A CANETA MÁGICA – POESIA E ANTIFASCISMO – por Carlos Loures

Se há algum movimiento literário que seja indissociável da resistência política contra a ditadura, o neo-realismo é, sem sombra de dúvida, o que mais evidencia desde a sua formação uma vocação estrutural para denunciar as chocantes assimetrias sociais que caracterizavam o Portugal de Salazar. Distinguindo-se mais pela prosa ficcional, terão sido os romances de Alves Redol, de Soeiro Pereira Gomes, de Manuel da Fonseca, as obras mais emblemáticas do neo-realismo. Nas artes plásticas, obras como as de uma fase de Júlio Pomar, de Manuel Ribeiro de Pavia ou de José Dias Coelho, são, pelas suas temáticas, identificáveis com o espírito do movimento. E a poesia?

Há críticos e historiadores da literatura com a opinião de que o neo-realismo em Portugal existe apenas no plano do discurso ficcional. Há quem, como Mário Sacramento, por exemplo, seja da opinião de que não existe uma poesia neo-realista. É uma questão de perspectiva. Caso estejamos a falar numa forma tipicamente neo-realista de fazer poesia, então talvez essa forma não exista. Porém, para lá da tessitura formal, há outros aspectos a considerar. O fulcro vital do neo-realismo não reside na forma. Encontra-se na denúncia da injustiça social e da repressão política, típicas dos regimes autoritários de direita que governavam uma parte substancial da Europa no final da década de 30, quando o movimento começou a afirmar-se em Portugal. A depressão económica, a Guerra Civil de Espanha, preanunciando a II Guerra Mundial, a dicotomia fascismo-marxismo, constituem elementos indissociáveis da génese do movimento que, definido sinteticamente, constituiu uma transposição para a arte em geral e para a literatura em particular de uma dinâmica subsidiária do materialismo-dialéctico. No plano histórico, representa, como salientou Óscar Lopes, um fenómeno semelhante ao da Geração de 70. Porque as épocas de grandes clivagens políticas e sociais, desencadeiam geralmente novas formas literárias e artísticas.

A Geração de 70, ou geração de Coimbra foi como que um eco da grande crise europeia gerada pela guerra franco-prussiana e pela Comuna de Paris. Nas suas formulações, os escritores dessa geração, ultrapassando o socialismo utópico de Saint-Simon, Fourier e Proudhon, revolucionaram várias dimensões da cultura portuguesa, da política à literatura, onde a renovação se manifestou com a introdução do Realismo.

Eça de Queirós, Antero de Quental, Oliveira Martins e outros, desencadeando a sua luta com o confronto com os ultra românticos do “Bom senso e do Bom gosto”, reflectiram nas suas obras o transpor desse limiar que deixava para trás o Romantismo e punha o escritor e o artista face à luz de uma nova realidade. Na sua conferência do Casino, Eça em «A Literatura Nova – O Realismo como nova expressão de arte», colocou a sua tese dentro do espírito revolucionário, concluindo-a com a condenação do Romantismo, acusando-o de atraiçoar a revolução e de corromper os costumes. «Ou se há-de tornar realista ou irá até à extinção completa».

Ferreira de Castro com Emigrantes (1926) e A Selva (1930), as obras iniciais de Jorge Amado, bem como as de Graciliano Ramos ou Lins do Rego, constituem como que uma proto-história do movimento. Fernando Namora, Joaquim Namorado, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, nas suas primeiras obras, Mário Dionísio e Manuel da Fonseca, são os seus pioneiros.

A revista coimbrã Vértice, cuja publicação se iniciou em 1942, é associada à matriz do movimento, embora se reconheça que outros contributos vieram, nomeadamente da Seara Nova. Como diz Eduardo Lourenço: «É a esta revista dos anos 40, à Vértice que lenta, mas firmemente – até por ausência de competidores – se descobre e se propõe como “compagnon de route” (expressão pouco conhecida então) de um “neo-realismo” que era sua referência».

Na poesia, pode considerar-se Álvaro Feijó (1916-1941) como um precursor da poesia neo-realista. Porém, a utopia socialista está sempre presente na poesia dos poetas neo-realistas; quando denunciam o cinzento quotidiano vivido sob a ditadura, pois sob essa escrita, como num palimsesto, pode ler-se a cor viva do futuro sonhado. Existe, quanto a mim, uma poesia neo-realista que se define pela temática. Formalmente, é multiforme. Se a obra poética de Manuel da Fonseca constitui um paradigma, vê-se que ela é subsidiária de muitos contributos, empréstimos por assim dizer, do surrealismo e, inclusive, do ponto em que o gongorismo de Federico García Lorca e o surrealismo se encontram.  A poesia de Manuel da Fonseca, embora pela sua temática se integre na filosofia do movimento, usa uma linguagem rica, muito próxima da de Federico García Lorca que, como se sabe, era rica, ornada de metáforas. A lírica de Manuel da Fonseca (e a sua novelística também) rompe com o despojamento formal que constituía uma das imagens de marca do neo-realismo, um movimento que por esse mundo fora era designado por realismo-socialista.

Fernando Namora, outro dos pioneiros da poesia do movimento com os poemas de As Frias Madrugadas (1938), parece, apesar de tudo, estar mais próximo da estética e dos cânones. Carlos de Oliveira é outro dos escritores que, do ponto de vista formal, se afasta da «norma». A existência de um «estilo literário neo-realista» não é visível, senão talvez em epígonos e em escritores menores a quem a crítica rotulou de «neo-realistas», não raramente dando ao termo um sentido pejorativo.

Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Joaquim Namorado, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, era gente, toda ela com um universo e um estilo próprios. Todos irmanados no objectivo de denunciar as injustiças sociais, a repressão política, todos diferentes na forma de o fazer.

Detendo-nos no poema de Manuel da Fonseca, “Domingo”, que Mário Viegas tão bem dizia, entre os três primeiros versos – “Quando chega o domingo,/faço tenção de todas as coisas mais belas/que um homem pode fazer na vida.”, e os três últimos – “Domingo que vem,/eu vou fazer as coisas mais belas/que um homem pode fazer na vida!”, existe todo um universo de frustrações, oportunismos, sujeições, exploração – o mundo capitalista descrito cruamente:”Há mais amargura nisto/ que em toda a História das Guerras./Partindo deste princípio,/que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,/eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo”.

Por isso, o círculo aparentemente vicioso que, com estes seis versos se abre e se fecha sobre uma realidade monótona vestindo uma sociedade injusta e mesmo antropofágica, pode também ter uma leitura optimista – no futuro tudo será diferente. “Notícias do bloqueio”, de Egito Gonçalves, e “A Invenção do Amor”, de Daniel Filipe, depois de nos descreverem universos distópicos em que até os sentimentos mais íntimos são vigiados, terminam com sinais de que a situação pode ser invertida. Egito Gonçalves, depois de descrever a situação desesperada que se vive na cidade termina com “e a esperança reproduz-se”.; Daniel Filipe termina de maneira semelhante: “Mas um grito de esperança/inconsequente vem/do fundo da noite envolver a cidade/au bout du chagrin une fenêtre ouverte/une fenêtre eclairée)

E nesta fórmula em que a luz se divisa sob as trevas, se encontra a pedra angular do neo-realismo, particularmente da sua poesia.

3 Comments

  1. A literatura não se divide em postas de pescada, cada uma comida à parte das outras. O percurso de um artista também não, mesmo que, por conveniência de “arrumação” do estudo da sua obra se definam, por vezes, “períodos”. O nosso Sílvio Castro, bem fez, no seu ensaio sobre a “poesia do socialismo” em Portugal, em seguir um fio condutor que une o cerne das preocupações de muitos autores, ao longo de mais de um século. Se atentarmos no que actualmente se produz, chegando até aos poetas a que insistimos em chamar “novos” (que. felizmente, sempre vão aparecendo) verificamos que continuam bem presentes as preocupações político-sociais que, num determinado momento histórico, se concentraram (com uma grande diversidade de abordagens e de estilos) no que ficou conhecido por “neo-realismo”. Esta urgência de intervenção está a ressurgir, face à preocupante deterioração da Democracia que estamos a viver, e não apenas em autores da minha geração que muito aprecio, como Nuno Júdice (enquanto ficcionista, em “A Implosão”), ou Hélia Correia (enquanto poeta, no também recente “A Terceira Miséria”).
    Não deixo passar a oportunidade de transmitir a opinião (pessoal) de que o Namora é tão acutilante em “Terra”, do Novo Cancioneiro, como em “Marketing” (eventualmente, até mais eficaz: o poema que dá título ao livro foi sempre um “êxito absoluto” nas minhas leituras públicas de poesia e é interessante notar as coincidências com um dos poemas de Montalbán – bastante posterior – cuja tradução publiquei, ainda no “estrolábio”).
    Ligados ao Neo-Realismo ficaram alguns dos autores maiores do século XX português. Também nalgumas leituras que fiz, dedicadas especificamente a este movimento literário, verifiquei que, mesmo entre os que o apreciavam, havia quem não se apercebesse de toda a dimensão estética que as obras atingiam: é notória a aproximação dos seus criadores às origens da palavra poética “para ser dita”, pelo que a leitura em voz alta não raro desvenda valores estilísticos e conceptuais menos evidentes.
    Como bem lembra o Carlos, “A existência de um «estilo literário neo-realista» não é visível, senão talvez em epígonos e em escritores menores a quem a crítica rotulou de «neo-realistas», não raramente dando ao termo um sentido pejorativo”. A riqueza do neo-realismo português está precisamente nessa capacidade de cada um dos mais significativos escritores que o integraram – incluindo alguns menos conhecidos e de obra mais reduzida – terem sido capazes de encontrar a sua voz própria, não mimetizável. Quanto ao “sentido pejorativo” – mesmo tendo em conta as “querelas” inúteis suscitadas entre escritores e poetas que talvez não tenham querido “compreender-se” -, os mais acirrados críticos aproximam-se do nível intelectual de que falámos a propósito do Maugham…

  2. Carlos
    Subscrevo o que escreves sobre a poesia neo-realista e a referência aos seus maiores; no entanto, não posso deixar de fazer um reparo à introdução quando escreves: «Distinguindo-se mais pela prosa ficcional, terão sido os romances de Alves Redol, de Soeiro Pereira Gomes, de Manuel da Fonseca, as obras mais emblemáticas do neo-realismo.», dado que, se fazes referência à prosa ficcional dos neo-realistas, não podes deixar de juntar aos nomes citados o de Carlos de Oliveira -este o maior de todos na ficção, na minha opinião- e o de Mário Dionísio. Só assim o quadro de honra fica completo.
    Abraço

    1. Aceito o reparo, mas chamo a tua atenção para o adjectivo que uso – «as obras mais emblemáticas» – não estabeleço juízos de valor – reconhecendo a grande qualidade dos romances de Carlos de Oliveira e da obra de Mário Dionísio, parece-me que os autores referidos alcançaram uma maior difusão. Por isso, sem alterar o que escrevi,aqui ficam o teu comentário e esta resposta sublinhndo a grande qualidade das obras de Carlos de Oliveira e de Mário Dionísio. Obrigado.

Leave a Reply