CHAMARAM-LHE PORTUGAL – 29 – por José Brandão

A legislação de 70-71 demonstra bem o carácter agudo a que a crise chegara, e o pensamento que havia para resolver. Era um recrudescimento de tirania no reino, e um relaxamento do poder no Ultramar. A Índia já se não mantinha fechada aos ingleses e holandeses, que navegavam, impunemente, nos seus mares: legislou-se, portanto, a franquia da navegação. Mas era mister reconstituir as forças navais e militares do reino, era mister paralisar a corrente pavorosa da desorganização.

O novo reinado acentuava-se como uma renascença; mas nem o rei, nem os seus conselheiros, a viam na reorganização das instituições, mas sim numa aventura famosa. Assim, as longas leis militares coloniais, marítimas, empalidecem na importância e no alcance, como impotentes para travar a roda das desgraças e para acalmar o delírio do monarca. Outro tanto sucede aos regulamentos e pragmáticas, incapazes de moralizar uma sociedade corrompida, mas reveladores do estado dos costumes. Condenam-se os hereges e também os sodomitas. Que a usura lavrava desenfreada, vê-se da lei dos «câmbios, onzenas e trapaças», que, na sua dureza, manifesta o desvario do vício. A facilidade com que se havia dinheiro a juro era uma das origens do luxo desmoralizador. Proíbem-se pois, os empréstimos a prémio sob penas cruéis; perda do capital à primeira, perda de metade de todos os bens à segunda, confisco geral e degredo para o Brasil à terceira. Quando a lei ataca de tal modo os direitos da liberdade individual, a sociedade agoniza. A ociosidade, a vadiagem eram tão perseguidas como a usura; o luxo dos trajes, das mobílias, dos manjares merecia uma lei meticulosa e indiscreta.

O espírito do governo reagia, protestando contra a tradição manuelina da opulência, regressando às doutrinas espartanas do tempo de D. João II. Ninguém poderia gastar mais do que a renda que tivesse; ninguém ter à mesa mais do que «um assado, um cozido e um picado». A importação de tapeçarias era vedada; e ordenada a moderação do dotar. Nos quartos não haveria, nem dosséis, nem camas, nem cadeiras de brocado, nem de tela de ouro ou prata, nem de rás, nem de seda alguma, nem dourados ou pinturas a óleo; nos fatos apenas o gibão seria de seda com um pesponto simples de retrós, sem alamares nem bordaduras.

A legislação, porém, nada podia contra a tendência dos costumes. O luxo e o desvairamento tinham maior força do que as leis. Condenavam-se já francamente a Índia e as podridões que trouxera ao reino — conforme se vê n’Os Lusíadas — e a opinião regressava à política africana de D. Afonso V e D. João II. Nenhum moço fidalgo da casa do rei se acrescente a escudeiro ou cavaleiro sem ir a África. Podia a lei varrer assim as consequências tristes da viagem da Índia. Não podia. O desvairamento que ela trouxera à sociedade via-se, como um símbolo, na cabeça do moço rei. A África seduzia-o; mas não tinha planos políticos, nem prudência, nem conselho, nem paciência, para ir lentamente corrigindo, encaminhando a nação. Um grande milagre, ou uma grande catástrofe, qualquer coisa extravagante e nunca vista, eis aí o seu desejo, a sua ambição.

Essa quimera dava-lhe uma arrogância inaudita. Tinha, decerto, o génio de um herói, mas nascera no meio de um paul de rãs. Foi o Nuno Alvares da perdição. Mas essa catástrofe inevitável, cujas causas punham todos os seus defeitos no génio do rei, tornou-a ele, ao menos, trágica; levantando, com a sua morte, uma esperança querida, um símbolo, como uma cruz; e encerrando, com uma temeridade infeliz, a grande era da vida de Portugal, que começara pelas temeridades afortunadas do infante D. Henrique.

Tanto o rei percebia a solidariedade que o ligava aos seus antepassados, que, à maneira dos heróis, quis vê-los de perto e examiná-los, antes de partir para a sua empresa. Diante do cadáver de Pedro I tem cóleras contra a fraqueza do amante; e D. Afonso III, conquistador do Algarve, merece-lhe aplausos. Foi à Batalha, para ver e adorar D. João II; e mandou-o tirar do caixão, erguer de pé, com a espada em punho. Reverente e orgulhoso, saudou com admiração o avô — o predecessor, porque ele estava certo de lhe continuar as façanhas!

Esta certeza dava-lhe ironias, gargalhadas e escárnios contra a prudência dos conselheiros, graves e encanecidos nos negócios, que bem mediam a distância dos tempos e as consequências fatais da projectada conquista de Africa. Mãos anónimas iam depor trovas e conselhos, amorosamente acusadores, sobre os poiais de pedra do paço de Almeirim, implorando ao rei que não aventurasse tudo numa empresa desvairada. Jerónimo Osório, o latinista, escrevia-lhe memorando as desgraças consequentes da sua aventura: «Não falo nos juros que a fidalguia tem vendido, nas jóias empenhadas, nas lágrimas das mulheres, na pobreza da gente nobre, na miséria dos que pouco podem». D. João Mascarenhas ousava dizer-lhe que, se se decidia a ir, levasse a mortalha, para enterrar o reino fora de sagrado. E o rei, parando-se a olhar o defensor de Dio, chamou-lhe, formais palavras, velho e tonto; e depois, insistindo, acrescentou: e covarde! — Martim Afonso de Sousa, que fora governador da Índia, onde se manchara em torpezas, não ousava advertir o rei, mas bradava pelas salas do paço que, se se atavam os loucos perigosos, não sabia porque se havia de deixar solto a este.

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