A PROPÓSITO DE UM TEXTO DE JOÃO MACHADO: “UMA NOTA ESCRITA DE PASSAGEM”, por JÚLIO MARQUES MOTA

A propósito de um texto de João Machado: uma nota escrita de passagem

Inclino-me perante a grande qualidade do texto escrito por João Machado a propósito dos textos que se estão a editar sobre o ensino em Economia no blog A Viagem dos Argonautas. E tanto mais quando é escrito, ainda por cima, por alguém que não é de economia.

Mas conta-se aí uma história que teria acontecido antes do Pereira de Moura dar aulas no actual ISEG. Pois bem, eu conto-vos uma história paralela e que acontecia comigo invariavelmente todos os anos no final do primeiro semestre, início do segundo, quando leccionava Economia Internacional (note-se que a disciplina era anual). Considero, não sendo neoclássico, que ensinava a teoria neoclássica a um nível de profundidade não igualável em nenhuma Faculdade do país actualmente. Pela simples razão, esta minha versão absolutista do ensino. A média dos alunos não tem hoje nada a ver com a média do que eram os alunos de então, quanto à disponibilidade para aprender e de desenvolver um raciocínio abstracto sem ter que recorrer sucessivamente ao raciocínio concreto. Aliás ao pedir ao director da minha escola a publicação dos textos que o blog agora está a publicar e de os distribuir pelos alunos, de ontem e de hoje, era exactamente nesse sentido. Pois bem, depois de expor a teoria neoclássica apresentava a teoria neo – ricardiana, a linha dos clássicos da Economia reinterpretados à luz dos trabalhos de Cambridge e, em particular, a partir dos trabalhos de Sraffa. A partir daí reinterpretava toda a teoria neoclássica ensinada, mostrando que os seus pressupostos eram tão restritivos quanto à análise do capitalismo que enquanto teoria interpretativa dos fenómenos da economia não servia para nada. Um outro percurso seria exigido e, esse íamos nós apresentar os primeiros passos no limite do tempo disponível e do programa que estávamos a ensinar. Há quem ainda se lembre disso como, por exemplo, o meu colega Vitor Neves que ainda há meses me lembrava esta situação.

No entanto continuo a dizer que o ensino da teoria neoclássica é importante como construção mental, como teoria que força os estudantes a ganharem uma boa capacidade de abstracção, fornecendo-lhes uma visão supostamente “coerente” da sociedade e, ainda assim mesmo, porque é o discurso dominante. Foi o que fazia, era o que faria ainda hoje se estivesse a ensinar e, se os estudantes tivessem a mesma capacidade de abstracção dos de então, o que francamente duvido. A ser verdade o que acabamos de afirmar valia a pena pensar-se colectivamente no que temos andado a fazer aos estudantes de hoje, para além de um facilitismo atroz e para além de deixarmos que vândalos no governo, desde Maria de Lurdes Rodrigues e Mariano Gago até ao ministro de agora e sobretudo ao de agora, tenham andado ou andem a destruir as Universidades e toda a estrutura de ensino que tem de estar subjacente. Porém, exigiria que fosse ensinado aos mesmos estudantes os limites do que lhes seria assim ensinado com a teoria neoclássica, exigiria que fossem analisadas in fine os pressupostos desse grande corpo teórico. E, por fim, depois de ensinadas com o mesmo nível de profundidade, as teorias económicas alternativas, submetia a teoria neoclássica a uma análise comparada entre elas. Nem é por acaso que na nossa Escola havia, depois,  uma disciplina que se chamava Análise Comparada das Modernas Teorias Económicas, leccionada por um grande professor da FEUC, Joaquim Feio. Diga-se e nunca é má ideia refrescar a nossa memória.

Para evitar prolongar este texto pergunte-se a um neoliberal coisas tão simples como: o que é “o factor” capital, o que é produtividade marginal do “factor” capital, o que é produtividade marginal do “factor” trabalho, o que são os fenómenos de switching e de reswitching de técnicas, como é que com heterogeneidade do capital se determinam os preços e não basta, como o fez Magee, dizer que se nos preocupamos com o problema de definir capital, substitua-se este por terra! Mas sendo assim, pergunte-se-lhes o que é renda absoluta e se é possível haver capitalismo sem capital e sem mercado. Não sendo possível evitar o problema da heterogeneidade dos bens de capital, pergunte-lhes como é que se determinam os preços. E pergunte-se-lhes ainda o que é uma curva de indiferença colectiva, , o que é o lucro puro da empresa,     pergunte-se, pergunte-se, mas exija-se a resposta justificada teoricamente. E vejam então as respostas.

Num outro contexto, dêem-nos a justificação teórica para a existência de ganhos com a passagem de economia fechada a economia aberta, a justificação teórica para a globalização de hoje, mas expliquem-nos qual a adesão das hipóteses assumidas na demonstração apresentada face ao que se passa na realidade.

E num contexto agora mais português se a austeridade leva ao crescimento expliquem-nos teoricamente como é que este assim se alcança, uma vez que na prática até se observa o contrário, ou seja, quanto mais austeridade se aplica mais se degrada a possibilidade de sairmos da crise da dívida..

E assim sucessivamente (…)

Joan Robinson costuma dizer, e cito de memória, que um estudante aplicado ouve, ouve, (…), estes conceitos, não se interroga sobre o que eles significam e quando passa a professor, apenas sabe ensinar as asneiras que lhe ensinaram. É isto também o ensino de economia em Portugal. Lamento.

Uma outra pergunta e na mesma linha. Porque é que há tão poucos economistas que saibam discutir a crise fora do modelo que a gerou? Tomemos o caso português, como exemplo. Contam-se pelos dedos de uma mão e praticamente todos com mais de 50 anos e, já agora, creio que todos eles com menos de 70 anos, pois esta é já a minha idade. Esses economistas nem vale a pena citá-los tão poucos eles são e, com excepção do João Ferreira do Amaral, quantos deles são chamados com frequência à televisão? Não é mais cómodo chamar antes os João Salgueiro ou os Nogueira Leite deste país? E quantos destes poucos economistas foram convidados a contraporem-se aos argumentos do Camilo Lourenço ou outros, por exemplo? Simplesmente nenhum.

Não se pense porém que o problema é exclusivamente português. Maurice Allais, no seu testamento, que publicámos em tempos, e relativamente ao que se passa em França, escreveu o seguinte:

« Um prémio Nobel… télé-espectador

Os comentadores em economia que vejo exprimir-se regularmente na televisão para analisar as causas da actual crise são frequentemente os mesmos que aí vinham anteriormente para analisar a boa conjuntura com uma total serenidade. Não tinham sequer anunciado a chegada da crise, e não propõem, na maior parte deles, nada de sério para dela sair. Mas convidam-nos ainda. Pela minha parte, não era convidado a vir à televisão quando anunciava, quando escrevia, desde há mais de dez anos, que uma crise essencial acompanhada de um desemprego descontrolado iria em breve aparecer. Faço parte daqueles que não foram admitidos para explicar aos Franceses quais são as origens reais da crise, enquanto que eles ficaram privados de qualquer poder real sobre a sua própria moeda, para pleno proveito dos banqueiros. No passado, transmiti a certas emissões sobre economia a que assistia como télé-espectador, a mensagem que estava disposto a ir falar daquilo em que se tornaram progressivamente os bancos actuais, sobre o papel verdadeiramente perigoso dos traders, e porque é que certas verdades não são ditas sobre os mesmos. Nenhuma resposta, nem sequer mesmo negativa, veio de nenhuma cadeia de televisão e isto durante anos.

Esta atitude repetida levanta um problema relativamente aos grandes meios de comunicação social em França: certos peritos são autorizados a lá ir enquanto outros, são proibidos. Embora seja um perito internacionalmente reconhecido sobre as crises económicas, nomeadamente sobre a de 1929 ou de 1987, a minha situação presente pode-se por conseguinte resumir da maneira seguinte: sou um télé-espectador. Um prémio Nobel… télé-espectador. Encontro-me assim face aos que afirmam os especialistas regularmente convidados, quanto a eles, sobre os palcos de televisão, face a certos universitários ou analistas financeiros que garantem bem compreender o que se passa e que sabem o que é necessário fazer. Enquanto que realmente não compreendem nada. (…)

Esta ignorância e sobretudo a vontade de a esconder graças a certos meios de comunicação social denotam a degradação do debate e da inteligência, devido a interesses específicos frequentemente ligados ao dinheiro. Interesses que desejam que a ordem económica actual, que funciona bem a seu favor, perdure tal como ela é. Entre estes encontram-se em especial as multinacionais que são os seus principais beneficiários, em conjunto com os meios bolsistas e bancários, de um mecanismo económico que os enriquece, enquanto se empobrece não só a maioria da população francesa mas também a maioria da população mundial.”

Tudo dito, portanto.

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