Um Café na Internet
1550, um fim de tarde. Numa taverna, junto ao cais de pedra de Alfama, em Lisboa, dois velhos marinheiros estão sempre a esgatanhar-se. Pedro “Má Fortuna”, o moreno, tange o alaúde e entoa, lamenta, geme:
– O São João já se afunda, foi por divina vontade…
Paulo “Tiro e Queda”, o de pele mais coada, interrompe, contesta:
– É falso! Carregados como íamos, foi por desleixo dos homens.
Está ensarilhado o confronto. Diz o primeiro: levávamos pimenta pouca. O segundo contradiz: a nau, de outras mercadorias, levava excesso de carga. Novo lamento: desígnios da Providência. Novo ataque: imprevidência dos homens, isso sim! Remata o Pedro “Má Fortuna”:
– Deus é quem sabe, Deus é quem pode, Deus é quem manda.
Contrapõe o Paulo “Tiro e Queda”:
– E se os homens entram em desmando, por acaso a culpa cabe a Deus? Tão chorão és tu que, sem dar por isso, até cais na impiedade…
Levanta-se, exalta-se, gesticula, berra:
– És deveras apoucado. Nem reparas que desmando, ou desleixo, é atulhar um galeão de fardaria em barda, que sobe no convés até à altura dos castelos; é fazer-se ao mar em lenho apodrecido e vem uma vaga forte e logo parte o leme em dois e leva uma das metades; é içar pano velho e roto e vem uma súbita rajada que o rasga todo. Querer comer um boi inteiro numa única refeição, esse é o desmando maior, cobiça dos nossos fidalgos que fazem a carreira da Índia, gula tão desmedida que morrem enfartados os comilões. Perdem-se e, por eles, com eles vamos nós à perdição. Saber não é crença, é querença de experimentar para avaliar melhor. O que te faz falta, ó meu chorão, é pontaria de tiro e queda…
Levanta-se também o Pedro “Má Fortuna”. Cada qual finca-se no seu terreno e gritam um com o outro, assanhados batem com as canecas na mesa, insultam-se, fideputa ruim, pagão, sáfio bargante, ímpio, homem rascão. Atracam-se para medir forças. Os mais novos, eu entre eles, tratamos de apartá-los. De lágrimas nos olhos, os dois velhos acabam porém por se abraçar. Bêbedos? Certamente, mas não apenas por vinho… Atravessaram juntos o mesmo e grande perigo; quer queiram ou não, apesar das fúrias breves e destemperos de linguagem, irmanados quedaram para sempre.
Sossegam, já sorriem do confronto. Mando vir outra canada de vinho, encho as três canecas.