AGUARELAS DO BRASIL – por Fernando Correia da Silva

Imagem1Quatro apontamentos sobre temas brasileiros, escritos pelo argonauta e escritor português Fernando Correia da Silva. Perseguido pela polícia política, em 1954, exilou-se no Brasil. Foi colaborador da Folha de São Paulo e, mais tarde, coordenador editorial da Difel. Em 64, golpe militar no Brasil – começaram os «anos de chumbo». Trabalhou numa indústria em Fortaleza do Ceará. Regressou a Portugal em 1974. O Brasil habita-lhe o sangue.

Missionário ?

– Quando hoje eu vejo a Amazónia a arder, incendiada pela ganância de madeireiros e seringueiros e criadores de gado; quando vejo doidos apostados em chacinar até ao último índio, ou à bala, ou com veneno como a estricnina, ou com doenças contagiosas como a varíola, disseminadas de maloca em maloca, pergunto-me onde estaríamos hoje nós, povos indígenas, se não tivesse existido um Rondon. Embora muitos de nós tenham sido e continuem a ser chacinados, dezenas de milhares foram salvos por ele.

– Um grande missionário! Leigo, mas um grande missionário…

Irrita-se, parece furioso com a minha observação. Não me espantará se arrancar camisa e calças para, desnudo, iniciar uma dança guerreira. Já me atira um dardo com ponta de sílex:

– Não diga bobagem! Apesar desse “leigo” metido a adversativo, esqueça a palavra… Pelos sacrifícios que sofrem servindo a Deus, os missionários pensam ganhar o Céu. É recompensa metafísica, mas recompensa. Já Rondon e os seus homens são movidos apenas por uma ideia civil, laica, viver para outrem. Para eles não está prometida qualquer recompensa; nem nesta, nem na outra Vida. Ora diga lá: quais são os mais abnegados?

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Curupira

Diaí Nambikuára, índio brasileiro mas formado em Sociologia, diz-me em Lisboa:

– Curupira é o espírito maligno da mata, equivalente ao vosso Diabo. Ser disforme, de grandes orelhas, calvo, com as pernas às avessas, calcanhares para a frente e dedos para trás. Marcha com firmeza do abismo para a vida. Por causa das pegadas invertidas, quem pensa seguir-lhe a pista, acaba por cair no tal abismo ou noutra qualquer arapuca.

– Arapuca? O que é isso?

– Armadilha.

Estou a ver, mitologia indígena…

– Não só indígena…

Vai desculpar-me, mas o que é que isso tem a ver com a Europa?

Diaí Nambikuára abre os braços, sorri, diverte-se:

– Você acha que não tem? Então me diga uma coisa: não foi o Curupira que vos atraiu desde o “ama o próximo como a ti mesmo” até aos autos de fé da Inquisição? Não foi o Curupira que vos atraiu desde o comunismo, bem comum, até ao desterro e às matanças do Goulag? Não foi o Curupira, esse diabo, que invadiu e destroçou os vossos Paraísos? Se não, então quem foi?

Também sorrio, não sei o que responder…

Pecado?

Terras de Vera Cruz, corre o ano de 1580, o meu nome é João Ramalho e tenho 87 anos. Agora acontece o que eu temia: Vossa Reverendíssima já começa a benzer-se e a apostrofar-me por ter caído eu em pecado mortal, que é o da fornicação e luxúria. Segui o ditado em Roma sê romano e confesso que, entre os índios, índio fui. Para eles, pecado é recusar o que a natureza prazerosa manda colher. Vossa Reverendíssima escandaliza-se com a nudez das mulheres nativas e desvia os olhos para não mirar aquilo a que chama suas vergonhas. Mas se malícia existe não será nelas, pois com inocência revelam os corpos que Deus lhes deu, tal como vós mostrais a nudez das vossas mãos. E mais vos digo que assim desnudas são elas mais discretas e modestas do que as ataviadas damas do Paço e nem sequer estou a compará-las com as marafonas que, vestidas da cabeça aos pés, andam em requebros pelas ruas de Lisboa. Quanto ao relacionamento que estas índias têm com os homens, procedem elas com a mesma naturalidade e prazer com que se refrescam e matam a sede com a água de coco.

Uma coisa de comum têm as nativas com as reinóis: a vaidade. Mas enquanto as de lá gastam os dias a escolher tecidos, brocados e roupas com que pensam adornar-se, estas daqui passam o tempo a fazer cocares com penas de aves e a fantasiar desenhos e motivos com que irão pintar os corpos umas das outras. São elas também que pintam, com mão firme, a geometria que se espalha sobre os corpos de rapazes e guerreiros. Tintas preparadas com barro, resinas e sumos de frutas. Portanto pinturas que duram apenas até ao próximo banho. Porque estes índios são muito asseados, chegam a tomar um, dois, ou mesmo três banhos por dia. São muito diferentes dos portugueses, que fedem como os porcos que trouxeram do Reino.

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Paraíso

No sábado, pela manhã, Pedro Álvares Cabral (o capitão-mór) manda Nicolau Coelho, Pero Vaz de Caminha e Bartolomeu Dias levar a terra os dois nativos que tinham dormido a bordo. Na praia muitos homens os cercam e falam e gritam mas tudo sempre em jeito de amizade. Também algumas moças muito moças e gentis, com cabelos muito pretos e compridos a tombar pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e cerradinhas que delas vergonha não pode haver.

No domingo de Pascoela determina o capitão-mór que Frei Henrique cante missa num ilhéu que há na entrada daquele porto, a qual é ouvida com devoção, Cabral empunhando a bandeira de Cristo que trouxera de Belém. E durante a missa muitos nativos se aproximam em suas canoas feitas de troncos escavados. Alguns juntam-se aos navegantes tocando trombetas e buzinas. Os restantes saltam e dançam o seu bocado.

Metem-se depois os navegantes terra adentro e junto a uma ribeira que é de muita água, encontram palmas não muito altas. Colhem e comem bons palmitos. Então Diogo Dias, que é homem gracioso e de prazer, leva consigo um gaiteiro e mete-se a dançar com todo aquele povo, homens e mulheres, tomando-os pelas mãos, com o que eles folgam e riem muito ao som da gaita.

Não há vestígio nem de guerra, nem de traição, nem de perfídia, nem sequer de receio. Já vacila o Capitão-mor na sua desconfiança.

Na 6ª. feira opina irem à cruz que chantaram encostada a uma árvore junto ao rio. Manda que todos se ajoelhem e beijem a cruz. Assim o fazem e, para uns doze nativos que mirando estão, acenam que assim façam. Eles ajoelham-se e assim o fazem.

Ao capitão-mór já lhe parece aquela gente de tal inocência que, se fosse possível entendê-los e fazer-se entender, logo seriam cristãos. Não têm crença alguma, ao que parece. Os degredados que hão-de ali ficar, hão-de aprender a sua fala e não duvida o capitão-mór que bem conversados logo sejam cristãos, porque esta gente é boa e muito simples. E Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, ao trazer cristãos àquela terra, Cabral crê que não foi sem causa.

Ainda nesta mesma 6ª. feira, dia primeiro de Maio de 1500, indo os navegantes pelo rio abaixo, os sacerdotes à frente, cantando em jeito de procissão, setenta ou oitenta daqueles nativos metem-se a ajudá-los a transportar e a chantar a cruz junto à embocadura. E quando, já na praia, Frei Henrique canta a missa, todos eles se ajoelham como os portugueses. E quando vem a pregação do Evangelho, levantam-se os portugueses e com eles levantam-se os nativos. E os cristãos erguem as mãos e os nativos erguem as suas. E quando Frei Henrique levanta a Deus, outra vez se ajoelham os navegantes e com eles os nativos. Já acha o capitão-mór que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior.

Esta terra será imensa, dela não se vê o fim. De ponta a ponta é toda praia chã, muito formosa. E os arvoredos, com muitas aves coloridas, correm para dentro a perder de vista. Alguns dos paus são de madeira avermelhada, cor de brasa. Os ares são muito bons e temperados. As fontes são infindas. Querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Mas o melhor fruto, a principal semente, pensa Cabral, será a de salvar o seu povo que tão gentilmente ali vive em estado natural.

Manda Pero Vaz de Caminha escrever novas do achamento. Depois manda Gaspar de Lemos levar a carta a El-rei e ele parte, com a sua nau, rumo a Lisboa.

A 2 de maio abalam de Vera Cruz (foi este o nome que deram ao local). Em terra ficam dois degredados para aprender a fala do povo. Mais dois grumetes que, por vontade própria, faltaram ao embarque. Os rapazes são cativos das nativas, seus cabelos muito pretos e compridos a tombar pelas espáduas, suas vergonhas tão altas e cerradinhas que delas vergonha não pode haver…

Abalando do Paraíso, lá vai o capitão-mór corroído pela inocência. Será maleita perigosa a diluir-lhe o ímpeto guerreiro, pois tem agora que enfrentar as guerras e perfídias do Inferno.


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