OPERAÇÃO OFFSHORELEAKS: COMO O JORNAL “LE MONDE” INVESTIGOU O ESCÂNDALO DOS PARAÍSOS FISCAIS

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

Anne Michel, LE MONDE, Offshoreleaks 

offshoreleaks - II

No avião de Paris a Madrid, neste 28 de Janeiro de 2013, é difícil concentrar-me nas páginas finais do meu romance. O Caso Harry Québert irá esperar para me dar a sua verdade. Esta é outra investigação que me leva à capital espanhola e me ocupa o espírito. Uma lista dos 130 franceses titulares das empresas offshore foi extraída pelo consórcio americano de investigações ICIJ, dos arquivos secretos, entre milhares de nomes, indivíduos ricos e poderosas holdings financeiras, europeias, americanas, russas ou asiáticas, escondidas atrás de falsos nomes.

Ela lista veio parar ao Le Monde desde há algumas semanas, através do meu colega Serge Michel, sobre um sistema de mensagens cifradas. Uma pequena Comissão foi criada para investigar o que foi chamado “operação Offshoreleaks”.

 O jornal

A lista francesa deixou filtrar apenas alguns nomes de personalidades conhecidas. A viagem a Madrid é destinada a saber mais. ICIJ tem uma correspondente em Espanha e está disponível para nos abrir os seus arquivos preciosos. Uma mina de informações confidenciais fornecidas por ex-funcionários de duas empresas de serviços financeiros offshore Portcullis TrustNet e Commonwealth Trust Limited, sobre centenas de milhares de empresas criadas ao longo da década de 1990 e da de 2000 em paraísos fiscais.

Nunca os Estados e as administrações fiscais tiveram acesso a tal tipo de dados . Só lhes aparecem e quando aparecem, leves pontas de informação. Os índices de detenção de contas não declaradas, que, muitas vezes, confinam ou desembocam no sigilo bancário…

LISTAGENS ESPANTOSAS DO ICIJ

Verificar o endereço rabiscado no meu caderno: uma pequena praça do bairro del Pilar, no nordeste da cidade, um encontro marcado de bastante mistério. E acima de tudo, a pen USB de “pelo menos 32 Gigabit’, disseram-me, para me permitir o transporte destes famosos ficheiros para Paris.

As listagens ICIJ são demolidoras pela sua dimensão : elas representam uma massa de dados brutos de 260 gigabits. É 162 vezes os documentos divulgados pelo WikiLeaks. Elas estão cheios de dados precisos, muitas vezes com a informação codificada sobre a identidade dos directores e accionistas dessas empresas com base nas Ilhas Virgens Britânicas, nas ilhas Caimão, nas Ilhas Cook, Samoa, Singapura, cuja existência está ao abrigo destas jurisdições opacas onde esta informação deveria continuar a estar abrigada , longe dos olhos dos reguladores e autoridades fiscais. Uma porta entreaberta sobre os centros financeiros do mundo offshore.

A investigação, contudo, é difícil e o ICIJ não deixou novamente de o repetir aos media associado com o “ICIJ Offshore Project”, do Washington Post até ao Asahi Shimbun, passando pela Canadian Broadcasting Corporation (CBC), o Guardian, em Londres, o Premium Temps na Nigéria, La Nación na Argentina ou Le Matin Dimanche, na Suíça.

Enquanto que no caso WikiLeaks o que se via era telegramas de embaixada, conversas por email, breves documentos explícitos e imediatamente exploráveis, quanto aos arquivos ICIJ estes exigem ser descodificados, comparados, misturados, analisados. Horas de computador, de verdadeiro  mergulho informático antes de iniciar a verdadeira investigação jornalística: as pesquisa sobre as empresas e sobre os indivíduos, em seguida, telefonemas e encontros … O confronto dos factos à sua verdade.

Mar Cabra, a correspondente do ICIJ em Madrid, cumprimenta-me com um sorriso largo. Ela tem como missão ajudar os jornalistas europeus a navegar em arquivos. É, diz ela , desde o início uma cooperação internacional sem precedentes. Totalmente dedicada a este tipo de “jornalismo” que promete revolucionar a profissão, ela define o tom dos três dias que iremos passar juntos: a interpretação dos dados é complexa, é necessário trabalhar incansavelmente, até ao final da noite. Isso é o que vamos fazer, para fazer o nosso trabalho como deve ser , um bule de chá cheio por companhia. .

Face a nós, dois ecrãs estão ligados permanentemente . Podemos passar de um para o outro para seleccionar os dados que nos interessam e, em seguida, guardá-los em ficheiro . Durante 15 meses, à custa de intenso trabalho, ICIJ identificou empresas offshore, país a país. Daí esta lista de 130 franceses

Baptizada OMET ( do inglês offshore main entity tables ) , dá-nos a lista das principais entidades offshore), o banco de dados para cada um dos media obtém um código seguro que abre o acesso a milhares de tabelas Excel, de documentos Word, de documentos em formato PDF, alguns documentos explícitos, outros abstrusos: dos e-mails trocados entre Portcullis TrustNet e Commonwealth Trust Limited e os advogados, suíços, americanos ou bancos; a correspondência privada de advogados com os seus clientes; certificados de registo de empresas; transferências de acções ; documentos de identidade.

Uma selva que deve ser explorada pacientemente. Até encontrar a peça probatória, que permitirá identificar os beneficiários efectivos de grandes empresas ou reconstruir a arquitectura que procuram esconder.

De regresso a Paris, começam as verdadeiras investigações . Horas de mergulho. Um nome ou código do banco de dados dá um outro nome, depois outro, depois outro… Pesquisa sem fim. É uma viagem virtual de Paris a Genebra, de Genebra a Singapura, de Singapura para as Ilhas Virgens, um conjunto de saltimbanco internacional que deve saber desenrascar-se face às armadilhas definidas pelos peritos da alta finança e que nos leva ao coração de “jurisdições de palmeiras”, como lhes chamam os especialistas. Os momentos de desânimo são abundantes. A opacidade não é fácil de combater.

Questões também nos surgem. Sobre o significado a ser dado aos resultados das nossas investigações. Sem o conhecimento preciso dos fluxos de dinheiro, que transitou por essas empresas offshore e foram capazes de escapar ao imposto, impossível traçar a linha vermelha entre optimização fiscal e fraude.

E até onde vai a revelação dos nomes? O grande empresário regional que esconde os seus ganhos nas ilhas Caimão vale tanto quanto o responsável político que tem a seu cargo o dever de ser exemplar? O que nos dizem as nossas investigações face à evasão fiscal da sociedade e à relação com os impostos?

Então depois sobre o fórum das trocas de informações, criado para o projecto, uma mensagem de um jornalista estrangeiro, François Pilet ou Titus Plattner na Suíça, Harry Karanikas Grécia, Ivan Ruiz na Argentina, que reabrem um processo no impasse e lhe dão um novo sentido político.

Acima de tudo, há ICIJ e as suas equipas, em Madrid e Washington, mobilizadas em pleno e que, através das suas mensagens de encorajamento nos lembram, finalmente, o essencial. Que a luta contra a opacidade financeira, que fornece o anonimato aos autores das fraudes , encontra-se questionada em todas as crises financeiras, faz parte dos grandes combates democráticos.

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