UM DISCORRER LIGEIRO SOBRE O BRASIL – por António Gomes Marques

 

Dedicado à minha família brasileira

Imagem1A primeira visita ao Brasil aconteceu em 1995. Havia o objectivo de visitar o mais possível do país e também conhecer o maior número de familiares, na altura já várias dezenas. Foi São Paulo a primeira cidade onde aterrámos, tendo uma comitiva de familiares à nossa espera, comandada pelo Athayde e pela Judite, que nos tinham visitado uns tempos antes.

Foi uma oportunidade, durante cerca de um mês, de viajar pelo imenso Brasil –São Paulo, onde reside a maior parte da família; Rio de Janeiro, com viagem de carro entre as duas cidades, com passagem pelo Santuário da Senhora Aparecida; Salvador (antes S. Salvador da Baía), a cidade do também nosso Jorge Amado; Manaus, navegando pelo Rio Negro ao encontro das águas, ou seja, onde este rio se encontra com o Rio Solimões, observando um espectáculo único e que consiste em ver, para além dos golfinhos de cor rosada, as águas barrentas do Solimões de um lado e as águas negras do Rio Negro do outro, misturando-se apenas ao fim de 8 quilómetros, tal a força dos dois caudais destes rios imensos, e onde se forma o Amazonas, e depois almoçar num restaurante flutuante no Solimões comendo o piramutava acabado de pescar; Fortaleza; Foz do Iguaçu, com um salto a uma localidade do Paraguay e aproveitando um passeio de barco no Iguaçu, que nos levou até junto da “garganta do diabo”, na Argentina, a queda mais forte das cataratas, aproveitando depois para ver as cataratas de vários pontos, sendo a vista mais espectacular do lado do Brasil; a capital Brasília, onde de novo nos aguardava o Athayde, na companhia de um dos filhos, o Guga, transportando-nos de carrinha, após a visita à cidade de Lúcio Costa e de Oscar Niemeyer, a que, para além da sua beleza arquitectónica, sentimos faltar vida, que o mesmo é dizer o calor humano que nos faz gostar das cidades, passando por Cristalina, chegando, por fim, à chácara que os meus primos possuem junto à cidade de Uberlândia, onde passámos quase uma semana em são convívio com muitos outros membros da família que, de outras cidades, se deslocaram para ali nos conhecerem, nomeadamente de Ribeirão Preto, por onde passaríamos no regresso a São Paulo e em cuja região a saga dos meus tios-avós Amélia e José, pais de Athayde, se iniciou.

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No Rio Mutum, navegando entre piranhas e jacarés

Em Uberlândia houve tempo para falar da família, dos antepassados mais próximos que eles conheciam de nome, para nos divertirmos com os churrascos caracteristicamente brasileiros e, como não poderia deixar de ser, com a música brasileira, tentando aprender a dançar correctamente o samba e o forró. Também houve tempo para viajar por entre os extensíssimos cafezais de Goiás e para passar um fim-de-semana nas piscinas em cascata da Pousada do Rio Quente, junto a Caldas Novas.

A viagem de regresso a São Paulo foi feita durante a noite de autocarro, onde a manta que nos distribuíram soube bem. E ainda dizem que o Brasil é um país de muito calor, esquecendo, quem tal afirma, que o país vai da Amazónio até ao Rio Grande do Sul, que faz fronteira com o Uruguai.

Em São Paulo manifestámos, junto dos familiares, o nosso interesse em conhecer o Ipiranga e, um dia, depois de uma visita a Santos, lá nos levaram. À chegada, verificámos que estávamos no Museu do Ipiranga, que naturalmente visitámos, mas logo disse aos primos que nos acompanhavam que queríamos conhecer o «Rio» Ipiranga, onde a 7 de Setembro de 1822 o Príncipe D. Pedro deu o célebre grito «Independência ou Morte!», ao que o meu primo Adalberto me respondeu: «Antônio, você acaba de saltar por cima». De facto, o Ipiranga não passa de um fio de água a que, com muita vontade, se chama Riacho, quando eu pensava que se tratava mesmo de um rio, depois de estudar esta matéria na instrução primária. Ainda não tinha lido uma História do Brasil, nomeadamente a de Hélio Vianna.

Demos então a palavra a este historiador que, na sua «História do Brasil», (16ª edição actualizada e complementada por Hernâni Donato), escreve:

«Passando por Lorena, (…), chegou D. Pedro a São Paulo, onde sua autoridade foi plenamente acatada. Visitou, também, a Vila de Santos e, quando já regressava a São Paulo, recebeu, próximo ao Riacho Ipiranga, à tarde de 7 de setembro de 1822, os emissários enviados por José Bonifácio, portadores de importantes novidades vindas de Lisboa, e comentários que haviam merecido, na própria capital portuguesa, do Deputado Antônio Carlos, e, no Rio de Janeiro, dos Ministros e da Princesa D. Leopoldina.

 Primeiramente, constavam aquelas notícias da probabilidade de não ser aprovada a idéia da elaboração de um Ato Adicional à Constituição Portuguesa, relativo ao Brasil. Além disto, medidas já votadas ou em votação pelas Cortes, e que seriam contidas em cartas-régias, mais tarde chegadas ao Brasil, determinavam providências humilhantes, que não poderiam ser aceitas, de forma alguma, pelo Príncipe e seu Ministério. Seriam elas, em resumo, as seguintes: continuaria D. Pedro como Regente até à publicação da Constituição, mas sujeito ao Rei e às Cortes, com autoridade apenas nas Províncias em que já a exercia; seria assistido por um novo Ministério, nomeado pelo Rei; nula seria a convocação do Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias e responsabilizado, por estes e outros atos, o Ministério da época; processado também deveria ser o governo de São Paulo, por seu pedido de permanência do Príncipe no Brasil.

(…)

De acordo com os depoimentos de várias testemunhas presentes, (…), depois de ler as referidas comunicações pediu ele a opinião de um deles, o Padre Belchior Pinheiro de Oliveira. Ter-lhe-ia este respondido que se D. Pedro não se fizesse Rei do Brasil, seria prisioneiro das Cortes e, talvez, deserdado por elas. Não tinha outro caminho senão a Independência e a separação. Concordando com o que ouviu, D. Pedro também criticou as Cortes, declarando rompidas as relações do Brasil com Portugal. Mandando chamar os demais participantes da viagem a Santos, repetiu-lhes as mesmas afirmações: que as Cortes desejavam escravizar o Brasil, e, por isso, separávamo-nos de Portugal. Retirando do chapéu as cores constitucionais portuguesas, azul e branco, atirou-as fora. Ouviram-se vivas à Independência e a D. Pedro, acrescentando-lhes este a divisa que daí por diante seria a do Brasil: ¾ “Independência ou Morte!”» (págs. 407/408).

Ora se o meu primeiro conhecimento do Brasil se deveu à malfadada história apologética que Salazar nos obrigava a decorar na escola, esse conhecimento foi desenvolvido no estudo de grandes historiadores, onde incluo a «Carta de Pero Vaz de Caminha» e os trabalhos de Joaquim Barradas de Carvalho e Jaime Cortesão, mas também graças aos poetas e aos ficcionistas brasileiros, sem esquecer o teatro e a música.

Vejamos agora como a imaginação de um escritor brasileiro nos fala do grito do Ipiranga, do Príncipe D. Pedro. É do romance de José Roberto Torero, «Galantes Memórias e Admiráveis Aventuras do Virtuoso Conselheiro Gomes, o Chalaça», que adquiri em São Paulo em Novembro de 1995, que transcrevemos:

«Até hoje me pergunto por que foi que realizamos aquela malfadada viagem à cidade de Santos. (…), e o jantar na casa dos parentes do ministro ¾ que poderia ter justificado todo o nosso trabalho ¾ acabou tendo conseqüências desastrosas, como passo a vos explicar agora.

(…)

O fato é que, tão logo raiou a manhã, constatou-se que metade da nossa comitiva padecia das desconfortáveis contrações e aguilhoadas intestinais, cujo resultado é a evacuação constante de uma matéria fecal mais líquida do que sólida. Os físicos a definem como diarrohoea, enquanto a gente miúda a conhece apenas por “caganeira”. (…)

Não querendo ficar ali ¾ (…) ¾, D. Pedro determinou que subíssemos a serra imediatamente. (…)

Quando chegamos no topo da serra, veio ao nosso encontro ninguém menos que o gentil-homem Francisco de Castro Canto e Melo. Ele dava conta de que um correio mandado por José Bonifácio e pela Princesa Leopoldina estava a ponto de chegar a São Paulo, trazendo notícias urgentes e de altíssima importância. (…).

Não contava o Príncipe, contudo, que com o trote forçado também o seu ventre quisesse se soltar, de modo que quando atingimos o alto de uma colina, próxima ao riacho do Ipiranga, ele próprio, eu e mais sete ou oito oficiais da comitiva tivemos forçosamente que apear e, com o trabalho da natureza, acalmar as revoluções das nossas vísceras.

(…)

Aconteceu, entretanto, que enquanto estávamos procedendo ao despejamento, chegou à colina o oficial da Corte trazendo as cartas da Princesa e de José Bonifácio. D. Pedro inquietou-se com o movimento e, diante da ansiedade em que se encontrava, subiu afobadamente o calção, e foi ver do que tratavam os documentos.

(…)

As duas cartas davam conta ao Príncipe das últimas decisões das Cortes Portuguesas em relação ao Brasil. Por elas D. Pedro estaria destituído do cargo de Príncipe Regente, (…)

Conhecendo o espírito indômito do príncipe D. Pedro como eu conhecia, não era difícil prever a resposta que ele daria a esse puxão de orelhas das Cortes; (…). Mas D. Pedro sempre soube surpreender-me; estava subindo no meu jumento, quando ouvi um grito:

“Laços fora, soldados!”

Era a voz dele, um pouco convulsa e trêmula. (…)

(…)

O Príncipe então montou em seu asno branco, desembainhou a espada e foi para o meio do agrupamento. (…) D. Pedro animou-se e deu outro grito, agora erguendo a espada em posição vertical:

“Viva a independência e a separação do Brasil!”

Todos gritamos: “Viva!”.

Ele voltou-se então para a guarda de honra:

“Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro promover a liberdade do Brasil!”

Naquela altura todos já estávamos convencidos de que D. Pedro havia escolhido aquele recanto bucólico para efetivar a separação dos dois reinos. O único problema então passava a ser definir qual a reação adequada aos seus gestos. D. Pedro voltou-se para o nosso grupo, ergueu a espada e gritou novamente:

“Independência ou morte!”

(…) Senti que precisava responder em nome de todos. Ergui então a minha espada, armei-me de coragem e soltei um potente berro:

“Independência ou morte!”

Em seguida todos gritaram o mote. (…)

(…) É essa história que se conta até hoje no Brasil, e eu dou fé que é verdadeira. (págs. 106/111). (…)

 Aqui temos duas versões do mesmo acontecimento, com o mesmo resultado. Qual a mais fidedigna? O leitor dirá.

 Voltei ao Brasil nove anos depois, com a minha mulher, Célia, a minha irmã Irene e o João, seu marido, que já nos haviam acompanhado em 1995, a que se juntaram dois familiares espanhóis, Filomena, para nós a Filo, prima direita do Athayde e do meu pai, e o seu marido, o meu estimado primo António.

 Começámos a visita por Porto Alegre, em dia de eleições municipais, não esquecendo a visita ao Parque Nacional de Aparados da Serra e aos seus caníones; Florianópolis, no Estado de St.ª Catarina, onde encontrámos outros familiares, netos e bisnetos dos tios Amélia e José; de novo Rio de Janeiro; Belo Horizonte e a fantástica cidade do Aleijadinho, Ouro Preto; Pantanal-Rio Mutum, num são convívio com os jacarés e as piranhas, para além de uma vegetação e uma fauna variadíssima; outra vez Uberlândia, para as bodas de ouro do Athayde e da Judite; e, por fim São Paulo de novo, sem esquecer uma nova passagem em corrida por Brasília.

 Em Brasília, houve a oportunidade de falar com outros portugueses ali residentes e outros amigos do Athayde e da Judite. Penso tê-los desiludido, dado que estariam à espera de me ouvir falar entusiasticamente da Comunidade Europeia, mostrando-me eu, sem diminuir a importância da nossa adesão à hoje União Europeia, muito mais entusiasmado com a possibilidade de desenvolver uma outra Comunidade, que é a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Quiséssemos todos e que mundo maravilhoso de língua portuguesa poderíamos construir!

 Motivos para falar destas viagens a um Brasil dos nossos encantos e da CPLP não faltam. Talvez um dia!

Portela, 2013-08-24

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1 Comment

  1. Há um erro neste texto. Onde escrevo «Em Brasília, houve a oportunidade de falar com outros portugueses…», deveria ter escrito «Em Uberlândia, houve a oportunidade de falar com outros portugueses…»

    As minhas desculpas aos leitores.

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