Novas Viagens na Minha Terra – Série II – Capítulo 166 – por Manuela Degerine

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 Sorte molhada

Chega um peregrino, louro deslavado, bastante inchado, trinta e cinco anos. Polaco. Percorreu o Caminho Francês e todos os dias aparou água. Ah, sigo para Finisterrra? Pois ele também e continuará a chover. Só lá vai de autocarro, não aceita mais lama, a meteorologia prevê chuva, vai chover toda a noite, vai chover amanhã, vai chover cada dia, chove até ao fim das previsões, ele quer sair deste charco, odeia chuva e, da ponta dos pés às últimas vértebras, saturou-se de tanto caminho.

O mau tempo é uma realidade. No que me toca: nove dias de caminhada, oito de chuvarada. (Com duração e intensidade muito diversas.) Os próprios galegos se queixam da primavera podre… Contudo esta criatura palmilhou o Caminho de Santiago durante trinta dias e nada aprendeu: só usou as botas. Portanto não lhe dou conversa.

Após cinquenta minutos de suspiros, de protestos, de exclamações, de apóstrofes às nuvens, de censuras aos empregados, de olhares furibundos na minha direção, de consulta das previsões através do telemóvel, do envio de mil e três mensagens, todas decerto a pingar SOS, (o socorro a náufragos, a diplimacia polaca, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem devem vir a caminho), de um desespero tão patético que chega a parecer interessante: o polaco lança-se à enxurrada como Ana Karenina à linha do comboio.

Temendo vir a encontrar o albergue fechado, mais vale na verdade molhar a roupa, o cabelo, todo o corpo, encher as botas de água, apanhar uma bruta constipação, do que passar a noite na rua: também saio do restaurante. E… que vejo?! Um guarda-chuva no caixote do lixo. Salto para o dito, abro o bendito: tem uma vareta descosida mas serve perfeitamente.

Chego à porta do edifício onde pernoito – a par do polaco. O qual terá seguido um itinerário distinto do meu: mais longo. Ele todo a pingar. Eu, não. Fita o enorme guarda-chuva como se eu sempre o tivesse tido na mão. Ora não é bem assim… Mas também não me sinto na obrigação de justificar nada. (E até aposto que ele, se trouxesse algum, não me teria abrigado.)

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