MULHERES – A VIOLÊNCIA CONTINUA – 1 – por Rachel Gutiérrez

Imagem1Começamos hoje a publicar o  livro-manifesto de Rachel Gutiérrez, Mulheres – A Violência Continua. É preciso tomar consciência desta aberração, deste atavismo horroroso que herdámos do passado e que vem trazer à aldeia global, onde imperam as novas tecnologias e se fala em mudança e evolução das mentalidades, práticas de discriminação, violadoras dos direitos que (pelo menos teoricamente), todos os seres humanos têm. Violência doméstica, estupros, humilhações… A noite dos tempos persiste em não dar lugar ao dia claro.

MULHERES – A Violência Continua

Condição feminina e direitos humanos

Rachel Gutiérrez

Copyright © by Rachel Gutiérrez, 2013

Direitos da edição em livro reservados à Caravansarai Editora Ltda. http://www.caravansarai.com.br contato@caravansarai.com.br

Este livro é um manifesto em defesa da integridade e da dignidade das mulheres. Recorta algumas notícias recentes sobre a violência que elas continuam a sofrer neste início do século XXI, mais de seis mil anos após a instauração do patriarcado, para denunciar a gritante contradição entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e a condição feminina no mundo de hoje.

A História, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando despertar. 

James Joyce

Nossas vítimas nos conhecem por suas feridas (…) Basta que nos mostrem o que fizemos delas para que saibamos o que fizemos de nós mesmos.

Jean-Paul Sartre

As mulheres no mundo

Nos idos de 1980, estávamos reunidas num artamento do Leblon dez mulheres do Grupo Mulherando de Reflexão Feminista, do Rio de Janeiro, quando uma companheira sugeriu um exercício de conscientização para investigarmos quantas ali presentes haviam sido vítimas de abuso sexual na infância.O resultado foi uma revelação assustadora: as dez tínhamos sido marcadas, de um modo ou de outro, por esse tipo de experiência nefasta.

Três décadas mais tarde, neste ano de 2013, as histórias de mulheres brutalmente espancadas, estupradas e assassinadas que se multiplicam em todo o mundo me levaram a escrever esta carta, que o jornal O Globo publicou no dia 20 de janeiro:

Estatísticas de estupro no mundo não são apenas estarrecedoras neste século XXI. São uma clara convocação a um amplo debate sobre as diferentes culturas androcêntricas, ou seja, de dominação masculina. É o androcentrismo que perpetua uma visão das mulheres como seres inferiores, objetos de desejo e meios de reprodução, apropriados pelos diferentes sistemas, que julgam e decidem sobre seu comportamento, sua maneira de vestir ou despir (quando convém à multimilionária indústria da pornografia), e sobre o direito ao aborto. Enquanto a voz das mulheres sobre essas e outras questões não for ouvida, as chamadas democracias continuarão a existir como meras expressões da criminosa hipocrisia em que vive a humanidade.

Nesse mesmo dia, lemos na Folha de S.Paulo que centenas de pessoas participaram de uma vigília contra estupros em Nova Déli, capital da Índia. Uma estudante de 23 anos, que fora estuprada e brutalizada por seis homens em 16 de dezembro, morreu duas semanas depois. Nirbhaya, a jovem indiana assassinada, cujo pai é carregador no aeroporto e segurança à noite para ganhar 180 dólares por mês, estudava das 12h às 17h e trabalhava, num call center, das 19h às 4h da madrugada, para pagar a faculdade. O projeto de Nirbhaya era fazer o estágio, que lhe permitiria ganhar 550 dólares por mês, para tirar a família da pobreza em Nova Déli, onde ela dividia uma casa de dois cômodos com a mãe, o pai e dois irmãos.

Na noite do crime, ela voltava para casa com um amigo, com quem havia assistido, no cinema de um shopping, “A vida de Pi”. Tomaram 11 um ônibus sem jamais imaginar que o motorista bêbado, seu parceiro que se fingia de cobrador e mais quatro homens, que aparentavam ser passageiros, formavam uma gangue de malfeitores acostumados a estuprar moças indefesas. “Estupros em série são muito comuns em toda a Índia”, segundo o psicólogo Pulkit Sharma: “um modo de os homens mostrarem virilidade entre amigos.” E a Folha de S.Paulo também noticiou que, embora ocorram estupros a cada 20 minutos, só um em cada 50 casos é informado à polícia. Disse ainda Pulkit Sharma que “as mulheres são encaradas como meros objetos para satisfazer as necessidades do homem”. Mas o que mais chocou o mundo no caso trágico de Nirbhaya foi o grau de violência e a demência da maldade desses seis homens infelizes. Nirbhaya veio a morrer duas semanas depois porque, além da brutalidade dos estupros, um dos criminosos, o mais jovem, havia enfiado uma barra de ferro na moça, arrancando- lhe os intestinos. O amigo fora deixado inconsciente no início do ataque com um golpe da mesma barra de ferro. “40 minutos mais tarde, os estupradores atiraram os dois nus, do ônibus em movimento.” A moça estava desacordada, e o rapaz gritou muito por socorro, mas ninguém parou para ajudá-los. Quando finalmente a polícia chegou, precisaram levá-los para um hospital distante 16 km, porque o mais próximo não aceita vítimas de estupro. 12

No dia 14 do mesmo mês e na mesma cidade – Nova Déli –, outra mulher, de 29 anos, foi violentada por sete homens após embarcar num ônibus. “O motorista e seu ajudante a levaram para um local não revelado, onde, junto com outros cinco” (a história se repete!) “a estupraram durante toda a noite.” Diz ainda o jornal que, “de acordo com um estudo da Fundação Thomson Reuters, a Índia é o pior país do G-20 para as mulheres, onde as meninas continuam a ser vendidas como objetos, casadas aos 10 anos, queimadas vivas em disputas por dotes ou exploradas como escravas domésticas”. E dois milhões são mortas a cada ano.

É desse pesadelo que as mulheres da Índia tentam despertar.

(Continua)

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