em quase todos os aspectos, com centros de decisão comuns – a política externa, por exemplo.

Classifiquei como redutor, o projecto da federação a três e o da união pura e simples dos dois estados. Mas há a hipótese espanholista, segundo a qual a união está feita. Só falta Portugal entrar. Pérez-Reverte e Saramago coincidiam na vantagem de Portugal se integrar no estado espanhol – o nosso Nobel foi ao ponto de especificar que deveríamos ser mais uma comunidade autonómica.

Numa altura em que o governo de Madrid, está a incrementar as campanhas de espanholização das nações que no interior do Estado espanhol possuem culturas próprias, idiomas diferenciados, faz todo o sentido colocar a questão da viabilidade de um Estado de cujas contradições só não se apercebem os defensores do Estado espanhol tal como está.

Na minha opinião e respondendo à pergunta que serve de tema a esta edição, digo – «Espanha existe!» Como todos os estados, começou por ser uma ideia fantasiosa, como a de Afonso VII Imperator totius Hispaniæ. Hoje Espanha existe. Sobretudo pela sua  cultura, pelos grandes poetas, pintores, pelos seus pensadores. Porém,  monarquia caduca – como todas as outras, despojos de uma Europa decadente e passadista, continua a ser um reino fantasioso, uma grande potência na imaginação dos espanholistas. Para existir plenamente deveria  deixar de ter colónias no seu interior. Quem oprime, não é livre.

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