O ACORDO ORTOGRÁFICO EM DEBATE – COMENTÁRIOS AO ARTIGO DE PEDRO MEXIA

Ao longo desta semana, este espaço horário (18 horas) é reservado ao debate sobre o AO – textos de opinião, comentários…

O detonador

Foi uma mensagem de Rui de Oliveira, remetida no Domingo, que desencadeou a criação deste novo espaço de debate sobre o Acordo Ortográfico. Dizia: «Dentro duma minha militância discreta (mas irritada) contra o aborto do (des)acordo ortográfico, sugiro a publicação (ou pelo menos a referência) ao artigo esclarecedor e actualizado sobre a situação do AO escrito pelo Pedro Mexia no A(c)tual do Expresso de hoje e que curiosamente a Universidade do Minho já reproduziu. Aqui vai e eu até sugeria como subtítulo de “O Aleijão”, a citação do seu texto “É preciso acabar com aberrações como a recessiva “receção” e o tauromáquico “espetador” e a lasciva “arquiteta” » Logo contactámos Pedro Mexia que, muito amavelmente, autorizou a publicação do seu artigo.

Dejêtos” do “aborto ortofágico” – Paulo Rato

Vou-me alegrando com a convergência de argumentos entre os que se opõem ao AO, sem terem discutido o tema pessoalmente, o que significa que é o próprio “aleijão” que suscita reparos e críticas idênticas ou muito similares, das mais diversas pessoas, que têm em comum o apreço pela língua pátria e o seu uso, cultivado mas não elitista.

Estive a reler o que escrevi aqui no blogue, há algum tempo, e nada tenho de significativo, para já, a acrescentar.

Não resisto, no entanto, a abordar mais um exemplo “mediático”, que corrobora a minha opção por desdobrar a sigla AO em “Aborto Ortofágico”.Há escassos dias, uma jornalista da TVI, relatando o caso de um jovem que fugira de casa e habitava um tugúrio malsão, referia que o local se encontrava repleto de “dejêtos”: procuro transmitir, através da grafia, o modo exacto como a palavra foi pronunciada.

Isto significa que, tal como eu previa (e adiantava que já se estava a verificar), a senhora terá deparado com a palavra escrita segundo o AO e:
a) sendo jovem e com poucas leituras, da primeira vez que a viu memorizou a sua pronúncia como “parece ser” a correcta, na ausência de qualquer indicação gráfica que a esclareça, passando a usar essa pronúncia, sem lhe ocorrer, sequer, que pudesse estar errada;

b) conhecendo a palavra, mas não a utilizando com frequência (sendo igualmente raro o contacto com a boa literatura), esqueceu a pronúncia que tinha aprendido e, revendo-a, grafada segundo o AO, passou a pronunciá-la incorrectamente;
c) contagiada pelas dúvidas geradas pelo AO (narrava, no meu artigo, como alguns profissionais de rádio, de razoável cultura, se deixaram enredar num debate “inter pares”, sobre o modo de pronunciar a grafia “espetador” – não prevista no AO, mas arrastada pelas “normas gerais” nele estabelecidas e logo estilhaçadas em “excepções” -, que lhes aparecia num jornal de “prestígio cultural”, como era o caso do “Jornal de Letras”), passou a pronunciar erradamente uma palavra que, antes do famigerado AO, nunca lhe levantara dúvidas, já que, sempre que a lia, lá estava a tal “inútil” consoante muda, para lhas dissipar.

Esta é a realidade da população lusófona, uma realidade que os “sábios” do Aborto mandaram às urtigas, em favor de uma construção fictícia sobre a escassa informação que lhes chegaria, da vastidão dos campos em redor (de que um profundo fosso os separa), quando assomavam às ameias da altíssima “torre de erudição” (estéril) que habitam. Uma realidade que se estende por diversas caracterizações, da ignorância absoluta à insegurança que se insinua numa cultura, até, razoavelmente vasta, mas não particularmente preocupada com (ou atenta a) estas particularidades.

Estimo que os “dejêtos” sejam do agrado dos esvoaçantes entusiastas do AO…

Cruzada contra a “aberração ortográfica” – Maria Sá

Parabéns. Até que enfim se começa uma cruzada contra esta “aberração ortográfica” .

“César não está acima dos gramáticos” – Carlos Loures

Caesar non supra grammaticos (César não está acima dos gramáticos) é uma locução latina cuja origem Suetónio – Caius Suetonius Tranquillus, biógrafo do império, nos explica – o imperador Tibério (42 a.C. – 37 d.C.) foi repreendido pelo filólogo Marcus Pomponius Marcellus, dado que num discurso empregou uma palavra que não era latina. Houve quem interviesse dizendo que a palavra, pelo facto de ter sido dita pelo imperador, passava a ser latina. Foi então que Pomponius respondeu que César não está acima dos gramáticos. Num sentido lato, pode dizer-se que a política não deve estar acima dos filólogos. Porque cada vez mais se acentua o carácter político do Acordo Ortográfico, pois só os políticos (alguns, pelo menos) parecem estar de acordo quanto às vantagens do Acordo. Do ponto de vista estritamente filológico não se vislumbra uma. Nem vantagens nem argumentos credíveis. No lado dos que contestam as bases do diploma, vão aparecendo depoimentos valiosos, como é o caso deste, de Pedro Mexia. Por isso, no meu artigo de há dois anos, ” O Acordo Ortográfico é um tigre de papel”, declarava não tencionar aplicar as regras do novo Acordo Ortográfico. Atitude que, decorridos este tempo, mantenho. Aliás, neste período de tempo a minha convicção de que a adopção deste Acordo, me parece medida de uma total inutilidade, se vai convertendo numa certeza  – as grandes diferenças entre o português europeu e o brasileiro não são de natureza ortográfica – a sintaxe é diferente nas duas normas e continuará a sê-lo e o campo semântico de muitos vocábulos também . E essa diferença não será o Acordo que a resolverá. Os idiomas são organismos vivos – nascem, os seus vocábulos vão sofrendo uma ampliação semântica e subdividem-se noutras palavras, crescem e transformam-se. O AO é uma espécie de manipulação genética, feita ao arrepio das leis da Ciência – foi assim que nasceu o monstro de Frankenstein.

7 Comments

    1. Não. Não sei falar acordês nem tenciono aprender. Só digo que uma língua que se aguenta há quase mil anos, resistindo a pressões, influências e, também, à permissividade dos falantes, não vai ser destruída pelo AO. É, no entanto, profundamente ridícula a ideia (peregrina) de que o AO vai beneficiar a expansão do idioma e evitar, quiçá, a sua extinção. Nada tenho contra alguns dos motivos políticos que estão por detrás desses tremendismos e catastrofismos; mas não usem a língua portuguesa para os atingir. O que defende a Língua é o seu bom uso, bons textos literários (como os de Mia Couto). O que a ofende é o seu uso por políticos sem vergonha. Gente que vive à custa dos «cidadões»…

  1. Excelente, só tenho uma observação a fazer, o português “europeu” é o que se fala no Luxemburgo, na Alemanha, na Suíça e na França, e que inclui também o de Portugal?
    Ou será aquele que tem origem em Portugal?
    Por oposição ao “português europeu”, geralmente, não se menciona o português sul-americano, mas, sim, o “brasileiro”, haverá algum motivo especial para isso? Por que uma das formas se espalha por todo um continente e a outra se circunscreve a um país, mesmo que vasto, maior que a Europa?
    Não seria preferível dizer português de Portugal ou, simplesmente, português?

    1. Português europeu ou português de Portugal são as designações usadas para a variante da língua portuguesa falada em Portugal. São fórmulas consagradas pelo uso. Português de Portugal, uma das designações que prefere, é tão correcta como a que usámos. Agradecemoss o seu comentário.

    2. Há um aspecto do seu comentário ao qual não respondi completamente e que me saltou à vista numa segunda leitura – «Não seria preferível dizer português de Portugal ou, simplesmente, português?» O escritor Manuel Ferreira, no ensaio intitulado “Que Futuro para a Língua Portuguesa em África?, afirmava que os países onde se fala português, transformam, pelo uso, o idioma “no plano da oralidade e no plano da escrita”. “A língua não é de nenhum para ser de todos. Não há por conseguinte um patrão. Todos são patrões. E se há uma língua, que é a língua portuguesa, há várias normas e logicamente umas tantas variantes: a variante da Guiné-Bissau, a variante de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, a variante de Angola, Moçambique, do Brasil, da Galiza, de Timor-Leste, a variante de Portugal.” É o que penso.

Leave a Reply