Poema de Natália Correia (in “Cântico do País Emerso”, Lisboa: Contraponto, 1961; “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I”, Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – págs. 282-283; “Poesia Completa”, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – págs. 215-217) Recitado pela autora* (in EP “Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria”, col. A Voz e o Texto, Decca/VC, 1969; CD “A Defesa do Poeta”, EMI-VC, 2003)
Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos
Sou de mim mesma pomba húmida e brava.
De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros
Barbeados pelo sol penteados pela bruma!
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma
A génese a pluma do meu país natal.
Não sou daqui das praias da tristeza
Do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez minha beleza
E colocai-a à sombra dos palmares.
Não sou daqui. A minha pátria
não é esta Bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida Sou solta talvez nuvem
Nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos!
Tomai os meus cabelos Levai-os para a floresta.
É lá que o meu amigo pastor de estrelas pasce
O marulho das folhas com pássaros nas vozes
O sol adormecido nos braços da giesta
A manhã rarefeita na corrida do alce
O luar orbitado no salto da gazela
Os animais velozes do sítio onde se nasce…
Levai-me, peixes da minha pele itinerante!
Quero ir à pesca colher no espelho da laguna
O lírio da nudez a perdida inocência
O coração do bosque a dar-se sem penumbra
Visto através da minha transparência.
Levai-me, ó minhas mãos branco exílio de ramos!
Meus dedos virtuais folhas de palma!
Sois os órgãos sensíveis da choupana
Onde quero deitar a minha alma.
Levai-me, olhos meus implícitas montanhas
Florescência de cumes para poisarem águias!
Quero ter pensamentos que me cheirem a lenha
Esfregar o espírito em plantas aromáticas
Uma alma com pétalas guerrilheiras selvagens
Abertas a uma lua de prata verdadeira
Uma alma que seja verde que tenha asas
E dance nua para os deuses da fogueira…
Jogai, jogo do arco laço azul infância coisas
Que o desencanto confisca e abandona na cave!
Como uma criança joga papagaio jogai
Este farrapo de ânsia poeira da cidade
onde ninguém tem pressa de ser ave;
E tu, anjo de pedra do meu grito!
Anjo Esculpindo em pranto seco!
Anjo enxuto! Tu que me afogas o olhar no infinito
e as mãos no lodo dum gesto irresoluto
Tece, ó aranha de luz no esconso da garganta!
Coração de andorinha estrangulada!
O luar o jardim a cigarra que canta
O leito de verdura para eu me dar à esperança,
Rosa que aspiro num esquivo vão de escada.
* Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d’Arcos Técnico de som – Hugo Ribeiro Masterização – Rui Dias, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
Queixa das Almas Jovens Censuradas
Poema: Natália Correia (in “Dimensão Encontrada”, Lisboa: Edição de autor, 1957; “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I”, Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – págs. 167-168; “Poesia Completa”, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – págs. 121-122) Música: José Mário Branco Intérprete: José Mário Branco* (in LP “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, Guilda da Música/Sassetti, 1971; reed. EMI-VC, 1996; CD “A Defesa do Poeta”, EMI-VC, 2003)
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens de assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.
* José Mário Branco – voz e viola acústica de base Willy Lockwood – contrabaixo Gilbert Roussel – acordeão Arranjos e direcção musical – José Mário Branco Gravado no Strawberry Studio, Chateau d’Hérouville (perto de Paris), em Fevereiro de 1971 Técnico de som – Gilles Sallé Masterização digital – José Fortes