A DESTRUIÇÃO DO ESTADO PROVIDÊNCIA – por Fernando Pereira Marques

Em 27 de Dezembro de 2010 publicámos no Estrolabio este artigo de Fernando Pereira Marques. Muito do que diz foi confirmado ou acentuado por estes anos que decorreram. 

1 – Com a conivência da esquerda socialista e social-democrata, de Terceiras Vias e semelhantes, Blair’s e Cª, a burocratização dos sindicatos e o eficaz sistema informativo-comunicacional de imbecilização dos povos, o capitalismo triunfante e ultraliberal, após um ciclo de lógica hiperconsumista e de predomínio da especulação financeira, acelerou a destruição do que resta do Estado-Providência, do modelo social construído sobre as ruínas e os massacres da II Guerra Mundial. Deste modo, e como era previsível, actualmente uma das causas da esquerda é defender esse modelo social, impedir a sua destruição completa. Evidentemente não como um ponto de chegada, mas como uma conquista de séculos de lutas que continua a ser um ponto de partida para formas mais humanas de organização política e social.

Permito-me assim transcrever uma passagem sobre o tema de um livro meu há tempos publicado: Esboço de um Programa para os Trabalhos das Novas Gerações (Campo das Letras, 2007)

2 – A imaginação fecunda dos gestores do sistema já conseguiu mesmo, prosseguindo a estratégia de desmantelamento do Estado-Providência, reprivatizar nalguns países o que o processo civilizacional e democratizador tinha tornado funções sociais e públicas, nas áreas da saúde, da segurança, da educação, da justiça. A doença, a dor, o sofrimento, o medo, a morte, a insegurança, a guerra, tudo é transaccionado e transaccionável. A fúria privatizadora de serviços de interesse geral atinge os transportes, o fornecimento de água e de electricidade, os correios, as cadeias, ou até as instituições educativas e militares; nada escapa a essa sanha que mesmo organismos internacionais, como o FMI, incentivam. Deste modo, corre-se o risco de retroceder à Idade Média e à venalidade dos cargos públicos, à desintegração do Estado em micro-poderes de tipo feudal, fomentadores de irracionalidade e de arbítrio .

A protecção dos mais pobres e mais desamparados – desempregados, idosos, crianças – passou a ser considerada excessivamente custosa e a precariedade tornou-se regra nas relações de trabalho. Porque, como se diz na novlíngua – parafraseando Orwell -do americanismo, o mundo mexe graças à dialéctica entre winners e losers, sem esquecer os survivers, categoria intermédia composta por aqueles que subsistem custe que custe e a qualquer preço.

O Estado democrático, submetido ao primado da Lei e com funcionários vinculados ao serviço público, vigiado e controlado pelos cidadãos no exercício dos seus direitos, liberdades e garantias, tendo à sua frente políticos legitimados pelo voto e exercendo mandatos transitórios, intervindo e agindo para estabelecer a racionalidade e a justiça, corresponde a uma etapa da evolução histórica e dela não se deve regredir. Isto não significa, evidentemente, que, na sua diversidade nacional, o Estado seja insusceptível de reforma e de permanente melhoramento, tendo em conta os anquilosamentos burocráticos e as derrapagens autoritárias, a intoxicação mediática e espectacular que o oculta, e outros mecanismos de condicionamento e de manipulação das liberdades que visam impor os interesses parcelares por sobre o interesse geral.

Porque o Estado, enquanto facto histórico-social e instrumento de dominação, não encarna em si o Bem ou a Razão, é, simplesmente, a expressão burocraticamente cristalizada de relações de forças. Nesta medida, não obstante diferenças, desigualdades e conflitos de interesses persistirem na sociedade, o processo civilizacional e democratizador criou instrumentos que permitem intervir através do Estado, disciplinando e regulando, para que o bem comum seja o objectivo norteador da acção política.

Aumentar a capacidade de auto-governo e de autonomia dos cidadãos é um dos objectivos da ideia exigente e dinâmica de democracia e das velhas utopias nas quais o socialismo se inspira. Mas isto não se confunde, naturalmente, com aquilo que o ultraliberalismo mercantil gera, ou seja, a transformação das sociedades em campos de batalha onde impera a lei do mais forte, da ganância e do dinheiro. A concepção de poder e de liberdade dos serventuários do capitalismo triunfante, reduz a política à mera gestão dos negócios e esmaga a sociedade sob a economia.

Na Grã-Bretanha, durante os governos da senhora Thachter, o desinvestimento do Estado e a política de privatizações atingiram tal dimensão que, num país orgulhoso, legitimamente, do seu sistema de segurança social, construído por governos de direita e de esquerda – em particular após as reformas Beveridge levadas a cabo pelo governo Atlee, ainda antes do fim da II Guerra Mundial -, as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde agravaram-se de forma dramática. Tal situação obrigaria, a partir de 2000, a um drástico aumento das despesas públicas, nesse e noutros sectores. Mas o New Labour de Tony Blair prosseguiria, mesmo se mais moderadamente, esse desinvestimento e essa política. É exemplo disto o que se passou com os caminhos de ferro. Alterada a coerência funcional da rede pela sua distribuição por várias sociedades privadas, enfraqueceu-se a eficácia e a segurança, sucedendo-se os acidentes e outras disfunções.

No plano militar, o processo de mercenarização da guerra, particularmente avançado no modo de destruição em que se está tornar o sistema norte-americano, é outra das manifestações do fenómeno mais amplo de mercantilização do mundo, e observa-se a dois níveis: na destruição do modelo republicano de exército assente na conscrição, até há pouco tempo predominante nas forças armadas europeias; e na privatização de diversas estruturas, dispositivos, tarefas e acções militares, retirando ao Estado o monopólio do uso legítimo da força – operação esta a que se chama outsourcing.

Nos EUA, de forma a permitir a continuação da extensa presença militar do país na cena mundial, racionalizando custos e reduzindo pessoal burocrático , empresas privadas ( private military companies, PMC) treinam tropas, mantêm e protegem bases no estrangeiro, recolhem informações, transportam equipamentos, armas e munições, possuem aviões e pilotos. Por exemplo, o Congresso tinha fixado em 200.000 o número de homens a deslocar para a Bósnia, mas contornando esta restrição, o Pentágono recrutou cerca de dois mil mercenários; prática tornada corrente noutros pontos sensíveis do planeta onde existem forças norte-americanas. O mesmo se passara na primeira guerra do Golfo e se veio a passar na segunda. No Iraque, em finais de 2003, eram já 20.000 os mercenários em acção (mais do que as tropas inglesas) e umas vinte cinco as PMC em actividade nesse teatro de operações, maioritariamente americanas e inglesas. Mas também as há no Afeganistão, na Colômbia e em dezenas de outros países.

Um estudo realizado pela International Consortium of Investigative Journalists, identificou umas noventa empresas actuando neste sector ainda sujeito a muita ocultação. As principais são norte-americanas, inglesas e sul-africanas, como a Military Professionals Resources Inc. (MPRI) , a DynCorp, a Wakenhut, a Vinnell (filial da TRW), a Logicon, a SAIC, a Kellogg Brown & Root (filial da Halliburton dirigida no passado, recorde-se, por Richard Cheney). Estima-se em 100 mil milhões de dólares (92,5 mil milhões de euros) o volume de negócios deste novo sector económico , tornando-se cada vez mais evidente que a mercenarização não permite uma real redução nas despesas públicas com a defesa, mas antes contribui para reforçar o peso e o poder do complexo militar-industrial no sistema mercantil norte-americano e até mundial.

A DynCorp tem um ramo britânico que ganhou um contrato de 300 milhões de libras relativo ao fornecimento de transportes (trucks) e de condutores de tanques a enviar para o campo de batalha. A Halliburton possui subsidiárias, como a Devonport Management Ltd., que ficaria encarregada da construção de docas destinadas a submarinos nucleares no valor de 505 milhões de libras, e a Global Risk International, que forneceu os Gurkhas (guerreiros nepaleses legendários) encarregados da protecção de Paul Bremer, o proconsul norte-americano em Bagdad durante a fase inicial da ocupação. Existem também PMC’s em Israel, em França, na Dinamarca e na Alemanha. Neste último país, uma sociedade mista, a GEBB (Gesellschaft fur Entwiklung-Betriebs und Bedarfsschaffung), foi criada para dar apoio a unidades, gerir infra-estruturas – como depósitos de munições – , alugar veículos e proceder a transportes.

Confunde-se, mistificadoramente, a desregulação que convém ao ultraliberalismo antisocial, com o risco criativo e a liberdade contratual. O ultraliberalismo corrói a coesão e rompe os laços sociais, impondo práticas económicas e de competição individual ferozes, que não obedecem a regras morais e legais ou as secundarizam . Por isso, hiperbolizando essa desregulação que da economia se estende à sociedade global, questionam-se as funções racionalizadoras, reguladoras e estruturadoras do Estado-Providência.

Este modelo de Estado, constituiu um progresso, ao permitir reduzir as desigualdades e minimizar os custos sociais e humanos inerentes ao funcionamento do capitalismo. Perante a ofensiva regressiva do primarismo ultraliberal, cabe ao reformismo socialista, defender, aperfeiçoar e adaptar às novas realidades tal modelo, aprofundar as suas capacidades e virtualidades, no sentido de o tornar ponto de partida para formas qualitativamente superiores de organização social e económica.

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