CHAMARAM-LHE PORTUGAL – 34 – por José Brandão

Intrigas e dissensões na corte — Exclusão do conde de Castelo Melhor

Na corte de D. Afonso VI faltava a elevação e gravidade que naturalmente derivam da autoridade de um monarca prestigioso. Procurando cada um aproveitar a incapacidade de el-rei em beneficio das próprias ambições, em breve se encontrou a corte envolvida numa atmosfera de intrigas e rivalidades de que nasciam incidentes desairosos. Não nos demoraremos a referi-los, porque os contemporâneos divergem nos pormenores, e não é possível reconstituir os factos em todo o seu significado, mas a lição geral que eles deixam é de rebaixamento indigno da corte.

A rainha vivia amargurada, por vezes a viram chorar. O marido, além de inútil, tratava-a com desabrimento impróprio da dignidade real. Diz um escritor da época: «A rainha se mostrava melancólica, dando a entender vivia violentada e desgostosa, tanto pelo pouco amor que el-rei lhe mostrava, como por algumas demasias com que o Castelo Melhor a tratava, segundo ela dizia.» Do secretário de Estado António de Sousa de Macedo também se conta que falou à rainha menos respeitosamente, «desestimação que tinha bebido no interior do conde» de Castelo Melhor.

Apesar do seu claro espírito, que nos últimos lances da guerra mostrara grandes qualidades de homem de governo, o conde de Castelo Melhor ou se deixou cegar pela vertigem do poder ilimitado ou não soube preservar-se da rede de intrigas que se tecia na corte. Como tinha inimigos, estes atribuíam-lhe a responsabilidade dos desatinos de el-rei e dos escândalos que eram do domínio público.

Em caso nenhum podia o infante D. Pedro desinteressar-se do mau caminho que levavam os negócios da corte; solicitavam a sua atenção as conveniências do reino, a defesa do prestígio da família e do seu próprio interesse pessoal, como herdeiro da Coroa. Era natural que tivesse má vontade ao conde de Castelo Melhor, que, com o seu poder ilimitado, mantinha o equívoco da fictícia autoridade de D. Afonso, sem dar remédio às quebras do prestígio real que escandalizavam toda a gente. Pela sua parte, o conde de Castelo Melhor não perdoaria ao infante o perigo de uma intervenção que o derribasse.

No princípio de Setembro de 1667 queixou-se o infante D. Pedro a el-rei de que o conde de Castelo Melhor atentava contra a vida dele, infante, e projectara dar-lhe veneno. Ou fosse intriga forjada, mera suspeita ou informação verdadeira, a queixa era formulada em termos enérgicos, e foi repetida quando no Conselho de Estado se pretendeu escurecer a importância do caso. Divulgando-se a notícia da queixa e do objecto dela, engrossou a corrente de ódios que entre nobres e populares havia contra o conde. Finalmente, não podendo el-rei sustentar o valido, em 9 de Setembro de 1667, à noite, chamou-o e disse-lhe que se retirasse da corte, aguardando melhores dias. O mais breve que pôde preparou o conde de Castelo Melhor a sua viagem; no dia 11, às duas horas depois da meia-noite, saiu para Torres Vedras, e recolheu-se em um mosteiro de arrábidos, situado a meia légua daquela vila.

Com a retirada do conde não melhoraram os negócios, pois subsistia a causa principal da desorientação.

Pensou-se em convocar as cortes; neste sentido representou a Câmara de Lisboa, em 27 de Outubro de 1667, invocando motivos que não conhecemos, e parece que lhe seguiram o exemplo outras câmaras do reino. Muito urgente devia ser a necessidade de se reunirem as cortes, para que a câmara já em 10 de Novembro protestasse contra o facto de não terem sido ainda convocadas, e ameaçasse dar por levantadas todas as contribuições aplicadas à guerra, se até o dia 18 se não fizesse a convocação para dia certo. Perante a ameaça, el-rei cedeu; designou-se poucos dias depois o 1.º de Janeiro para a reunião das Cortes, ficando a el-rei o cuidado de mandar expedir as ordens costumadas. Tudo isto parece indicar que nas esferas do governo se não desejavam as cortes.

Explicar a atitude da Câmara de Lisboa e muitas outras manifestações de desagrado e impaciência, atribuindo-as a intrigas do infante D. Pedro, é cómodo e fácil, mas os factos foram demonstrando, e cada vez mais claramente, que havia uma onda de descontentamento e quase desespero em todas as camadas sociais.

Entrada da rainha no Convento da Esperança — Desistência do governo feita por el-rei

Enojada a infeliz rainha de tantos opróbrios, e esgotada a paciência daquele odioso engano a que a trouxeram de França, decidiu-se a pedir em juízo a anulação do matrimónio, com fundamento na impotência de el-rei. Já isto se dizia na corte, quando, a 21 de Novembro de 1667, saiu do paço acompanhada dos oficiais de sua casa e de algumas damas e dirigiu-se ao Convento da Esperança, de religiosas franciscanas. Tanto que entrou com as senhoras que a acompanhavam, mandou fechar a portaria e guardou as chaves. Ao seu mordomo-mor encarregou de levar a el-rei este recado escrito:

«Deixei a pátria, a casa, os parentes, e vendi minha fazenda por vir acompanhar a V. M. com desejo de o fazer muito à sua satisfação, e tendo sentido muito a desgraça de o não poder conseguir, por mais que o procurei, e obrigada da minha consciência, me resolvi em tornar para França nos navios de guerra que aqui chegaram: peço a V. M. me faça mercê de dar-me licença para isso e de me mandar entregar meu dote, pois que V. M. sabe muito bem que não estou casada com ele; e espero da grandeza de V. M. me mande fazer, assim entrega de meu dote, como em tudo o mais o favor que merece uma princesa estrangeira, e desamparada nestes reinos, e que veio buscar a V. M. de tão longe.»

Apenas recebeu o recado de D. Maria Francisca, partiu el-rei muito exaltado para o Convento da Esperança. Ali bateu furiosamente às portas e ordenou que lhas abrissem. Respondeu a abadessa que não tinha chaves, que estavam em poder da rainha. Chegava entretanto, com outras pessoas, o infante D. Pedro, e disse a el-rei que não profanasse a clausura, antes chamasse o provincial de S. Francisco, que obrigaria as religiosas a abrirem as portas. Veio o provincial, mas as portas não se abriram.

No dia 22, como veremos, enviou a rainha ao cabido, sede vacante, a petição da causa da nulidade de matrimónio.

Na manhã de 23, o marquês de Cascais entrou na câmara de el-rei, que ainda dormia, e fez-lhe um breve discurso, cujos termos não podem ser integralmente reproduzidos. Disse-lhe que el-rei, cheio de achaques e enfermidades, não era para ser homem casado, «e assim», continuou, «estais incapaz de terdes geração, razões todas pelas quais hão-de vir os procuradores das Cortes, e vos hão-de privar do reino, e dar o governo dele a vosso irmão; dizei que o fazeis por vossos achaques, tomai meu conselho, que é de amigo velho; fazei por vossa vontade o que vos hão-de fazer quatro marotos; dai o governo a vosso irmão, e que trate de se casar para dar sucessores à Casa Real, pois vós sois incapaz de os dardes, e ficais como estáveis até agora, governando o conde de Castelo Melhor, e muito airoso demitindo o governo por vossa vontade».

Convencido por estas palavras, el-rei declarou que queria executar o conselho imediatamente. Chamaram o infante D. Pedro e os conselheiros de Estado e assentou-se na fórmula por que D. Afonso VI fazia desistência do reino em favor de seu irmão D. Pedro e de seus legítimos descendentes.

A 24 publicou o infante um decreto em que sumariamente expunha as circunstâncias e declarava que, para evitar novos males, resolvera recolher a pessoa de el-rei, até que as cortes adoptassem os remédios que entendessem convenientes. As Cortes foram convocadas para o 1.º de Janeiro de 1668 e reuniram-se só no dia 27.

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