NOVAS VIAGENS NA MINHA TERRA – Série II – Capítulo 93 – por Manuela Degerine

Em busca da obra perdida

Prosseguem na Casa da Achada as conferências de Maria Alzira Seixo sobre Mário Dionísio. Eu tinha lido na Faculdade de Letras O Dia Cinzento e diversos artigos sobre o neo-realismo todavia se, há seis meses, me interrogassem sobre figuras da cultura portuguesa do século XX, não teria pensado em Mário Dionísio. Porquê? Talvez por ele ser poeta, professor, crítico, contista, romancista, ensaísta, pintor… Aquilo a que o escritor alude em Autobiografia com um título sorridente: “começa a dispersão”. Tratando-se de uma personalidade com facetas múltiplas, podemos aproximar-nos de uma ignorando as outras – e ficarmos assim com uma imagem muito fragmentada. Mário Dionísio? O do neo-realismo? Li os artigos. Mário Dionísio? Ah, li uns contos… A esta complexidade que nunca corresponde à etiqueta associou-se uma independência que – é claro – não lhe permitiu usufruir de preferências, “é cá dos nossos”, ambas decerto explicam que as obras, quando publicadas, fossem pouco debatidas, comentadas, difundidas… Depois tudo se passa num país com apenas dez milhões de habitantes e, mesmo estes, sem hábitos de leitura, de livraria, de biblioteca, de reflexão… Ou, para sermos mais justos, digamos que poucos os têm.

 As conferências de Maria Alzira Seixo proporcionam portanto agora a descoberta desta figura essencial da cultura portuguesa. Li entretanto a Autobiografia; que comprei na Casa da Achada. Reli O Dia Cinzento e outros contos; que tinha em casa. Procurei as outras obras na biblioteca municipal da Penha de França, que não dispunha de nada porém, num depósito da biblioteca de Belém, encontraram A paleta e o mundo e Monólogo a duas vozes. Quanto ao livro de contos A morte não é para os outros, a bibliotecária, doutora Helena Pereira, teve a gentileza de me indicar onde pode ser lido em Portugal. Há um exemplar: na biblioteca municipal do Porto, na biblioteca da Faculdade de Letras do Porto, na biblioteca geral da Universidade de Coimbra, na biblioteca Tomás Ribeiro de Tondela, na biblioteca municipal de Elvas. E, claro: na Biblioteca Nacional de Lisboa.

Lembro aos leitores destas Novas Viagens que não estamos a falar das fábulas de D. Francisco Manuel de Melo mas de um livro publicado em 1988… Parece prodigioso que na cidade de Lisboa só seja possível lê-lo na Biblioteca Nacional (e, não nos esqueçamos: na Casa da Achada).

Mário Dionísio é o que em França se costuma chamar um intelectual. E os intelectuais são componentes essenciais da democracia, por serem especialistas que tomam posição, ajudam a pensar a língua, a cultura, a sociedade… Os direitos, a liberdade, o sentido da vida, a essência do tempo, o lugar do homem, a relação com os outros, as funções da arte… Não podemos ser especialistas de tudo, por isso precisamos dos intelectuais – sem nos sentirmos obrigados a concordar com eles. Os intelectuais orientam o nosso olhar, fornecem-nos a linguagem, ajudam-nos, digamos, a formular perguntas… Quanto menos intelectuais houver, menor a capacidade crítica da população.

Mário Dionísio dirigiu o nosso olhar para a relação entre a língua e a sociedade (em “O meu reino (se o tivesse) por um cavalo de pau”, um conto que faz parte de Monólogo a duas vozes, chega a ficcionalizar as formas de tratamento), para a representação, para os valores, as hierarquias, os privilégios, a ignorância, o egoísmo, a violência, a comunicação… O seu ponto de vista é-nos aqui e agora necessário.

Não obstante o desalento, muito repetido, pela falta de atenção, as obras – exemplares no rigor, na ética, na ironia, na subtileza, na exigência, na diversidade, na independência, na criatividade – foram escritas. Foram editadas. Mas não são lidas: desapareceram. Portugal é um pobre que tanto desperdiça… Se não fosse a dedicação de Eduarda Dionísio e da equipa que, através da Casa da Achada, se obstinam em suscitar a curiosidade, já não saberíamos que este escritor, que este pintor, que este crítico, que este ensaísta – que este intelectual – vive e pensa e continua a agitar o nosso mundo. Uma completa alegoria da cultura portuguesa…

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