CASSIANO PENA DE ABREU E LIMA FALA SOBRE ADÃO CRUZ

Imagem1 Continuamos hoje a série que ontem iniciámos, com Vergílio Ferreira a falar  sobre Vasco de Castro. Hoje, o Professor Doutor Cassiano Pena de Abreu e Lima, Presidente Honorário da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, fala sobre Adão Cruz – sobre o amigo e colega de curso, sobre o poeta e sobre o pintor.

Adão Cruz – Médico, pintor, poeta e muito maisImagem1

Adão Cruz é senhor de múltiplos talentos que dão à sua maneira de estar na vida, a singularidade e o encanto que suscitam nos outros admiração e simpatia matizadas, por vezes, duma pontinha de inveja.

É cardiologista de primeira água, mas só enveredou por esta especialidade depois de recolher largos créditos de competência e dedicação ao ofício e aos doentes, a clinicar por todo o Concelho de Vale de Cambra, até às acritudes da Serra da Freita trazendo à luz crianças, lancetando fleimões, aliviando retenções urinárias, em prática de amodernado João Semana que então – meados da década de 60 – ainda reclamava inexcedível empenhamento, entusiasmo, sacrifício e entrega: no fundo, uma forma, como tantas, de responsabilidade social e compromisso cívico.

Esta actividade foi interpolada pelo serviço militar na Guiné, onde sublimou as amarguras duma guerra que lhe feria a inteligência e o sentir, na entrega à mesma responsabilidade perante a vida, ao mesmo compromisso de esguardo pelo outro, vivíssima experiência de que nos deu testemunho no belo e tocante livro de contos, que publicou há uma quinzena de anos atrás, ilustrado pelo seu não menos talentoso filho Manel, cujo título é pendão de amizade: Vem comigo comer amendoins. Dele diz-nos no prefácio: … Vestido de ausências, fui renascendo de amor nos infinitos da fantasia que outros mataram com fruído prazer. Por isso este livro. Este dizer de negros e brancos e brancos e negros. Uma mão-cheia de histórias de lá e de cá, uma mão-cheia de coisas simples. … (citei)

Depois, a carreira hospitalar – do internato geral à especialidade – no hospital de Santo António, onde veio a permanecer largos anos como cardiologista do respectivo quadro, tendo daí transitado em comissão de serviço para o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, onde se encontrava à data em que se aposentou do serviço do Estado.

Fomos colegas no curso médico da Universidade do Porto concluído há perto de meio século (dito assim, a época nossa formatura parece ainda mais arcaica) mas conhecemo-nos desde os tempos do ensino secundário que ele frequentou em parte no colégio de Oliveira de Azeméis e eu no Alexandre Herculano do Porto, liceu onde fizemos em conjunto exames do 2º e do 3º ciclo. Mas foi a partir de fins de 1984 que nos aproximamos mais, quando juntamente com Duarte Correia constituímos uma sociedade médica para a execução de ecocardiogramas – área em que o Adão foi pioneiro no País e em que adquiriu enorme proficiência – e construímos os três, uma forte e perdurável amizade.

Essa amizade, amassada num convívio profissional e não só, de dezena e meia de anos que nem o mais ténue conflito poluiu, deu-me do Adão um conhecimento mais fundo, na descoberta de outros estimáveis primores que compõem a sua multifacetada personalidade, para além do apuro profissional, apuro este – deixem-me acrescentar en passant – que só a prática responsável, o estudo constante e o constante aperfeiçoamento científico e técnico, em estágios, congressos e cursos dentro e fora do País, que sempre foram preocupação sua, podem garantir.

Eis alguns desses atributos:

O humanismo – isto é, a concepção humanista do homem como valor supremo – que é fio condutor não só no modo como sempre encarou a profissão, mas também na vivacidade com que defende opiniões fortes na imprensa, na internet – num blogue em que regularmente colabora – ou em diálogos informais com amigos e conhecidos, onde não recua perante temas difíceis ou incómodos. Ou seja: não é apenas através do exercício empenhado e competente da sua profissão de médico que intervém na vida cívica, mas também pelo uso público da palavra que não se coíbe de tomar quando a consciência ou a indignação lho pedem. Mas o mesmo humanismo, este mesmo posicionamento filosófico, perpassa nos seus poemas, nos seus quadros, onde o homem é a presença dominante.

A amizade: esse superior afecto pelo outro, tão arredio do sentimento de poder e superioridade, que se fortalece mais no dar com prodigalidade do que no receber, que se nutre da bondade, da comiseração, da vivência conjunta de bons e maus momentos e que só nas almas boas, nos espíritos bem formados, floresce.

A bondade, essa natural predisposição para o bem do outro, para a benevolência no julgar.

A sensibilidade estética e a procura incessante do belo que este livro e outros que o antecederam, as inúmeras exposições dos seus quadros e as incontáveis horas de labor que dedica a essa insatisfazível busca, bem testemunham. Mas a procura do bom, também: indagação sem fim da inatingível perfeição, própria dos espíritos ambiciosos e insatisfeitos, que o seu percurso na vida tão bem documenta. Na carreira profissional e não só, pois bem se expressa na sua pintura (a que já iremos) e num seu outro – e de muitos ignorado – talento: a Ars Culinaria, em que o prosaísmo da simples alimentação se sublima em festivais de belo e de bom – aqui no seu mais sápido significado – arte que cultiva com esmeros de cordon bleu, para o prazer dos olhos e do palato dos seus muitos amigos.

Mas deixem-me, para terminar, tecer breves e despretensiosas considerações à pintura de Adão Cruz.

É uma pintura cada vez mais luminosa em que forma e emoção se fundem num todo harmonioso e sereno, avivado pelo emprego frequente das cores primárias. Quem como eu acompanhou o seu percurso, não pode deixar de notar o aperfeiçoamento oficinal ao serviço de uma expressividade cada vez mais rica e cativante. Por ela perpassa um tom elegíaco, plangente a que, todavia, a luminosidade que exala, tão colorida transmite uma esperançosa confiança no porvir.

Termino com a projecção de uma das pinturas de entre o belo conjunto de obras que o livro nos traz: a que o autor seleccionou para a capa.

L’ Étreinte – a tão eloquente expressão francesa para o acto do amor – é tema de que muitos artistas se serviram na pintura, na escultura, na gravura, no desenho dando-lhe precisamente esse título, ou por vezes outro de mais contida sensualidade: O Beijo.

Entre muitos desses artistas, recordo Rodin, Klimt, Picasso.

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