ANTERO DE QUENTAL – 3 – Histórias de Suicídios Famosos em Portugal – por José Brandão

(Continuação)

O desafio parece inumano, por isso não é de estranhar a tibieza manifestada nos dois primeiros versos desta segunda quadra. É apenas um momento mais de desalento, como tantosImagem1 da sua vida. Entretanto, parece avistar, lá longe, o objecto da sua busca, uma espécie de luzinha no fundo do túnel, fazendo renascer a esperança. Mas, tal como acontece aos beduínos do deserto (elemento apontado já na primeira quadra), constata-se que tudo não vai passar duma mera miragem, fruto do seu ardente desejo, fruto duma ânsia desmedida: «Com grandes golpes bato à porta e brado: / Eu sou o Vagabundo, o Deserdado… / Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais! / / Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…» E enquanto as portas se abrem, parecerá infindável esse momento de enorme expectativa: é fácil adivinhar a ansiedade do cavaleiro que quer ver banidos para sempre os seus desesperos, os seus sofrimentos, as suas angústias. «Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão – e nada mais!» Não espanta, por isso, que um espírito, num estado de alma como este, procure, desesperadamente, a tranquilidade final e absoluta – absoluto que, no fundo, terá sido a grande causa de toda a sua angústia existencial: «E o homem porque vaga desolado / E em vão busca certeza que o conforte? / / Mas, na pompa de imenso funeral, / Muda, a noite, sinistra e triunfal, / Passa volvendo as horas vagarosas… / / É tudo, em torno de mim, dúvida e luto…». Daqui ao refúgio na morte é apenas o tempo de um ai: «Se esta espada que empunho é coruscante, / (Responde o negro cavaleiro andante) / É porque esta é a espada da Verdade. / / Firo mas salvo… Prostro e desbarato, / Mas consolo… Subverto, mas resgato… / E, sendo a Morte, sou a liberdade.». A liberdade, sim, porque a morte liberta-o de todo o sofrimento: «Em mim, os Sofrimentos que não saram, / Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem. / As torrentes da Dor, que nunca param, / Como num mar em mim desaparecem.» Não surpreende, pois, que o poeta se lhe entregue: «Dormirei no teu seio inalterável, / Na comunhão da paz universal, / Morte libertadora e inviolável!». No entanto, reminiscências da sua cultura judaico-cristã parecem trazer à superfície um certo complexo de culpa, que não de pecado: «Talvez seja pecado procurar-te, / Mas não sonhar contigo e adorar-te, / Não-ser, que és o Ser único absoluto.» Esta é, talvez, a grande verdade a que chegou o espírito angustiado do poeta: a morte como único absoluto a que pode ascender a razão humana. Num último golpe de desespero, lança-se nas mãos da sua derradeira e extrema pretensão, a de um Deus no qual gostaria de acreditar: «Na mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou afinal meu coração. / […] / Como criança, em lôbrega jornada, / Que a mãe leva no colo agasalhada / E atravessa, sorrindo vagamente, / / Selvas, mares, areias do deserto… / Dorme o teu sono, coração liberto, / Dorme na mão de Deus eternamente!». Mas, ainda agora, o sono não é um sono profundo e tranquilo: [Deus] «Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo, / Há-de fugir-me, como a ingrato filho? / Ó Deus, meu pai e abrigo! Espero!… Eu creio!». Será que crê? Se tal fosse verdade, desaparecer-lhe-iam todas as dúvidas que lhe alimentam as angústias, desapareceriam os pesadelos de seu sono intranquilo: «Só uma vez ousei interrogá-lo: / – “Quem és (lhe perguntei com grande abalo), / Fantasma a quem odeio e a quem amo?” / / – “Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos, / Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos… / Mas eu por mim não sei como me chamo…”. Por mais que proclamasse a conversão, é de crer que nunca a terá alcançado, para infelicidade sua: «Entre os filhos dum século maldito / Tomei também lugar na ímpia mesa, / […] / Mas um dia abalou-se-me a firmeza, / Deu-me rebate o coração contrito! / / Erma, cheia de tédio e de quebranto, / Rompendo os diques ao represo pranto, / Virou-se para Deus minha alma triste! / / Amortalhei na Fé o pensamento, / E achei a paz na inércia e esquecimento… / Só me falta saber se Deus existe!». Como viver em paz um espírito assim?

Antero de Quental pôs termo à vida em 11 de Setembro de 1891. Poeta da razão, da revolução, mas também do pessimismo, foi um sonetista exemplar. Em prosa, onde revela grande poder oratório, levou a cabo o melhor da sua obra crítica e doutrinária, na análise da filosofia da história portuguesa (como em Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, ensaio publicado, em 1890, na «Revista de Portugal», de Eça de Queirós) e na crítica do positivismo então dominante, a que opunha a necessidade de uma consciência espiritual no mundo. A esta concepção está ligada a ideia de santidade que sempre o dominou — não no sentido religioso cristão, mas com expressão no seu espírito belicoso, numa epopeia da humanidade e da revolução, na sua fase combativa, e, em princípio e fim de vida, num apelo místico interior. Pela sua estatura intelectual, pela mestria da sua técnica do soneto e pelo seu contributo para a história das ideias, é um dos nomes fundamentais da cultura portuguesa. Tal como José Fontana, Antero de Quental é considerado um dos grandes inspiradores e fundador do Partido Socialista português.

(Conclui amanhã)

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