NOVAS VIAGENS NA MINHA TERRA – Série II – Capítulo 81 – por Manuela Degerine

 A Casa da Achada, Centro Mário Dionísio, é um espaço onde não só podemos consultar o espólio literário e artístico deste criador, mas também requisitar livros, ver filmes e exposições, participar em colóquios, encontros e debates. Esta figura da cultura portuguesa é agora estudada em seis conferências de Maria Alzira Seixo, uma por mês para permitir ao público a (re)leitura dos textos.

A primeira conferência foi construída a partir da “Autobiografia” publicada em 1987. Havia na sala o ambiente de sociedade secreta que hoje em dia sentimos em quase tudo quanto está relacionado com o livro e a leitura, trinta pessoas que não perdiam uma palavra nem um silêncio, pois assistiam ao choque não de dois Titãs da cultura portuguesa do século XX – Mário Dionísio teria rejeitado a hipérbole, nem sequer por modéstia, só por lhe parecer inadequada – mas de dois seres para quem a literatura representou, tem representado no caso de Maria Alzira Seixo, um modo de ser, sentir e agir no mundo.

Maria Alzira Seixo começa por declarar que não gosta de autobiografias, não lhe interessam as infâncias, as peripécias… Uma figura retórica. (Digamos… Uma litote.) Logo confessa que, quando pega nesta Autobiografia, não consegue interromper a leitura. Fala do estilo, fala da imaginação, fala do contexto biográfico, fala da época em que Mário Dionísio viveu. Procede portanto à definição do que é uma autobiografia: um texto literário no qual – de maneira singular – estas quatro dimensões se combinam. (Eu acrescentaria o quinto ingrediente: uma memória subjetiva.)

Maria Alzira Seixo traça a figura de Mário Dionísio sublinhando mais esta ou aquela faceta em função – decerto – do que pretende tratar nas próximas conferências:

A criação: poesia, conto, romance e pintura.

A reflexão: crítica – as “Fichas”; ensaio – “A Paleta e o Mundo”; “Autobiografia”.

A relação com o mundo: pedagogia, ação política, busca da liberdade, construção de um homem novo…

O rigor. Rigor moral e rigor no trabalho. A exigência. Cita: “Ninguém imaginará (senão os do mesmo ofício e com tineta igual) o trabalho que sempre me deu o mais pequeno escrito. Chega a ser doentio, convenho. Creio que a minha filha mo critica sem que me diga nada. E não só ela. Impossível libertar-me das exigências do ritmo da frase, integrado num ritmo mais vasto, o do parágrafo (real ou dissimulado) e noutro, mais vasto ainda, o da página inteira. O ritmo, não só (não bem) sequência ordenada de movimentos lentos e rápidos por uma alternância do agudo e do grave, como queria Platão, mas dinâmica interna da frase de tal modo fixada que a pronúncia facilmente flua, sem choques nem atropelos, conservando contudo alternâncias e surpresas que dão a vida ao discurso e o personalizam. Às vezes tudo se resolve com a deslocação duma palavra, dum sintagma, é um jogo vulgar, qualquer principiante se desembaraça dele. Mas, outras, fia mais fino. Tem de se ir à pesca de palavras com um número de sílabas diferente, a mesma ou outra acentuação, pois até isso conta. Sinónimos, sim, recurso pobre. Mais vale desistir. Mas desistir do que tanto põe à prova a nossa capacidade de?

Nunca nada está bem. Nunca é ainda aquilo. Acabo por entregar os originais contrariado, desiludido comigo. O detestável perfeccionismo, enfim.” (“Autobiografia”, edições “O Jornal”, Lisboa, 1987, pp. 62-63)

 No mundo de zapping, textos apressados e aparências globais em que vivemos, a obra de Mário Dionísio ganha uma pertinência ainda mais aguda. Tornou-se mais necessária. Por este perfeccionismo. Pela indomável busca de liberdade (“RTP, essa cabeça perigosa, que também pensa por “milhões de cérebros”, “Autobiografia”, p. 64.). Pela consciência trágica… E pela teimosia com que a ela resiste: “Não desanimes, não desistas, não te perturbes com a indiferença dos outros, não te entusiasmes com os aplausos dos outros… Escreve! Escreve!” (“Autobiografia”, pp. 72-73).

(E como por acaso… Encontro no fim da conferência dois membros de um grupo que cada mês se reúne na biblioteca de S. Domingos de Rana para falar de um livro. O do mês de fevereiro será… Viagens na Minha Terra. Criaram um blogue: “Com olhos de ler”.)

Quanto ao volume “Autobiografia” de Mário Dionísio… Pode ser comprado na Casa da Achada pelo preço razoável de dois euros. É uma leitura prioritária.